A meretriz Blanche Lachmann

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uitas são as versões fantasiosas e contraditórias da história de Madame Paiva, a mais bem sucedida cortesã parisiense do século XIX, que encheram as páginas dos jornais parisienses, “menos atarefada nos assuntos grávidos da política, da indústria e da sã moral”, segundo Camilo Castelo Branco.

Esther Blanche Lachmann (1819-1884) era filha de pais polacos judeus exilados na Rússia (pois, após este país anexar a Polónia em 1815, muitos foram os judeus que para aí se mudaram), apesar do historiador Padre Manuel Teixeira dizer ser “filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia”. Em Moscovo, com 17 anos casou-se com um alfaiate francês a 11 de Agosto de 1836, de quem no ano seguinte teve um filho Antoine. Afundada na pobreza, sem horizontes, numa monótona vida dura e de dificuldades, resolveu fugir e por volta de 1840, abandonou para sempre o marido e filho. Apareceu em Paris, instalada junto à igreja de Notre Dame de Lorette, onde se introduziu no milieu da prostituição, com o nome de Thérèse. A sua esbelta figura abriu caminho de capital em capital e em Berlim terá começado a actividade de espia ao serviço da Alemanha, passando por Viena e Istambul, onde foi a favorita do local Sultão. Por volta de 1841 chegou à estância alemã de Ems, onde encontrou Heinrich Herz, ela com 22 e ele 35 anos. Entre 1841 e 1847/8 viveu em Paris amancebada com esse famoso pianista e compositor e através do salon Herz, por ele anteriormente criado, ingressou no meio musical e intelectual, convivendo com artistas como Berlioz e Offenbach, tendo aí patrocinado a estreia de muitos jovens profissionais. Conheceu Franz Liszt e Richard Wagner e escritores como Théophile Gautier e Emile de Girardin, sendo então uma das mulheres mais atraentes de Paris. Influenciada por esse ambiente, aprendeu a tocar piano e com Henri teve uma filha, Henriette. Escondida como senhora Herz, aventurou-se a “sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe”, até que certo dia, ao chegar a um evento ouviu: <A madame enganou-se na porta>. Percebeu ter sido desvelado o segredo da sua concubinagem, sendo “expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade”, nas palavras de Camilo Castelo Branco. Este episódio terá acordado nela a voragem para as suas extravagâncias, com que lapidou a pequena fortuna de Herz. Tal obrigou-o em 1848 a partir numa tournée pelos Estados Unidos, que durou cinco anos, altura em que os pais de Herz a colocaram fora de casa.

Com os milordes em Londres

Sozinha e sem dinheiro ainda pensou em se suicidar, não fosse a ajuda de Teófilo Gautier, do jornalista Jules le Comte e da amiga Ester Guimont, que a apresentou ao famoso modista Camilo. Este aconselhou-a a ir para Londres e colocou-lhe à disposição toda a indumentária. Outra versão refere-a já na capital do Reino Unido, instalada numa pensão que hospedava mulheres da sua condição, mas sem grande sorte com os clientes. As parcas economias rapidamente desapareciam e mal alimentada, doente e desesperada, tomou como solução suicidar-se. Valeu-lhe a dona da estalagem, que lhe propôs adiar tal acto e ofereceu-lhe um camarote na ópera para aí se expor. Se não resultasse, teria o dia seguinte para o realizar. Assim, à sua fulminante formosura ajuntou um vestuário de espaventos e sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden, onde logo conseguiu dez fortunas a seus pés.

Esse período em que esteve em Londres, de aproximadamente um ano, por volta de 1848-49, é vagamente descrito pelos autores que sobre ela escreveram e do qual Camilo Castelo Branco refere, “fez que o rio Pactolo, representado por alguns milordes, lhe lambesse os pés com as suas ondas de ouro”. O primeiro deles foi Edward Stanley, o 2º Barão Stanley de Alderley, seu amante por algum tempo, seguindo-se-lhe um diplomata e político francês, Antoine Alfred Agenor, que mais tarde se tornou o 10.º Duque de Gramont, amigo de Louis Napoleon. E continuando pelo que se pode ler no artigo La Païva, colocado na internet, uma ficção da argumentista americana Cornelia Otis Skinner, nascida já a protagonista da sua história tinha morrido, onde narra o episódio (talvez por ela inventado) mais interessante da Mad. Blanche no período da estadia na capital inglesa. Refere-se ao banqueiro Adolphe Gaiffe (apesar de na biografia aparecer como homem de negócios e jornalista político), que apostara com uns amigos conseguir ter relações sem pagar com a dita madame. Blanche aceitou, mas em troca teria ele que queimar vinte notas de mil francos, uma em cada trinta minutos durante a secção de amor. Substituindo-as por notas falsas, mesmo assim não as conseguiu queimar e foi ela quem tal fez, acreditando ser dinheiro verdadeiro. Assim, ganhou a aposta.

Com a estadia em Londres, Blanche Lachmann fechou para sempre o seu ciclo de pobreza material, pois diz-se ter aí conseguido presentes que totalizaram 40 a 50 mil libras.

Uma prostituta por esposa

Agora Thérèse Esther Blanche Lachmann, já 40 vezes milionária, encontrava-se de novo em Paris, a ser galanteada por “um dos cinco mil príncipes russos que dão mobília nova aos bordéis parisienses”, nas palavras de Camilo Castelo Branco. O seu marido, Antoine Hycacinthe Villoing vem de Moscovo para tentar reatar o casamento, mas ela repudia-o e este, num recanto desta cidade, nunca mais interferiu na vida dela, até que faleceu a 15 de Junho de 1849.

Continuava Thérèse em vigilante sedução, focada sobretudo nos homens de Estado e políticos, atenta aos deslizes confessionais escancarados por carnais desejos, a servirem a sua actividade de espia a favor da Alemanha. A esse mundo, encoberto pelo trabalho de prostituta, faltava apenas um título para conseguir dignidade na sociedade e por isso, já viúva, casou-se a 5 de Junho de 1851 com Albino Francisco de Paiva de Araújo. No dia seguinte à noite de núpcias ela disse-lhe: <queria dormir comigo, e conseguiu-o fazendo-me sua mulher; deu-me o seu nome, eu absolvi-me a noite passada; portei-me como uma mulher honesta – queria uma posição e consegui-a, mas tudo o que tem é uma prostituta por esposa. Não me pode levar a lado nenhum; não pode apresentar-me a ninguém. Por isso, devemos separar-nos; regresse a Portugal que eu fico aqui, usando o seu nome e continuando a ser uma meretriz>.

Não terão sido essas palavras, se realmente ela as pronunciou, que o levaram a dar o tiro pois, só vinte anos mais tarde, a 8 de Novembro de 1872 é que Albino, o boémio macaense, se suicidou em Paris, no patamar das escadas do prédio n.º 11 da Rue Neuve des Mathurins, onde então morava. Carregado de dívidas percebeu não ser mais necessário à diva o seu falso título de marquês, pois ela era já condessa, devido ao casamento um ano antes com um verdadeiro Conde, Henckel von Donnermarck. A luxuriante Paris das luzes já não tinha mais espaço para o Paiva. Triste destino, que então também estava a acontecer a Macau, com o aparecimento de Hong Kong.

7 Abr 2017

Blanche Lachmann, a tal Madame Paiva

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada, com o título Boémio macaense suicida-se em Paris, focamos a vida de Branca Lachmann através de dois autores, um romancista, Camilo Castelo Branco, que diz ser ela uma polaca de nascimento e outro, o historiador Padre Manuel Teixeira, que a refere como “filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia, sendo uma judia polaca” e “favorita do Sultão de Constantinopla, espia da Alemanha e veio a casar com o alfaiate Francisco Hyacinthe Villoing”. É da tradução deste padre historiador, de um artigo escrito por Peter Flectwood-Hesketh e publicado na revista Country Life de 25 de Setembro de 1969, que complementamos com informações mais detalhadas o anterior texto.

“Ester Paulina Blanche Lachmann nasceu em Moscovo, sendo filha de um pobre alfaiate Martins Lachmann e de sua mulher Ana Maria Klein, judeus refugiados da Polónia. Sobre o seu nascimento aparecem duas datas: – uma, a de 7 de Maio de 1826, dada pelo livro Genealogisches Handbuch der Fürslicher Haüser;” outros, como Frederich Loliée (que em 1914 publicou a relação completa da sua vida), “dão o ano de 1819 – uma diferença de 7 anos”, a qual foi usada por Peter Flectwood-Hesketh. (…) “Aos 17 anos, Teresa – nome que adoptou [somente em Paris] em vez de Ester – casou com Antoine François Hycacinthe Villoing, jovem alfaiate francês tão pobre como ela (ainda que no Handbuch aparece como banqueiro), de quem teve um filho. O jovem casal trabalhava longas horas no rés-do-chão mal iluminado dum prédio de Moscovo. No entanto, Teresa convenceu-se que esta vida não era para ela. Resolvida a alcandorar-se um dia ao pináculo mais elevado da riqueza e do triunfo e fixando uma linha de que nunca mais se desviou, ela, numa bela manhã, lançou-se sozinha para o mundo, abandonando o marido e a sua criança.

Dizem que era dotada duma bela figura, pescoço grego, cabelo espesso castanho-aloirado e olhos soberbos. Com estes atributos, uma inteligência astuta, uma vontade indomável e uma energia quase ilimitada, abriu o seu caminho de capital em capital – Berlim, Viena, Constantinopla – e aí por 1841 chegou à estância alemã de Ems. Aqui encontrou Heinrich Herz, pianista e compositor já célebre, e sentiram-se atraídos imediatamente um pelo outro. Ela tinha 22 anos, ele 35 e depressa Teresa passou a viver com ele como sua <esposa> em Paris, cidade dos seus sonhos, ingressando no seu meio musical e intelectual. Teresa tornara-se, no entanto, uma boa música e com Herz ficaram patronos de muitos jovens profissionais que eram convidados a fazer sua estreia parisiense no salon Herz”. [Heinrich Hertz (1803-1888), um dos mais célebres pianistas e compositores do seu tempo, nascera em Viena, na Áustria, mas adoptou a França como seu país, onde fez a sua vida, sendo professor no Conservatório de Paris. Como na Europa os tempos não eram muito propícios para os judeus, escondeu essa sua origem.]

“Herz estava próspero. Fundou uma fábrica de pianoforte [em 1830], construiu uma casa e um salão de concertos [o salon Herz criado em 1838 na rua de la Victoire, onde muitas vezes Berlioz e Offenbach deram concertos], mas nem os seus recursos bastavam à extravagância de Teresa”, segundo Hesketh. Tal levou Henri Herz em 1848 a “fazer uma tournée na América para recuperar a sua fortuna, deixando Teresa com a criança que tinha dele. Esteve ausente cinco anos e nesse intervalo, os seus parentes puseram Teresa na rua, mas ela levou consigo muitas das suas pertenças”.

Aqui ajustamos tais informações com as de Camilo Castelo Branco que refere, “Ligada primeiro a Herz, pianista célebre, sob a falsa estampilha de esposa, chegou a sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe. Depois, desvelado o segredo da sua concubinagem, foi expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade, e fugiu para Londres, deixando ou levando o pianista”. Compreender-se-á pois a razão dos pais de Herz a terem colocado fora de casa, quando o seu filho se encontrava em digressão pela América e por isso, se desfaz a dúvida que Camilo colocou se terá ou não levado o pianista com ela para Londres. Também o que refere Peter Flectwood-Hesketh sobre o filho que teve de Herz parece ser produto de uma confusão pois este, como mais à frente refere, faleceu em 1862 com 25 anos, sendo assim a data de nascimento a de 1837, logo ainda do tempo em que vivia com o alfaiate. A esse filho [Antoine de seu nome] pagou a educação, apesar de nunca mais o ter visto. Como se pode ler mais à frente nesse artigo, a filha que teve com Herz nascera em 1841/42 e viria a morrer em 1854 com 12 anos. No entanto, há fontes que indicam essa filha, Henriette ter nascido aproximadamente em 1847 e falecido a 1859.

Milionária em Londres

Ainda antes de ter ido para Londres, a senhora Villoing (pois o seu esquecido marido apenas faleceu a 15 de Junho de 1849) retornou à “pobreza, estando demais a mais desesperadamente doente. Teófilo Gautier visitou-a e ela ameaçou suicidar-se; mas prometeu que, se recuperasse, havia de construir um dia a casa mais linda de Paris. Outros foram também em auxílio de Teresa. O jornalista Jules le Comte ajudou-a a ingressar no mundo da moda, ao passo que a sua amiga Ester Guimont apresentou-a a Camilo, famoso modista, que, pressentindo uma cliente promissora, colocou à sua disposição toda a sua indumentária”, segundo refere Peter Flectwood-Hesketh.

Agora sim, em Londres sozinha no seu camarote de ópera, “ameaçada por uma segunda catequese de fome, ajuntou a sua fulminante formosura um vestuário de espaventos, sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden”, como refere Camilo Castelo Branco. “Ornamentada resplendentemente, atraiu depressa a atenção da jeunesse dorée, tirando bom proveito dos amorosos sucessos. Com a confiança restaurada e os cofres repletos, regressou a Paris em 1848”, como refere Flectwood-Hesketh e com ele continuando, “Surgindo novamente como figura conspícua na ópera, Teresa tornou-se objecto de lisonja na imprensa ligeira e entre os seus admiradores não havia nenhum mais devoto do que o jornalista napolitano Angélico Florentino”.

Com a morte do marido, que se estabelecera num recanto de Paris sem nunca interferir na vida dela, faltava agora apenas a Thérèse um título para lhe dar a dignidade, digna da sua opulência. Encontrou tal em Albino Francisco de Paiva de Araújo, que Flectwood-Hesketh diz ser “marquês de Paiva Y Aranja com quem se casou em Passy em 5 de Junho de 1851.”

Mas quem era este macaense, que Thérèse Esther Blanche Lachmann conhecera em Baden-Baden? Os jornais portugueses transcrevendo parte de “notícias, com outras particularidades romanescas e algumas anedotas um pouco boulevardières, revelam não terem obtido perfeito conhecimento do português que deu canonicamente o seu apelido Paiva àquela mundana”, como refere Camilo Castelo Branco.

5 Mar 2017