Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAnabela Santiago, académica: “A China é reformista e moderada” Anabela Santiago acaba de defender na Universidade de Aveiro a tese de doutoramento que analisa como a China se tem posicionado, nas últimas décadas, como actor importante na “Governança Global de Saúde”. Hoje, Pequim procura “mecanismos alternativos” de cooperação no “Sul Global” e tenta construir um modelo alternativo à Organização Mundial de Saúde Comecemos pelo conceito de governança global de saúde (GGS). Trata-se de um conceito mais contemporâneo ou relativo ao período do pós-II Guerra e fundação da Organização Mundial de Saúde (OMS)? Quais têm sido os principais actores desta governança até ao crescimento da China? A GGS é um conceito cuja proeminência e relevância cresceram significativamente no século XXI, em grande parte impulsionada pela globalização económica e pela interconexão mundial. Embora a saúde global tenha desde sempre transcendido as fronteiras nacionais, exigindo abordagens multidisciplinares e cooperação internacional, apenas a partir de da década de 1990 é que se tomou maior consciência dela. Historicamente, a GGS tem sido influenciada predominantemente por potências ocidentais e por valores neoliberais. Os principais actores desta governança, até ao crescimento da China, foram historicamente marcados por intervenções de entidades como a OMS e organizações não-governamentais, predominantemente norte-americanas e europeias. Uma das conclusões da sua tese de doutoramento é que a China tem vindo a posicionar-se de forma progressiva nessa liderança. Esse posicionamento começou concretamente quando e porquê? Sim, a China tem-se posicionado progressivamente como um actor de relevo na evolução do sistema de GGS. Embora não seja possível apontar uma data exacta de início, a China evoluiu de um país relativamente isolado para um actor principal nas arenas política, económica e tecnológica globais. A sua crescente influência económica e política representa uma mudança também na dinâmica histórica da GGS, sendo que já na década de 1960 a China tentava ter um papel de assistência humanitária em saúde nos países vizinhos e em África. A tese destaca que a experiência da China pode ser vista como um exemplo do que é alcançável quando um Estado escolhe o seu próprio caminho em vez de um modelo pré-estabelecido, alinhando-se com a previsão do século XXI como o “Século da Ásia”. Os anos da pandemia influenciaram esse posicionamento? De que forma? A pandemia de covid-19 realçou a necessidade de cooperação global em saúde, bem como as consequências potenciais da falha em priorizar a saúde global. A tese explora a evolução da Rota da Seda da Saúde antes e depois da pandemia, indicando que os anos da pandemia permitiram uma maior conscientização da necessidade de instrumentos como a Rota da Seda da Saúde como plataformas de cooperação mais efectiva entre as Nações. Embora não esteja detalhado nesta secção específica, é implícito que a pandemia intensificou a actuação da China na diplomacia da saúde e na assistência ao desenvolvimento em saúde. Olhando para as reformas internas que a China tem levado a cabo na área da saúde, quais destaca como mais importantes? Abordo, na tese, as reformas do sistema de saúde da China e destaco que o modelo de governança chinês é uma combinação única de reformas económicas orientadas para o mercado e desenvolvimento liderado pelo Estado, incorporando elementos de neoliberalismo e autoritarismo nas questões políticas em geral, sendo que o sector da saúde não é diferente em nada dos restantes. Uma das contribuições da China mencionadas, reconhecida pela OMS, é o seu modelo de atenção primária à saúde baseado na reconhecida boa prática dos “barefoot doctors” (médicos pés descalços). Além disso, a tese analisa as principais políticas de reforma e o seu progresso e desafios no período de 2009-2018, que compreendem as reformas dos cuidados de saúde primários, a reforma hospitalar e farmacêutica. O programa “Healthy China 2030” também é um referencial importante e ambicioso das reformas domésticas da China em matéria de saúde, abarcando igualmente os determinantes sociais. É intenção de Pequim criar uma entidade alternativa à OMS, ou simplesmente criar um movimento alternativo que possa coexistir com a OMS, no contexto do relacionamento com o Sul Global? Como poderia isso funcionar? A tese sugere que a China adopta uma “abordagem dual”: ao mesmo tempo que se integra nas estruturas globais existentes, forja simultaneamente caminhos alternativos, particularmente através de alianças regionais como os BRICS e parcerias com o Sul Global. Isso indica uma intenção de criar um movimento alternativo que possa coexistir e complementar o papel da OMS, em vez de uma entidade alternativa directa. A China demonstra um claro compromisso em alinhar os objectivos da iniciativa “Belt and Road” com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, mostrando a sua vontade de apresentar estas iniciativas como complementos aos mecanismos de cooperação já existentes na ordem liberal internacional. A visão do Presidente Xi Jinping de uma “Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade”, que inclui a noção de “Comunidade Global de Saúde para Todos”, também aponta para uma nova perspectiva no âmbito da cooperação internacional. Máscaras, vacinas e Medicina Tradicional Chinesa (MTC): quais os produtos ou instrumentos usados pela China para se posicionar como um actor cada vez mais global na GGS? A tese destaca que a China é um provedor indispensável de bens públicos globais de saúde, essenciais para a cadeia de suprimentos de produtos, como é o caso das máscaras e das vacinas. A MTC também é mencionada como um dos grandes contributos da China para a governança global da saúde, com os seus tratamentos derivados de ervas chinesas, alguns dos quais já reconhecidos pela OMS em 2017. Além disso, a assistência médica chinesa e as equipas médicas enviadas para outras regiões do globo são instrumentos importantes da diplomacia da saúde chinesa. Na criação de um movimento ou realidade alternativa à OMS, a China poderá estar a tirar partido da falta de uma representatividade plena nessa mesma OMS, ou lacunas no seu funcionamento? A tese não aborda directamente se a China está a tirar partido de uma falta de representatividade plena na OMS ou de lacunas no seu funcionamento. No entanto, ela enfatiza que o trabalho visa preencher uma lacuna no conhecimento científico em relação ao paradigma da governança da saúde de uma perspectiva não-ocidental e liberal, dando ênfase à China como actor do Sul Global. Isto sugere que a China procura fortalecer modelos alternativos que podem oferecer soluções mais personalizadas para desafios de saúde, diferentes dos defendidos pelos países ocidentais, posicionando-se como um actor reformista moderado. De que forma a política externa da União Europeia (UE) em relação à China tem afectado ou influenciado este posicionamento do país na governança global da saúde? Na tese, a quarta publicação, intitulada “Challenges on the European Union-China cooperation in higher education from ‘people-to-people dialogue’ perspective: The case of health-related joint projects”, explora a cooperação no ensino superior, em particular aquela que inclui projectos relacionados com a saúde. Verifica-se, pois, que, apesar do diálogo estratégico e económico, a deterioração das relações bilaterais UE-China intensificou-se, com a Comissão a assumir um declínio de entusiasmo devido a “contramedidas da China às sanções da UE em direitos humanos, coerção económica e medidas comerciais contra o mercado único, e o posicionamento da China na guerra na Ucrânia”. Embora se reconheçam desafios e tensões, a cooperação no ensino superior, incluindo projectos de saúde, é vista como parte de um quadro mais amplo de construção de parceria estratégica entre a UE e a China. No entanto, evidencia-se que não existe uma longa tradição de cooperação em saúde entre a UE e a China no ensino superior, e que existem poucos projectos conjuntos em comparação com o panorama geral. Sugere-se que tanto a UE como a China deveriam fazer mais esforços para alinhar os currículos de estudos médicos e promover mais pesquisa conjunta em áreas relacionadas com a saúde, doenças infeciosas, entre outros. Na era Trump 2.0, e sem pandemia, qual poderá ser o papel da China na governança global da saúde? Embora a tese seja publicada este ano, foca-se no período que antecede e inclui a pandemia, onde não especulo directamente sobre um cenário futuro de “Trump 2.0” sem pandemia. No entanto, a tese argumenta que a China não é apenas um participante, mas uma força reformista moderada na formação das normas de saúde globais. Independentemente de cenários políticos futuros, a sua crescente influência económica e política, a diplomacia estratégica em saúde, as reformas internas e iniciativas como a Rota da Seda da Saúde continuarão a moldar o seu papel na governança global da saúde. A visão de uma “Comunidade Global de Saúde para Todos” também permanece como um princípio orientador para os esforços da China. Este poder da China na GGS verifica-se mais com acordos bilaterais ou multilaterais? A tese sugere que o poder da China na governança global da saúde se manifesta tanto através de acordos bilaterais quanto multilaterais, mas com uma ênfase crescente em certas formas de cooperação que fortalecem o seu papel no Sul Global e através de mecanismos alternativos. Embora a tese não quantifique explicitamente a predominância entre bilateral e multilateral, o foco nas alianças regionais (BRICS) e parcerias com o Sul Global (que frequentemente envolvem acordos bilaterais e iniciativas de cooperação de grupo) e a Rota da Seda da Saúde indicam uma abordagem híbrida.
Andreia Sofia Silva Grande Plano ManchetePandemia | Exigida maior transparência na comunicação com a população Analistas ouvidos pelo HM criticam a forma como o Governo tem comunicado medidas e decisões relacionadas com a pandemia. Pouca transparência, decisões erradas e falta de responsabilização estão no topo das críticas, mas também o curto espaço de tempo entre o anúncio de novas medidas e a sua entrada em vigor Medidas anunciadas de um dia para o outro ou ausências de dirigentes em conferências de imprensa, sem que haja possibilidade de dar resposta a acontecimentos concretos são algumas das situações que têm pautado a forma como o Governo comunica medidas e decisões relacionadas com o surto de covid-19. A situação complicou-se quando foi decretada a obrigatoriedade de teste de ácido nucleico para os trabalhadores dos casinos e dos estaleiros de construção poderem trabalhar. Num dia em que acabou por ser içado sinal 1 de tempestade, e debaixo de uma chuva intensa, o caos gerou-se com grande concentração de pessoas. As autoridades acabariam por alterar a medida, exigindo apenas a realização de teste rápido. Alvis Lo, director dos Serviços de Saúde (SSM), não deu respostas sobre esse caso por não ter estado presente na conferência de imprensa, deixando as explicações sob responsabilidade da médica Leong Iek Hou, coordenadora do Centro de Coordenação e de contingência do novo tipo de coronavírus, que recusou responsabilidades por ser “só uma médica”. Isto depois de Alvis Lo ter dito que as conferências de imprensa não são “um talk-show” e que servem apenas para anunciar medidas e não para dar respostas a casos concretos. Na ocasião, Leong Iek Hou declarou que Alvis Lo estava “muito ocupado”. “O trabalho de controlo da pandemia é muito complexo e com muitas etapas. Todos os trabalhos precisam do senhor director, por isso, estou aqui hoje para vos responder”, adicionou. Na conferência de imprensa de imprensa seguinte, o director dos SSM reapareceu, acompanhado da secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Elsie Ao Ieong U, e o secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong. O analista política Larry So expressou ao HM o desejo que “o Governo seja mais transparente na tomada de decisões, para que desta forma as medidas possam ser mais efectivas”. “Nem sempre o director dos SSM aparece nas conferências de imprensa, a não ser que tenha de anunciar alguma nova medida. Tivemos o caso dos trabalhadores dos estaleiros e casinos e isso gerou alguma confusão. Parece que o Governo, em certa medida, não estava preparado para o que ia acontecer. Não prepararam o processo e terão acelerado a decisão.” Larry So adiantou também que, nesta fase da pandemia, “uma série de medidas que são implementadas num curto espaço de tempo”, dando azo a interpretações erradas ou desadequadas. “Há uma discrepância entre a decisão e a política, incluindo a parte da implementação. Em alguns casos, [como foi o caso da corrida dos trabalhadores aos testes, as autoridades] mostraram que simplesmente não estão preparadas”, frisou. Recorde-se que outras medidas de anunciadas a poucas horas de entrarem em vigor mereceram críticas nas redes sociais, tais como os testes de ácido nucleico obrigatórios para os grupos-chave de trabalhadores de segurança e limpeza do sector de administração predial, anunciado na madrugada do dia para realizar os testes; assim como a necessidade de fotografar a caixa do teste rápido de antigénio na submissão do resultado na plataforma dos SSM, medida anunciada no próprio dia. Casos lamentáveis O deputado José Pereira Coutinho também condena a forma como o Governo comunica com a população as medidas de combate à pandemia. “Lamento que tenham sido restringidas as perguntas dos jornalistas a casos concretos sobre a pandemia. Acho lamentável e é uma forma de pressionar os jornalistas a formular certas perguntas. Se é para ser nesse formato mais vale no futuro o Gabinete de Comunicação Social publicar notas de imprensa aos jornalistas a fim de evitar a perda de tempo de assistir a conferências de imprensa em directo cada vez mais limitativas.” O deputado fala do caso dos trabalhadores obrigados a fazer teste debaixo da chuva, que foi “um fiasco”. “As autoridades esquecem-se que, mesmo que a pessoa faça a marcação, tem de esperar muito tempo na fila. É a própria Administração que não respeita o horário escolhido pelas pessoas.” “Numa situação em que era expectável que os jornalistas fizessem perguntas sobre esse fiasco não esteve o director [dos SSM], dois subdirectores ou a própria secretária [Elsie Ao Ieong U]. O Chefe do Executivo esteve em Hong Kong, mas isso não significa que outros dirigentes não possam dar a cara. É nos momentos mais difíceis que se devem assumir as responsabilidades pelos momentos que não correm tão bem. Uma jornalista perguntou directamente onde estava o director dos SSM e é incrível que não assumam a responsabilidade. Alguém tem de ser demitido do cargo”, apontou Pereira Coutinho. O deputado fala ainda situações pouco coerentes na gestão da pandemia. “Avisam-se as pessoas para não se deslocarem para muito longe para realizar os testes. Mas depois dizem que não convém fazer testes onde há muitas pessoas, devendo ir a outro local fora da zona de residência. É um contra-senso.” Coutinho não esquece a decisão das autoridades de colocarem pessoas que testem positivo à covid-19, e que não se conhecem, no mesmo quarto para a realização da quarentena. “Se não tivesse visto a conferência de imprensa não acreditava que estão a colocar um homem e uma mulher desconhecidos no mesmo quarto de hotel. Não se pode comparar os quartos de hotel, que estão fechados, com os quartos dos hospitais. Se a mulher for coagida ou violada e não tiver tempo de chamar alguém, quem tem autorização para salvar a vítima? Esta medida é uma estupidez.” Em termos gerais, o deputado entende que Macau está num estado de “paranóia”. “As pessoas estão stressadas, há muitas doenças do foro psicológico e a economia está a afundar-se”, adiantou. Uma “má imagem” Para Jorge Fão, dirigente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC), a ausência de Alvis Lo na conferência de imprensa deu uma “má imagem à Administração”. “Houve uma enchente enorme para realizar o teste, as pessoas não estavam com máscara, empurravam-se. Criou-se uma situação mais perigosa em termos de contágio do que antes e, depois, o Governo acabou por dar o dito por não dito, e decretar a realização dos testes em casa. A comunicação tem sido muita, recebemos três a quatro mensagens por dia no telemóvel. Mas essas mensagens não chegam, porque quando se faz uma conferência de imprensa há que estar preparado para ser pressionado, porque os jornalistas não estão lá só para ouvir”, indicou o antigo deputado e dirigente associativo. O número de casos de covid-19 tem vindo a crescer diariamente e foram inclusivamente registadas duas mortes ligadas a infecções desde o início da pandemia. O Governo tem anunciado medidas de apoio económico para a população e empresas lidarem com os efeitos negativos da política de casos zero, mas Jorge Fão entende que, mais cedo ou mais tarde, os casinos vão ter de fechar portas. “Há a questão controversa dos casinos. O Governo não teve coragem de os encerrar, mas penso que vai ter de o fazer. Mesmo que os casinos estejam abertos agora não vão ter negócio praticamente nenhum por causa da exigência do teste para entrar.” No domingo, a conferência de imprensa do Centro de Coordenação e de contingência do novo tipo de coronavírus contou com a presença de vários secretários, uma vez que foram anunciadas mais medidas de apoio económico. O modelo de comunicação do Governo foi um assunto abordado. “Temos estado atentos às questões e entrado em comunicação com os serviços competentes. Todas as opiniões são ouvidas. Temos uma divisão de tarefas, e quando se trata de situações mais severas estamos sempre aqui presentes. Mas, se tiverem alguma necessidade de colocar as questões podem fazê-lo por diferentes meios”, adiantou a secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Elsie Ao Ieong U. Por sua vez, o secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong, referiu que “todos os presentes representam o Governo, assim como o director [dos SSM] e outros colegas”. “Espero que transmitam melhor essas mensagens. Espero a vossa compreensão, a forma como interpretam as coisas é muito importante”, rematou.