António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras III 1. Bipolaridade [dropcap]A[/dropcap] ligação da “mania”, ou “estados maníacos” à “euforia”, ou “estados eufóricos” tem um longa história. O que hoje designamos por distúrbio bipolar, com graus de severidade na sua manifestação, é mais exactamente doença maníaco-depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente. Tratamos por tu a bipolaridade como o stress, a ansiedade e a depressão, da mesma forma que tratamos por tu constipações e gripes. Mas o que hoje em dia parece ser um dado com uma evidência difícil de negar — que a bipolaridade é uma doença que contem em si estados opostos, que a mania se pode manifestar na euforia e que a euforia é uma manifestação da mania — não foi sempre um dado adquirido. A oposição e aparente contraposição de um estado a outro, levou os antigos a pensar que se tratava de distúrbios da normalidade diferentes e, aparentemente, sem ligação um ao outro. Ou seja, podia haver surtos de mania e surtos de euforia num mesmo paciente, mas um estado era uma doença e outro estado era outra doença, como pode suceder que um indivíduo, ao longo da sua vida, tenha doenças e quadros clínicos doentios que não têm que ver uns com os outros. O diagnóstico verificava um estado alterado da consciência. Uma sintomatologia de mania era, contudo, diferente de uma sintomatologia da euforia. Assim, procurava-se uma etologia completamente diferente. Em conformidade, as terapias com vista à cura eram também diferentes. Sem dúvida que a história clínica de um individuo desde que nasceu até que morre permite traçar doenças que são configuráveis nessa pessoa. Pessoas diferentes poderão ter tendência para ter histórias clínicas completamente diferentes. Ainda assim, podemos ver uma tendência de uma pessoa para ser atreita a diferentes maleitas. Cada pessoa têm a sua compleição física, sexo, etnia, idade. Podemos traçar quadros comuns de histórias parecidas para indivíduos de uma mesma etnia, localidade, estações do ano, alimentação, hábitos, se saudáveis ou não, idade, sexo. A integração das doenças como alterações da saúde num mesmo indivíduo ou num grupo de indivíduos implica a sua exposição a ambientes idênticos, os mesmos ou diferentes, ou à própria variação de ambientes, mas também à manutenção de regimes dietéticos ou a sua alteração. Um indivíduo está exposto pela sua própria natureza a um ambiente, a um clima, a uma atmosfera, e os factores variam mas sempre em espaços horizontais que se afectam uns aos outros. O clima, a estação do ano, a idade, a geografia, os hábitos alimentares, o modo de vida, o contacto com outros, a prática de exercício desportivo, a profissão tudo combinado numa lógica difícil de perceber em detalhe, identifica o corpo humano como exposto aos elementos: clima, ar, águas, localidade, tempo de vida, modo de vida, sexo, etnia, etc. etc.. Ou seja, o corpo não é o que existe fechado pela epiderme mas o que existe no seu interior táctil e que pode ser segmentado e visto nos seus tecidos, órgãos, aparelhos, ossos, músculos tendões, etc., etc.. mas como organismo vivo está todo ele num todo a priori que é o corpo. Está por outro lado exposto ao que podem ser geografias antropológicas que afectam o corpo próprio. Cada um de nós tende ao confortável, ao saudável, à bondade do seu estado. Quer dizer: uma doença nunca é vista apenas como um sintoma da causa da sua erupção. Uma doença não tem apenas como cura a iniciação do sintoma mas também a supressão da doença. Há doenças que estão já connosco, mas que não se manifestaram, não têm sintomas. Convivemos com doenças que não sabemos que temos, que não foram ou não puderam ter sido diagnosticadas. Os novos métodos e processos de diagnóstico, os exames de rotina, baterias de análises a tudo e mais alguma coisa, ecografias, radiografias, permitem justamente um diagnóstico de sintomas que não vemos, implicam uma detecção de outro nível. Ora quando se percebe a variação do estado da normalidade em quadros clínicos mentais, a primeira aproximação é idêntica. Procura-se uma interpretação simples da relação entre um sintoma e uma doença e a respectiva terapia com vista à cura, procura-se um tratamento. A mania é a alteração de um estado da mente, da alma, do espírito, da psique, para usar uma palavra antiga. Ter a mania de que se é X, quando não se é X. As mais diversas formas de narcisimo, em que se pensa que se é o máximo, nem apenas os maiores, indivíduos que têm por si a mais alta consideração por si, as formas mais assolapadas de paixão, adição, entusiasmo, fascínio e delírio correspondem a alterações do estado de consciência tais que a normalidade corresponde a uma neutralização da sua erupção sintomática. Pensar só num conteúdo, estar “viciado” numa determinada prática, corresponde a uma forma de enamoramento e paixão por um determinado conteúdo, ao ponto de um indivíduo ser disfuncional. Como tratar uma obsessão compulsiva? Como tratar uma paixão? Como anular o carácter fixo de uma ideia? Por que se têm manias? Como se podem controlá-las? Por que ter a mania a, b ou c, mas não x, y e z? Porque se muda de manias? As mesmas perguntas podem ser feitas de forma independente, quando investigamos a depressão. Porque podemos estar deprimidos ou, então, tristes, nostálgicos e melancólicos? Por que razão pode não apetecer nada do que quer que seja? Como tratar uma obsessão compulsiva? Como tratar uma paixão? Como anular o carácter fixo de uma ideia? Por que se têm manias? Como se podem controlá-las? Por que ter a mania a, b ou c, mas não x, y e z? Por que razão se pode conviver e namorar a ideia do suicídio na juventude ou ao encarar becos sem saída? Qual é o sintoma da depressão? Qual é a causa e a razão de ser da depressão? Podemos estar deprimidos na raiz do nosso ser e não termos sintomas? Não podemos também ter sintomas de stress, ansiedade, angústia, tédio, melancolia, nostalgia, tristeza e não sermos doentes mentais? Qual a fronteira entre a psique e o soma? Qual a relação entre esta fronteira estrutural não apenas na vertical: de cima para baixo, mas também horizontal de dentro para fora? E na passividade ou exposição e vulnerabilidade em que o corpo todo dói ou sente prazer? Ser afectado por e estar doente mentalmente resulta da psique? E o corpo não pode afectar a nossa mente? E nós não podemos afectar os outros e ser afectados por eles? Não podemos transformar o mundo em que vivemos como o mundo em que vivemos nos transforma?