José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasDeterminismo [dropcap]N[/dropcap]uma desses depoimentos desabridos que o à-vontade e a espontaneidade do Facebook permitem desafogar alguém disse en passant: “…as pessoas cuja identidade de género não corresponde ao sexo que a sociedade lhes atribuiu à nascença…” Não é forçoso que quem isto proferiu requeira como corolário epistemológico da sua afirmação que a diferença entre os espermatozóides xx e xy não passe de uma burla engendrada por uma ciência hetero-patriarcal (já agora branca e capitalista, para se completar de razões). Mas tudo na afirmação implica que o xx e o xy terá contribuído muito menos para a atribuição do sexo dos nascituros do que a sociedade em que eles vieram ao mundo. Claro que se pode aludir que esta frase vale o que vale a maior parte dos dizeres pespegados nas redes sociais, por norma superficiais e preconceituosos, na medida em que são segregados sem reflexão e por mera adesão sentimental às ideias mais cintilantes que “andam por aí”; e decorrentes de um fervoroso – embora denegado – moralismo, porque buscam o consolo dado por uma lei justa, geral e universal, que ao identificar e denunciar os “culpados” julga ter encontrado a “resposta.” Mas porque procede de uma convicção validada nalguns círculos, mesmo se tomada como embuste a frase não deixa de ser sintomática. Não só porque deriva de um ethos que se vai trivializando e condensando em certas meninges e se vai tornado dominante, como essas tais meninges se têm na conta de indubitavelmente cultas e privilegiadamente inteligentes – como podia ser de outro modo pois se ao contrário da massa de alienados, já são detentoras das chaves epistemológicas que determinam a vida humana? A frase é sobretudo reveladora do estado de alienação inerente – dizer “genético” seria demasiado sarcástico – aos apaniguados do determinismo social, pois acarreta uma contradição que eles não detectam. Ou melhor: que esqueceram, pois em tempos ela foi “resolvida” pelas investigações de Lisenko, as quais acabaram no caixote de lixo da ciência após a proverbial pilha de vítimas mortais do dogmatismo soviético. O determinismo social é uma espécie de Frankenstein composto pela certeza “científica” do “materialismo histórico” e pela persuasão “científica” do positivismo comtiano que aglutinados e sujeitos a uma série de descargas eléctricas políticas e filosóficas aparentam ter vida própria. Há um dito que virá aqui a propósito: quando se tem um martelo todos os problemas são pregos. Se até o sexo dos nascituros é determinado socialmente então o determinismo biológico (e o físico, e o químico) é irrelevante. Ora a biologia, a física e a química, foram as áreas em que o conhecimento humano penetrou na natureza; por via desse formidável instrumento mental que é a razão elas constituíram-se como ciências e esta, segundo os seus rigores de observação e análise, estabeleceu as leis que determinam os eventos naturais. Portanto, se é a biologia que comprovada e cientificamente determina o sexo dos nascituros como pode arrogar-se de científico e determinante o “determinismo social” que suspeita da sua validade? Uma das mais efervescentes e criativas regiões da filosofia que ainda se vai fazendo é que discute com a ciência a complexa, enigmática e buliçosa fronteira entre o determinismo da neurociência e o livre-arbítrio, ou seja, a liberdade do ser humano, o único animal que produz semântica e demonstra intencionalidade. Para esta controvérsia pouco têm contribuído os expertos “continentais” do determinismo social, impantes nas suas convicções epistemológicas, afinal estanques a qualquer discussão científica dado serem sistematicamente carentes de prova matemática ou empírica, na melhor das hipóteses argumentando com a falaciosa prova testemunhal. Este ensimesmamento do determinismo social tende desgraçadamente a gerar nos seus adeptos uma consequência que contradiz a sua suposta índole científica. Dado que se protegem e defendem com recurso a uma desconfiança inamovível e infundada – mas nada cartesiana – contra tudo que resiste a ser “prego”, amiúde fazem incidir esta atitude de suspeita apelidada de “crítica” sobre os enunciados da ciência. Aquilo que designam com alacridade de “saberes alternativos” acaba por degenerar na legitimação e ratificação de modelos de pensamento pré- ou anti- Razão ou seja na visão do mundo característica da era medieval. “Obscurantismo” é a palavra justa para a qualificar.