Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA RELÍQUIA, DE EÇA DE QUEIRÓS – 6 (de 8) No primeiro motivo «geral» apontado ao capítulo 3 na economia geral do romance, e podendo se ver A Relíquia como uma tremenda crítica à religião católica, é mostrar-nos a origem do equívoco do cristianismo. Equívoco, porque no centro da crença cristã está a ressurreição de Cristo e, neste capítulo, através de um sonho ao passado da paixão de Cristo, Eça mostra-nos que Jesus não estava morto quando o descem da cruz (vejam-se páginas 217-220). Jesus estava desmaiado e dado como morto, devido a preparos das mulheres essénias, e antes de morrer recobra um pouco a consciência proferindo algumas palavras. Mas acaba mesmo por morrer e, nos dias seguintes, quando o corpo desaparece, Maria Madalena corre a cidade promovendo a sua ressurreição. O segundo motivo geral é literariamente brilhante e indissociável do terceiro: através de um artifício literário comum à literatura do romantismo – a transposição temporal através do sonho – Eça amplifica o realismo, ao mesmo tempo que fica explícito o sentido de «peculiarmente espiritual», tal como aparece no início do romance. A amplificação do realismo é a exposição do mal radical do humano, tal como Kant nos mostra em A Religião nos Limites da Simples Razão. E este «peculiarmente espiritual» quer dizer-nos que o relato tenta recolocar o humano no sentido do espiritual, além ou aquém da religião, através de um questionamento da origem do cristianismo. Também aqui, no sentido da religião, e não apenas no sentido do mal radical, Eça se aproxima de Kant. Regressemos então a Kant e ao seu A Religião nos Limites da Simples Razão, porque aquilo que configura o horizonte de Eça de Queirós pode ser respondido tendo em atenção este livro de Kant. Para Kant, as religiões dividem-se em dois grupos: «religião da petição de favor (do simples culto), e religião moral, i. e. religião da boa conduta de vida.» (57) Nas primeiras, o humano bajula o seu Deus para que lhe dê aquilo que precisa. No fundo, aquilo que Kant escreve: «[…] que Deus pode fazer um homem melhor sem que ele próprio tenha de fazer algo mais a não ser suplicar-lhe […].» (57) Isto que, segundo Kant, não se aplica à religião cristã, visto que esta é uma religião moral, aplica-se em Eça de Queirós ao catolicismo, tal como era praticado em Portugal. Ao longo de toda A Relíquia, Eça nos mostra esta relação de bajulação do católico com o seu Deus, através dos santos, das promessas e da superstição. O que está em causa para Kant é que uma religião em que o crente bajula o seu deus não é uma religião que instigue o crente a ser melhor ou a percorrer o caminho do bem, contrariamente àquilo a que o filósofo chama religião moral, que instiga o crente a ser melhor do que é. À página 172 do seu livro, Kant escreve: «Adopto, em primeiro lugar, a proposição seguinte como um princípio que não necessita de demonstração: tudo o que o homem, além de uma boa conduta, imagina poder ainda fazer para se tornar agradável a Deus é simples ilusão religiosa e pseudo-serviço de Deus.» (172) Para Eça de Queirós, embora por outras palavras, o que está em causa é o mesmo: a hipocrisia do catolicismo, não apenas nas atitudes dos crentes, como sejam o caso da titi, mas também da dos padres, a começar pelo avô de Teodorico e a acabar no padre Negrão. O catolicismo não nos torna melhores. Mais: não exige sequer que sejamos melhores, apenas que aparentemos sê-lo. E ser melhor aos olhos da sociedade. No fundo, o mesmo que acontece em O Primo Basílio e que podemos chamar hermenêutica de cálculo da acção. A saber, há que interpretar a cidade onde estamos, ver o que se esconde sob o manto da aparência e medir, calcular as acções que devemos praticar, de modo a não sermos castigados, nem por nós mesmos, nem pelas convenções sociais da aparência. Exemplarmente mostrado em A Relíquia, não apenas através do aperfeiçoamento da mentira levada a cabo por Teodorico, ou do exemplo final do padre Negrão, mas também através do comportamento da titi. Pois a despeito de toda a sua devoção, a D. Patrocínio estava longe de ser boa ou de ao longo da vida caminhar no sentido de ser melhor aos olhos de Deus. Assim, este capítulo onírico da genealogia do cristianismo, liga-se por inteiro àquilo que é o catolicismo em si mesmo para Eça de Queirós: uma completa mentira. No final desse sonho, vemos que Jesus não ressuscita e que o desaparecimento do corpo é anunciado pela cidade por Maria Madalena, promovendo a ilusão da ressurreição. Mas aquilo que importava a Kant em A Religião nos Limites da Simples Razão, além de tentar mostrar uma religião racional, era também um levantamento da natureza humana na sua relação com a moral. Por outras palavras: apurar de que modo nos dirigimos para o bem ou nos deixamos cair no mal. Na verdade, o ponto de partida é o mal. Leiam-se as palavras com que Kant começa o primeiro dos seus quatro textos que compõem o livro: «Que o mundo está mal é uma queixa tão antiga como a História […]. No entanto, todos fazem começar o mundo pelo bem: pela Idade de Ouro, pela vida no paraíso, ou por uma vida ainda mais afortunada, em comunidade com seres celestes. Mas depressa deixam essa ventura esvanecer-se como um sonho; […]» O que está em causa no início deste texto é precisamente a natureza má do humano, a sua raiz. Ou seja, o humano é mau por natureza e bom por razão. Deixamo-nos inclinar para um ou para outro dos pratos da balança dependendo do uso que fazemos da nossa liberdade. E que melhor momento para mostrar esta realidade do que a aurora de Cristo? Cristo é um momento inaugural na História. E Eça, através do recurso ao sonho, mostra-nos como na génese da «Nova História» se encontra já o mal. O mal sempre existiu e o cristianismo (catolicismo) não faz com que o humano lute contra ele, apenas cria uma mentira que devemos aceitar através de uma hermenêutica do cálculo da acção. Assim, e para regressarmos a Teodorico Raposo, estas cem páginas do seu livro, apresentadas como um sonho, não é apenas o testemunho do calvário de Cristo e do ambiente que o envolvia, é a constatação que o mal é maior que o bem, que o mal é muito antigo e que, mesmo no momento mais importante da História, pelo menos para os cristãos, o mal era o ar que se respirava. Teodorico Raposo mostra-nos que aquele momento em Jerusalém, que levou à condenação de Jesus e à sua morte, é a evidência de que não há bem no mundo. Uma metáfora do mal. E o bem aparece como a ilusão que queremos que exista, a despeito de não existir. O bem é aquilo que temos de conquistar através das nossas escolhas, do exercício da liberdade. É também aqui que nos surge o sentido do título do livro e daquilo que Eça de Queirós nos pretende mostrar: o bem é uma relíquia. O que é uma relíquia? Veja-se o que nos diz o professor Topsius, através das palavras de Teodorico Raposo, no livro do escritor Eça de Queirós: «As relíquias, D. Raposo, não valem pela autenticidade que possuem, mas pela fé que inspiram. Pode dizer à titi que foi a mesma [a coroa de espinhos que Teodorico levava e a que Jesus tinha aquando do Calvário].» (228) Traduzindo as palavras de Topsius para a linguagem de Eça de Queirós, com alguma liberdade poética: o bem não vale pela sua autenticidade, mas pela fé que inspira. Traduzindo ainda as palavras de Topsius, agora para a linguagem de Teodorico Raposo: o bem não vale pela autenticidade, mas pelo que a fé que os outros têm nele me possa beneficiar. Assim, o sonho de Teodorico, o seu regresso ao passado, ao tempo da paixão de Cristo, para além da amplificação da crítica ao catolicismo, que é todo o livro, tem um triplo sentido específico (estrito), isto é, um triplo sentido que pertence apenas a este capítulo: 1) mostrar que o mal sempre existiu, desde tempos imemoriais; 2) mostrar que o bem é uma relíquia; 3) produzir uma distorção narrativa que faça o leitor pensar em todo o romance. Pois provavelmente sem esta distorção narrativa o leitor não se detinha a pensar no que é que o autor pretende no fundo com toda a narrativa da vida de Teodorico Raposo. Pois A Relíquia não é um romance picaresco, ainda que dialogue com ele. Talvez sem este capítulo nos fosse mais difícil de entender isto. Continua na próxima semana.