João Romão VozesBancarrota em tempos de sucesso [dropcap]D[/dropcap]urante quase dois séculos ofereceu viagens e férias a milhões de pessoas, de todo o mundo para todo o mundo, alimentando sonhos e fantasias, contribuindo para negócios e diplomacias internacionais, inaugurando modelos empresariais e de exploração de mercados. A empresa de origem britânica Thomas Cook, pioneira global em mercados turísticos que mal existiam, resistiu a duas guerras mundiais, dezenas de conflitos bélicos nacionais ou internacionais, epidemias graves, impactos de atentados terroristas e outras crises de maior ou menor dimensão ao longo de 180 anos. Veio a morrer – ou a declarar bancarrota, que é mais ou menos o mesmo – em pleno apogeu mundial da actividade turística, da economia do lazer e do hedonismo (pelo menos para uma parte da população), quando nunca se viajou tanto e para tantos sítios e quando os aviões em permanente circulação ultrapassam largamente o que seria imaginável pelos autores de ficção científica quando em 1841 se criou a Thomas Cook & Son, primeiro para organizar viagens de comboio no interior de Inglaterra, 15 anos depois para promover as primeiras viagens organizadas na Europa e outros dez anos volvidos iniciando processo semelhante nos Estados Unidos. O Grupo Thomas Cook que agora anunciou bancarrota é o resultado da fusão entre a Thomas Cook AG (a sucessora da pioneira Thomas Cook & Son) e da MyTravel Group, que ocorreu em 2007 e havia de deixar sequelas, segundo os analistas da especialidade. Este grupo era o maior operador turístico do mundo e além de reservas de viagens e “pacotes” turísticos – incluindo os diversos serviços inerentes às deslocações de negócios ou lazer – era proprietário das suas próprias cadeias hoteleiras em todos os continentes e de sete companhias de aviação com 117 aviões ao seu serviço. A propriedade do capital social da empresa deixou entretanto de estar maioritariamente em Inglaterra, deslocando-se gradualmente para a Alemanha (sobretudo), a China ou até Portugal (a Fidelidade – tal como o grupo chinês Fosun, proprietário da seguradora – faziam parte da estrutura accionista da Thomas Cook aquando da falência). O grupo empregava cerca de 21.000 pessoas em 16 países, abruptamente atiradas para o desemprego. Os impactos serão muito maiores, no entanto, que uma empresa desta planetária dimensão arrasta muito com a sua queda: companhias aéreas que venderam massivamente lugares a clientes da empresa falida, hotéis cuja ocupação pode depender em mais de 60% dos clientes desta operadora, pequenos prestadores de serviços de restauração, visitas guiadas, animação, entretenimento, aventura, desporto, enfim, toda a panóplia de variados serviços que hoje pode compor pacotes turísticos e de viagens que procuram responder às necessidades diversas de variadíssimos tipos de consumidores. Segundo a imprensa, a Thomas Cook deixa uma dívida de cerca de 380 milhões de euros só a hotéis, com alguns notáveis casos individuais, como o de um hotel mexicano que reclama 3 milhões de euros. Em algumas ilhas gregas, cerca de 40% dos turistas chegam através da Thomas Cook. Em Espanha fala-se no possível encerramento de 500 hotéis, com especial impacto nas Canárias e Baleares. Para agravar a situação, a empresa opera segundo um modelo em que os pagamentos são feitos 3 meses após a utilização dos serviços. Ou seja, declarando a bancarrota no final de Setembro, a Thomas Cook recebeu todos os pagamentos feitos pelos seus clientes pelas reservas mas não pagou qualquer serviço prestado durante toda a época alta do turismo de Verão no hemisfério norte. Com estas e outras criativas habilidades, foram-se protegendo os rendimentos dos altos dirigentes da empresa. É verdade que mais de vinte mil trabalhadores ficaram sem emprego e que os impactos económicos sobre outras empresas – com as suas implicações sociais – demorarão anos a estimar devidamente: não são só estabelecimentos concretos que dependem em larga escala deste tipo de grande operador, mas regiões e territórios que têm semelhante dependência. Muitos casos se arrastarão por tribunais de todo o mundo nos próximos anos, certamente. E muitos terão sido os erros de gestão cometidos ao longo da última década, pelo menos, dizem os analistas. Mas nem por isso deixaram os altos gestores da empresa de auferir generosos rendimentos: Peter Fankhauser, o suíço que presidia a companhia na altura da bancarrota, recebeu 9,5 milhões de euros desde 2014, incluindo mais de 5 milhões como prémio pelo seu magnífico desempenho! Harriet Green tinha ganho 10 milhões entre 2012 e 2014. E mesmo Manny Fontenla-Novoa, que presidiu a empresa entre 2007 e 2011 e contribuiu para uma quebra histórica do seu valor em bolsa, arrecadou pessoalmente quase 19 milhões de euros (o que de resto levou a empresa a rever em baixa os pagamentos de prémios a gestores executivos). Várias causas são apontadas para este fiasco em tempos de grandioso sucesso das empresas turísticas e algumas delas são comuns nas análises dos especialistas. A digitalização e decorrente autonomia dos consumidores que permite a personalização de viagens e a contratualização directa de serviços, dispensando intermediários, será certamente uma delas mas não poderá ser a única. Na realidade, o grupo de origem alemã TUI – o único concorrente com a dimensão da Thomas Cook e agora com uma posição largamente hegemónica no mercado global – sobreviveu sem grandes sobressaltos a esta transição. Não é o caso da Thomas Cook, que em tempos de digitalização de serviços expandiu largamente a sua rede de estabelecimentos físicos ao adquirir uma empresa concorrente – o que implicou investimento na aquisição da outra empresa e depois despesas no despedimentos dos trabalhadores em excesso, totalizando mais de 100 milhões de euros. Viria depois a contratar uma equipa especializada para promover a reconversão das tecnologias digitais da empresa (liderada pela então presidente, que agora trabalha para a IBM), o que acabaria por se revelar mais um investimento milionário falhado. E depois o Brexit e a desvalorização da libra: receber adiantado dos clientes e pagar três meses depois do consumo dos serviços pode ser um excelente negócio mas também pode ser um desastre, caso aconteça uma desvalorização drástica da moeda, como foi o caso. De resto, como o explicou Peter Fankhauser, o presidente da empresa, já após o anúncio da bancarrota, “não fizemos nada mal”. Deve ser isso.