António Cabrita h | Artes, Letras e IdeiasO Complexo de Marco Polo [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omprei hoje na rua As Viagens de Marco Polo, que não relia há uma década. O que me recordou um conceito que criei para um artigo científico: o complexo de Marco Polo. O Marco Polo, um aventureiro e navegador de Veneza, fez a mais espantosa viagem europeia do século XIII e viajou para o Oriente, tendo estado na China 20 anos. Foi tal a sua integração que foi embaixador do Imperador da china, gozando de prestígio e poder. Regressado a Itália, com 41 anos, foi feito prisioneiro dos Genoveses, numa batalha. E na prisão encontrou o cronista Rustichello da Pisa, a quem relatou as suas viagens e os reinos do Oriente. Só que o relato do veneziano era cru e de antemão jornalístico e destituído dos seres fabulosos, lendas e maravilhamentos que recheavam as crónicas da época. E Rustichello, para tornar o relato credível, acrescentou gordura “mitológica” ao que Marco Polo contara, fantasias comuns ao imaginário da época e que compusessem um certo “efeito de real”. A esta necessidade de irreais para tornar um discurso verosímil é que eu chamei o Complexo de Marco Polo. Sem adivinhar que no século XXI este modo patológico de ler a realidade se tornaria uma constante da paisagem política. As fake news, na sua inversão da realidade, representam esta patologia investida de modo imperial. O que evidentemente só acontece em períodos de mutação civilizacional, quando os valores antigos se diluem e os novos ainda não se firmaram. Estado límbico em que assomam os oportunistas destituídos da qualidade maior dos verdadeiros líderes: a grandeza humana. O poder tem muitos inquilinos, já a grandeza é habitada por poucos. Grandeza: tinha-a o presidente Mujica do Uruguai, que podia ter comido, como os outros, no poleiro do poder e renunciou, optando por uma pobreza essencial, franciscana. Paradoxalmente pode assim ser generoso para com o seu povo, servindo-o e deixando-o melhor do que estava antes. Também paradoxalmente, no cárcere, se apossou Mandela da sua nobreza. Em vez de alimentar o ressentimento e o ódio, Mandela adquiriu na relação com o seu carcereiro bóer as propriedades do perdão que o tornaram grande, porque aprendeu a pensar contra si mesmo e os primeiros impulsos. No fim da vida apareceu uma biografia que lhe debotava a imagem; referia-se a um comportamento repreensível com as primeiras mulheres que amou, mas Mandela não usou do seu poder para abafar a revelação – que com certeza o incomodava – e com esse gesto quis demonstrar que mesmo os líderes são humanos e falíveis mas que o que importa é aquilo em que nos tornamos. Grandeza. Grandeza teve Kofi Annan quando percebeu que a comunidade à qual tinha de dedicar a sua vida não era a ganense mas outra mais alargada, a da humanidade, e se tornou um líder da paz e um reconciliador que só falhou – como na Síria – quando não lhe deram os meios para isso. De resto, mesmo quando desautorizado, como na invasão do Iraque, era ele quem tinha razão. E entre outras coisas deixou como legado o princípio da “responsabilidade de proteger”, o qual redefiniu durante algum tempo os rumos da diplomacia e da intervenção humanitária. Segundo esta ideia a opressão de um povo pelo seu governo é também uma ameaça à estabilidade dos outros países. Ideia de uma co-responsabilidade que, por egoísmo e cinismo da onda neo-liberal, infelizmente tem conhecido retrocessos. Grandeza tinha Edward Said que mesmo confessando «ainda não fui capaz de compreender o que significa amar um país», dedicou décadas à causa palestiniana, embora sem ter abdicado um grama de espírito crítico. Falta grandeza aos líderes políticos da actualidade – impreparados, falhos de energia, privilegiam os golpes de bastidores. A um bom adversário que os ajude a superarem-se e melhorar preferem não tê-lo; e confundem “maquilhagem” com comunicação. Quando é assim é precisamente pela comunicação que tudo começa a patear. Como em Trump que já não comunica, agride e grunhe, à medida que lhe vão caindo as máscaras. Que uma potencia mundial tenha como líder um homem que é um hipopótamo numa loja de loiças, de um capricho que só se conhece dos mais loucos dos Césares, seria da ordem do mistério não fora isso provar simplesmente que os povos não tiram lições da História, ou que pelo menos a experiencia humana só é reconhecida como tal se for incarnada – chegando através do exemplo alheio não é encarada devidamente dado que cada povo se julga portador de um destino de excepção. Infere-se aqui outra norma atordoadora: cada país dispensa as lições da História e tem de passar pela provação do erro e de errar cega e voluntariamente, para se convencer a si mesmo de ter uma identidade que vale a pena, sacrificando tudo e todos. Cada povo cresce assim mais pelo bordo e a soma dos seus desastres do que como efeito de boas políticas de desenvolvimento. Há uma degradante atracção pela entropia na prática política quando se considera que uma má escolha é uma boa escolha apenas por ter sido uma escolha nossa. Talvez porque o poder, violência física mesclada na violência simbólica, não sabe “unificar” senão enveredando pelo padrão da desordem. O dividir para reinar. Como é um padrão parece ser uma ortopedia racional: não é, é apenas o efeito do complexo de Marco Polo, que irrealiza de tal forma a realidade que até simula a verdade com uma mentira de grande aparato técnico. Simultaneamente à perda de grandeza no universo da ética política, a este mergulho na insignificância que tudo relativiza no quotidiano, constatamos que o mal na sua suprema manifestação tradicional – o demoníaco – desapareceu. Ou é reificado, transformado em espectáculo, como na recente série televisiva Lucifer. Manifestação da loucura normal. Entretanto, como dizia Popper é mais fácil falsear que verificar uma hipótese, para que não se quebrem as rotinas, o que Marco Polo aprendeu à sua custa quando viu na sua sombra um desvio de direcção.