Elogio da canção

Para quem sinta satisfação em semelhantes exercícios é relativamente fácil contabilizar as pequenas e grandes tragédias que assolam a nossa passagem por este mundo. Falando aqui e agora daquelas que só a cada um de nós diz respeito talvez o maior segredo seja reconhecê-las a tempo e lidar com elas da melhor forma. Uma delas, talvez não a maior, mas certamente bem real e quotidiana, é a nossa permanente desatenção sobre aquilo que torna a vida mais suportável. Não porque o façamos intencionalmente, mas apenas porque o tomamos como garantido.

Fujo dos grandes temas e proponho para este capítulo a existência das canções. Não me parece que exagero quando digo – e digo muitas vezes, acreditem – que se trata da mais perfeita forma de arte popular. Para começar porque se imiscui na nossa vida a ponto de por vezes confundirmos as duas. Todos passámos por isso, amigos: aquele “tema” que soava quando conhecemos o amor da nossa vida, aquela voz e palavras quando perdemos o amor da nossa vida.

Tenho uma teoria que não pretendo tornar universal, mas que certamente tem a sua prova viva neste vosso criado: a nossa vida é um musical de que nós somos protagonistas involuntários. Numa das mais extraordinárias canções da década de 90 do século XX – Songs Of Love, dos The Divine Comedy e escrita pelo insuperável Neil Hannon – conta-se a história de um fazedor de canções que da sua água-furtada vê passar casais felizes proclamando o seu amor à custa das canções que ele, pobre solitário, constrói. É uma canção de um doce cinismo mas nem por isso deixa de ser verdade. É graças a esses trabalhadores-artistas que tantas vezes vamos balizando os nossos sentimentos sem termos a preocupação de lhes agradecer.

Depois há isto: as canções vivem tão dentro de nós que as podemos usar em qualquer ocasião: no carro, na rua, no chuveiro. E têm a capacidade de despertarem emoções mesmo quando estamos distraídos. Conto: há uns dias resolvi ver um filme preguiçoso, ideal para uma matiné caseira preguiçosa. Um filme rasteiro, de “acção” (chama-se The Equalizer, já que não perguntam) e perfeito para manter neurónios e coração em sossego. Assim foi: até que nos minutos finais do filme surge uma banda sonora que a princípio não reconheci por se tratar de uma versão; mas os versos “distant colors, different shade/over with mistake were made/ I took the blame” apanharam-me como um soco no estômago: tratava-se de New Dawn Fades, dos Joy Division, banda com que vivi e vivo e coloco – com alguns discos de Leonard Cohen, Amália e Sinatra – sob o rótulo “manter afastado do alcance das crianças”. E eis o que aconteceu, amigos: subitamente as lágrimas caíram. Não por causa de nostalgias de juventude, que não as tenho – mas pelo imenso poder da canção, capaz de me virar do avesso num ápice.

As canções são animais furtivos mas predadores e, melhor ainda, sem dono. Podem provocar uma espécie de síndroma de Stendhal no dia a dia ou simplesmente fazer com que soltemos um sorriso. E são um permanente e maravilhoso mistério. Uma das primeiras canções que decorei foi Ticket To Ride, dos The Beatles. Adoro-a até hoje e por uma miríade de razões. Mas foi só há pouco tempo que soube o verdadeiro significado do título, mais uma brincadeira marota dos rapazes de Liverpool. A expressão “Ticket To Ride” refere-se ao boletim sanitário que as prostitutas de Hamburgo eram obrigadas a ter em dia para poder exercer a sua profissão. E como os moços floresceram em Hamburgo… bom, é fazer as contas. Subitamente uma canção que lamenta o abandono de uma moça que não aguenta viver com o narrador ganha uma dimensão completamente inesperada sem perder um milímetro da integridade. E isso é tão bom.

Sobre canções tenho tanto a dizer, tanto a agradecer. Revejo o monólogo de abertura de High Fidelity, a partir do livro homónimo de Nick Hornby (“What came first ? Music or the misery ?”) e é um espelho bem-vindo. Saibamos reconhecer essas dádivas efémeras e eternas ao mesmo tempo. Por mim, estaria perdido sem elas. Agora mesmo não sei qual a banda sonora que irá ocupar este meu dia e estas emoções. Mas ela está lá, eu sei disso. Até ao fim de mim, de nós.

26 Mai 2021