Depois de grande

No dia 2 de Abril assinalou-se o dia mundial da consciencialização do autismo. Já escrevi um par de crónicas aqui para o Hoje Macau sobre o assunto; nem sempre o faço, nem sempre tenho a energia para voltar a dizer mais ou menos as mesmas coisas a pretexto de divulgação pedagógica ou de página de diário. Há imensa gente a trabalhar todos os dias para desfazer os mitos acerca do autismo e das suas consequências, para quê acrescentar ao ruído?

Na verdade nada tenho a dizer sobre o autismo, essa constelação tão vasta e desconexa de características. Nunca conheci dois autistas iguais. Mas reconheço um autista ao longe. É como se o autismo fosse uma nacionalidade e não uma condição: a gente percebe que todas aquelas pessoas, muito diferentes umas das outras, vêm do mesmo sítio. Sabemos muito pouco acerca dos factores que espoletam o seu aparecimento (daí proliferarem tantos charlatães a fazer dinheiro à conta do desespero dos pais). Não há medicamentos, as terapias que existem são extremamente caras e apresentam resultados muito díspares e mesmo os melhores profissionais e as melhores práticas não garantem qualquer melhoria significativa.

O meu Guilherme vai fazer dezoito anos em Setembro. Não fala. Não consegue abrir a porta de um armário para roubar um pacote de bolachas. Não sabe limpar o rabo depois de ir à casa de banho. Não consegue dizer se lhe dói alguma coisa ou onde lhe dói. Tende a meter tudo quanto é migalhinha à boca (uma condição chamada «pica»).

Nunca beijou uma rapariga (ou um rapaz). Não gosta de desenhar, de colorir, de fazer puzzles ou legos, de brincar com outras crianças (ou não sabe). Tudo quanto gosta de fazer é de ver desenhos animados na televisão ou no telemóvel. É surpreendentemente ágil a deambular nos seus vídeos preferidos do Youtube e nesse aspecto maneja um telemóvel com a desenvoltura expectável para um adolescente da sua idade.

No próximo ano ou no seguinte deixa de ir para a escola (que funciona, para um autista com as suas limitações, mais como um centro de terapia ocupacional do que qualquer outra coisa). Não sabemos bem o que fazer com ele depois disso. Ninguém sabe. Os apoios aos autistas vão sobretudo no sentido de recuperá-los para uma vida tão normal quanto possível na maioridade. O investimento social e público pára por aí. Percebe-se.

Há umas décadas, nem isso acontecia. Nem os autistas nem as suas famílias sabiam com o que lidavam. Eram simplesmente «atrasados», crianças atoleimadas incapazes de aprenderem a ler ou a escrever, excêntricos míopes para os códigos sociais, os tontos da aldeia. Quando os pais morriam ou se fartavam deles, eram entregues a uma instituição qualquer (quando esta existia) ou viviam da caridade alheia.

Apesar da manifesta insuficiência dos apoios estatais e/ou sociais, demos uns passinhos desde então. Já existem algumas associações cuja vocação é acomodar a vida pós-escolar dos autistas. Mas são ou insuficientes e com longas listas de espera (vaga um lugar quando morre um dos seus usufrutuários) ou extremamente dispendiosas. Mas de que estávamos à espera num país que enfia os seus velhos em sítios onde não conceberia deixar o cão nas férias? A massificação do trabalho teve a consequência positiva de permitir a todas e todos prosseguirem uma carreira e serem independentes, mas acabou por desfazer a rede familiar e social que sustentava a possibilidade de uma vida condigna para os mais velhos e os mais frágeis.

Vou saboreando este fim de festa enquanto a realidade não vem – mais uma vez – arrancar-me bruscamente ao meu torpor. Todos os dias me repito a mim mesmo que tenho de começar a pensar agora. Todos os dias adio. Chegará um dia em que não poderei adiar mais.

9 Abr 2021