Vamos ao Nimas?

Só hoje, pela quinta vez em que vejo “A intriga internacional”, de Hitchcock – desta para o dar a conhecer às minhas filhas mais novas – é que dou conta do que me fora ocultado, até aqui. E pasmo. Pasmo do que não conseguia ver.

A dado momento de tão intrincada intriga, Roger Thornhill (Cary Grant) chega à inesquecível casa de Vandamn/James Mason, no topo do Monte Rushmore, vivenda que se desenvolve sobre o abismo (evocando a Casa Sobre a Cascata de Frank Lloyd Wright) e que se encaixa perfeitamente no cenário, com suas linhas horizontais nítidas (até parece embutida na pedra) e os vários cantiléveres. Também o interior, veremos depois, apresenta muitos elementos naturais, incluindo madeira e calcário.

Esta casa foi construída inteiramente nos palcos da MGM em Culver City. Os interiores foram construídos como sets de filmagem em escala real. Alguns dos exteriores foram igualmente montados no plateau como as vigas de aço apoiando o cantiléver, um elemento que não teria sido usado por Wright mas necessário para fornecer a Cary Grant uma forma de escalar fisicamente o exterior da estrutura.

Todas as cenas ocorreram ao fim de dia noite, para que os efeitos ficassem mais realistas.

O que nunca havia conseguido ver e que agora se me enfiou à primeira olhos dentro, como um argueiro que incomoda e não sai, é que a casa de Vandemn mais não é que a representação estilizada do Dragão, os cantiléveres são a maxila do monstro, e toda a cena afinal evoca a acção de S. Jorge, que também se meteu no insensato duelo com a criatura demoníaca para salvar uma pobre rapariga, a filha do rei da Líbia. Neste caso trata-se de salvar Eve Kendall/ Eva Marie Saint, a sensualíssima e misteriosa espia que só nesta cena se comprovará que não tem uma língua bífida (como os lagartos e dragões) e estar do lado de Thornhil, um filho de sua mãe América.

Em concomitância, as irregularidades da pedra nas paredes do exterior da casa, por onde Thornhil trepa, figuram as escamas do dragão, e toda a sequência adquire uma cândida, mas resoluta leitura política. Toda a aventura neste thriller, não nos podemos esquecer, evoca a Guerra Fria e o filme (lua de mel no comboio à parte) praticamente termina com Cary Grant pendurado no nariz da figura de George Washington, nesse encaixe simbólico que é o Monte Rushmore. Lembremos, a vitória de São Jorge sobre o dragão metaforizava a vitória sobre as hostes islâmicas na época das Cruzadas, e neste caso temos de um lado uma mitologia arcaica e telúrica (o dragão do comunismo) contra a benigna racionalidade de quem molda as energias selvagens da natureza num talhe antropomórfico, regulado. E eis Eve, que desde a primeira cena se comportou sempre como uma verdadeira Lilith, convertida ao “humanismo”: domada e adestrada para a lida da casa, como senhora Thornhill.

Desta vez, não precisando mais de estar atento à história, não fui transportado pelo transe da acção e vi o que lá estava. E o engenho do filme está em ser simultaneamente um filme de acção e uma “séria” alegoria política.

Vi também o que não gostava de ter visto em “The Thomas Crow Affair”, de Norman Jewinson, o original, de 1968. Não o revia desde que fora fascinado em miúdo (devo ter visto o filme com doze, treze anos) pelo modo de recrutamento para o assalto, com os faróis no apartamento a encadearem quem responde ao anúncio e impedindo assim que o cérebro do golpe seja identificado. A inteligência do processo fascinara-me (na minha memória durava imensos minutos, quando na realidade a cena é breve) a tal ponto que não me recordava da cena do jogo de xadrez entre Thomas Crow/Steve Mcqueen e Vicky/ Faye Dunaway, e que é verdadeiramente a cena antológica do filme.

O que hoje se retém do filme é menos a inteligência com que o crime (o assalto ao banco) é cometido como a inteligência prenhe de erotismo da investigadora dos seguros, Vicki Anderson. Personagem que aliás tem o mesmo desplante de Eve Kendall, a mesma abrupta honestidade que faz do jogo da verdade um trunfo sensual e uma idêntica vocação para desfrutar, apesar de todos os riscos, da promessa do sexo. Duas Liliths.

Revendo agora o filme, não me lembro de outro com a Faye Dunaway em que funcione tão bem a química entre as personagens e de alguma vez a ter achado tão atraente. E onde há bela vem o senão.

Na cena do jogo de xadrez, excelente na arquitectura da decoupage, há um contraste desconcertante entre os grandes planos de rosto dela (de um desenho e delicadeza ímpares) e os grandes planos das mãos, que movem as peças e vão revelando em vários meneios inadvertidos a geometria do desejo que se instala. Porquê? Não pela natureza dos gestos, que rimam com a situação, mas por causa de um adorno que marcará talvez uma época mas que quando o vemos fora do seu tempo devém vulgar e contrastante com o resto da figura. Falo das unhas postiças de Vicki, que de repente é uma deusa com adereços de manicure comprados no Centro Comercial da Mouraria. O que faz com que não bata a bota com a perdigota, a sofisticação do resto torna imperdoável a vulgaridade. No sugestivo plano em que Vicki “masturba” o bispo, aquelas unhas são cascos grosseiros e adivinha-se ali uma circuncisão sem anestesia em vez do deleite prometido. E nos pormenores está Deus e a Arte.
Quanto a Faye Dunaway, minha Nossa Senhora – que pena eu ser ateu.

9 Dez 2021