A escandalosa política grega da Europa

* Por Jurgen Habermas

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]resultado das eleições na Grécia exprime a escolha de uma nação onde uma grande maioria da população se colocou numa posição defensiva face à miséria social, tão humilhante como esmagadora, provocada por uma política de austeridade, imposta ao país a partir do exterior. A votação propriamente dita não permite nenhum subterfúgio: a população rejeitou a continuação de uma política cujo falhanço sofreu brutalmente, na sua própria carne. Com a força desta legitimação democrática, o governo grego tentou provocar uma mudança de política na zona euro. Ao fazê-lo, entrou em choque com os representantes de dezoito outros governos que justificam recusas referindo-se, friamente, ao seu próprio mandato democrático.
Lembramo-nos dos primeiros encontros em que noviços arrogantes, levados pela exaltação do triunfo, se entregavam a um torneio ridículo com pessoas bem instaladas, que reagiam umas vezes com gestos paternalistas de um bom tio e outras com uma espécie de desdém rotineiro: cada uma das partes gabava-se de desfrutar do poder conferido pelo seu respectivo «povo» e repetia o refrão como papagaios. Foi ao descobrir até que ponto a reflexão que então faziam, e que se baseava no quadro do Estado-nação, era involuntariamente cómica, que toda a opinião pública europeia percebeu o que realmente fazia falta: uma perspectiva que permitisse a constituição de uma vontade política comum dos cidadãos, capaz de colocar no centro da Europa marcos políticos com consequências reais. Mas o véu que escondia esse deficit institucional ainda não foi realmente rasgado.
A eleição grega introduziu grãos de areia na engrenagem de Bruxelas: foram os próprios cidadãos que decidiram a necessidade urgente de propor uma política europeia alternativa. Mas é verdade que, noutras paragens, os representantes dos governos tomam decisões entre eles, segundo métodos tecnocráticos, e evitam infligir às suas opiniões públicas nacionais temas que possam inquietá-las.
Se as negociações para um compromisso falharem em Bruxelas, será certamente sobretudo porque os dois lados não atribuem a esterilidade dos debates ao vício na construção dos procedimentos e das instituições, mas sim ao mau comportamento do parceiro. Não há dúvida de que a questão de fundo é a obstinação com que se agarra uma política de austeridade, que é cada vez mais criticada nos meios científicos internacionais e que teve consequências bárbaras na Grécia, onde se concretizou num fracasso óbvio.
No conflito de base, o facto de uma das partes querer provocar uma mudança desta política, enquanto a outra se recusa obstinadamente a envolver-se em qualquer espécie de negociação política, revela, no entanto, uma assimetria mais profunda. Há que compreender o que esta recusa tem de chocante, e mesmo de escandaloso. O compromisso não falha por causa de alguns milhares de milhões a mais ou a menos, nem mesmo por uma ou outra cláusula de um caderno de encargos, mas unicamente por uma reivindicação: os gregos pedem que seja permitido à sua economia e a uma população explorada por elites corruptas que tenham um novo começo, apagando uma parte do passivo – ou tomando uma medida equivalente como, por exemplo, uma moratória da dívida cuja duração dependesse do crescimento. Em vez disso, os credores continuam a exigir o reconhecimento de uma montanha de dívidas, que a economia grega nunca poderá pagar.
Note-se que ninguém contesta que uma supressão parcial da dívida é inevitável, a curto ou a longo prazo. Os credores continuam, portanto, com pleno conhecimento dos factos, a exigir o reconhecimento formal de um passivo cujo peso é, na prática, impossível de carregar. Até há pouco tempo, persistiam mesmo em defender a exigência, literalmente fantasmagórica, de um excedente primário de mais de 4%. É verdade que este passou para o nível de 1%, mas continua irrealista. Até agora, foi impossível chegar a um acordo – do qual depende o destino da União Europeia – porque os credores exigem que se mantenha uma ficção.
Claro que os «países credores» têm motivos políticos para se agarrarem a esta ficção que permite, no curto prazo, que se adie uma decisão desagradável. Por exemplo, temem um efeito dominó em outros «países devedores» e Angela Merkel não está segura da sua própria maioria no Bísesundestag. Mas quando se conduz uma má política, é-se obrigado a revê-la, de uma forma ou de outra, se se percebe que ela é contra-produtiva.
Por outro lado, não se pode atirar com toda a culpa da um falhanço para cima de uma das duas partes. Não posso dizer se o processo táctico do governo grego se baseia numa estratégia reflectida, nem ajuizar sobre aquilo que, nesta atitude, tem origem em constrangimentos políticos, inexperiência ou incompetência do pessoal encarregado dos assuntos. Não tenho informação suficiente sobre as práticas habituais ou sobre as estruturas sociais que se opõem às reformas possíveis.
O que é óbvio, seja como for, é que os Wittelsbach não construíram um Estado que funcione. Mas estas circunstâncias difíceis não podem no entanto explicar por que motivo o governo grego complica tanto a tarefa dos que tentam, mesmo sendo seus apoiantes, discernir uma linha no seu comportamento errático. Não se vê nenhuma tentativa racional de formar alianças; é caso para perguntar se os nacionalistas de esquerda não se apegam a uma representação um tanto etnocêntrica da solidariedade, se só permanecem na zona euro por razões que relevam do simples bom senso – ou se a sua perspectiva excede, apesar de tudo, o âmbito do Estado-nação.
A exigência para uma corte parcial das dívidas, que constitui a base contínua das suas negociações, não é suficiente para que a outra parte tenha pelo menos confiança para acreditar que o novo governo não é como os anteriores e que agirá com mais energia e de forma mais responsável do que os governos clientelistas que substituiu.

Mistura tóxica

Alexis Tsipras e o Syriza podiam ter desenvolvido o programa de reformas de um governo de esquerda e «ridicularizar» e os seus parceiros de negociações em Bruxelas e em Berlim. Amartya Sen comparou as políticas de austeridade impostas pelo governo alemão a um medicamento que contivesse uma mistura tóxica de antibióticos e de veneno para matar ratos. O governo de esquerda teria tido perfeitamente a possibilidade, na linha do que entendia o Prémio Nobel de Economia, de proceder a uma decomposição keynesiana da mistura de Merkel e de rejeitar sistematicamente todas as exigências neoliberais; mas, ao mesmo tempo, devia ter tornado credível a intenção de lançar a modernização de um Estado e de uma economia (de que tanto precisam), de procurar uma melhor distribuição dos custos, de combater a corrupção e a fraude fiscal, etc.
Em vez disso, ele limitou-se a um papel de moralizador – um blame game. Dadas as circunstâncias, isto permitiu que o governo alemão afastasse, de uma penada, com a robustez da Nova Alemanha, a queixa justificada da Grécia sobre o comportamento mais inteligente, mas indigno, que o governo de Kohl teve no início dos anos 90.
O fraco exercício do governo grego não altera o escândalo: os homens políticos de Bruxelas e de Berlim recusam assumir o papel de homens políticos quando se reúnem com os seus colegas atenienses. Têm certamente boa aparência, mas, quando falam, fazem-no unicamente na sua função económica, como credores. Faz sentido que se transformem assim em zombies: é preciso dar ao processo tardio de insolvência de um Estado a aparência de um processo apolítico, susceptível de se tornar objecto de um procedimento de direito privado nos tribunais. Uma vez conseguido este objectivo, é muito mais fácil negar uma co-responsabilidade política. A nossa imprensa diverte-se porque se rebaptizou a «troika» – trata-se, efectivamente, de uma espécie de truque de mágico. Mas o que ele exprime é o desejo legítimo de ver surgir a cara de políticos atrás das máscaras de financeiros. Porque este papel é o único no qual eles podem ter de prestar contas por um falhanço que se traduziu numa grande quantidade de existências estragadas, miséria social e desespero.

Intransigência



Para levar por diante as suas duvidosas operações de socorro, Angela Merkel, meteu o Fundo Monetário Internacional no barco. Este organismo tem competência para tratar do mau funcionamento do sistema financeiro internacional. Como terapeuta, garante a estabilidade e age portanto em função do interesse geral dos investidores, em especial dos investidores institucionais. Como membros da «troika», as instituições europeias alinharam com esse actor, a tal ponto que os políticos, na medida em que actuam nessa função, podem refugiar-se no papel de agentes que operam no estrito respeito das regras e a quem não é possível pedir contas.
Esta dissolução da política na conformidade com os mercados pode talvez explicar a insolência com a qual os representantes do governo alemão, que são pessoas de elevada moralidade, negam a co-responsabilidade política nas consequências sociais devastadoras que no entanto aceitaram como líderes de opinião no Conselho Europeu, quando impuseram o programa neoliberal para as economias.
O escândalo dos escândalos é a intransigência com a qual o governo alemão assume o seu papel de líder. A Alemanha deve o impulso que lhe permitiu ter a ascensão económica de que se alimenta ainda hoje à generosidade das nações de credores que, aquando do acordo de Londres, em 1954, eliminaram com um simples traço cerca de metade das suas dívidas.
Mas o essencial não é o embaraço moral, mas sim o testemunho político: as elites políticas da Europa já não têm o direito de se esconder atrás dos seus eleitores e de fugirem a alternativas perante as quais nos coloca uma comunidade monetária politicamente inacabada. São os cidadãos, não os banqueiros, que devem ter a última palavra sobre questões que dizem respeito ao destino europeu.
A sonolência pós-democrática da opinião pública deve-se também ao facto de a imprensa se ter inclinado para um jornalismo de «enquadramento», que avança de mão dada com a classe política e se preocupa com o bem-estar dos seus clientes.

2 Jul 2015