Trilogia

[dropcap]B[/dropcap]alanço como em alto mar, a caminho do vagão-restaurante, ao sabor do ruido embalador do comboio e em busca de uma bebida quente. Segue o coração. Foi como uma voz que ficasse a ecoar depois, desse papel. Um desconhecido, um encontrão brusco de ombros num estremeção da carruagem – agulhas, disse – e seguimos nos nossos sentidos opostos. Mas aquele livro gasto, ficou como se caído, esquecido ou intencional sobre a mesa. A floresta submersa, de B. que abri e folheei aleatoriamente e a surpresa foi bem menor do que o espanto. O fio que ligava Borges a Giacometti. E dentro, o papel dobrado em oito com força, como um marcador nas páginas nuas. Desdobrado como um mapa tantas vezes noutras carruagens, mostra-me uma mão estendida, impressa em tinta esverdeada, fina, a revelar texturas delicadas da pele. Plasmada, como mão de criança. E como se as linhas da mão se tornassem as de um coração-mapa. Ostentando o deslocamento mas não a mudança. Aqui um rio ali uma curva de vida, uma bifurcação. E agulhas, não de pinheiro mas das linhas do comboio. A mudar de direcção. O lugar estranho encontrado no mapa. Abetos. E sigo as linhas até esse ponto no meio da Ásia central.

Enclausurado a dois mil metros de altitude, onde a montanha tomou a floresta no côncavo da mão, como aquela mão. Numa reviravolta em que a terra tremeu e afundou as árvores em águas cristalinas. Que belo. O silêncio das árvores. Elas fingem. Quando se remetem ao mistério do silêncio. Que não é dramática a sua voz reprimida. Elas não viram costas. Esperam. Caminho de mãos nuas e alma limpa para o lugar estranho. A render homenagem ao que é exterior e ícone e verdade e transcendência, porque algo maior tem que haver para que o olhar tenha campo, sem devassar e sem trazer. Fazer parte como prémio de ver. Dar. O que não pertence. Somente pelo pensar. Gostar.

Às vezes eu queria simplesmente que tudo fosse delicado leve e intenso. A aprofundar sem ferir e a demonstrar sem imposição. Sentar-me na margem e mergulhar os olhos. As árvores estão tristes.

Mas a natureza revira-se sobre si própria e desencanta gritos de poesia. Cadinho montanhoso e terno, ferido de realidade sem livro, sem voz, sem ouvido e sem vontade. Em que as coisas são e são mesmo se na sua forma insólita e inesperada de ser. São simplesmente e pasto ao discurso do poder das palavras, que tudo reviram, mesmo o que revolvido em si. Que agonia podia ser esta imagem. Mas é de uma serena e obstinada permanência.

Que bonito, que leve, que intenso. Que estranho. Penso. Os troncos lívidos a despontar das águas e branqueados como ossos descarnados no sol impiedoso do deserto. Nus, de braços decepados e em contrição, direitos, em busca do alto e como se crescendo. Mas nunca o tempo vai vislumbrar novidade acima das águas. Somente o que cresce debaixo delas em segredo. Uma simbiose vegetal a aprisionar de parasitas felizes, algas, os braços generosos mantidos para sempre debaixo dessa água límpida que vista de perto nada guarda para si. Do olhar. De resto, tudo guarda e reserva. Num outro olhar, podiam ser mastros de navios afundados. Ou braços em oração. A floresta submersa, com a floresta de G. aquelas figuras de caminhantes em bronze, corroídas pelo meio e sempre sinónimo de resistência. Tudo o que se pode trazer em palavras sem que elas, as árvores, desmintam.

As árvores são tão dramáticas e intensas se ouvidas de perto. Um pouco do que se silencia perene e em pausa. As montanhas enrugaram numa expressão de sentir e nelas, como uma bolsa lacrimal, este Kaindy Lake, onde se afundou a pequena floresta de abetos, que se desnudou e que no segredo de muitos anos desenvolveu plantas aquáticas, escondidas na profundidade. Vistas no todo, dão essa impressão de estar invertidas, numa mansidão dramática de avestruz que esconde o vasto pescoço nas águas e longe do olhar. Penso onde estaremos, face a este espectáculo do mundo Se nos troncos estéreis em espera e imutáveis, ou abaixo da linha do visível nesse misterioso e pressentido efervescer de vida e ruídos coados. Uma vida que fervilha, como em torno dos ossos dos mortos varejam bichos, enquanto há de que se alimentarem. Percorro com ansiedade as páginas de silêncio à espera do encontro com as melhores palavras. Aquelas em que melhor se lê aquilo que alguém queira nelas colocar como um enfeite festivo. Mas não há rigor no silêncio nem há nas palavras, porque, neste como nelas, há o que lê e o que a si se lê.

Sabemos que interpretamos e como dificilmente há fuga à mutação do real. Como o sentimos. O que nos faz sentir. Num espelho de palavras com que o vemos, definimos e pensamos. Mais perigosamente se fizermos como um fotógrafo que persegue apaixonadamente uma fotografia que sempre quis fazer, até que um dia lhe apareça. E baste carregar no botão da máquina. Seguimos por vezes o mapa como linhas da mão. Seguimos onde leva o coração e é a paisagem que escolhemos que se impõe.

A pensar na propriedade das palavras e em como este silêncio – aqui e lá – pode ser a paragem entre duas estações para repensar o caminho.

Como é estranho esse mundo de árvore que esconde a cabeça. Escuto murmúrios na volta da luz que se faz suave e na água que transparece até ao fundo. Que não esconde, afinal. Como se para que elas possam ver, mesmo de ouvidos tapados e olhos fechados, até ao céu. Que passa até lá abaixo, e vai ao seu encontro como de amigo amuado e triste. Que doçura do céu e da água cristalina. Em redor, somente o presente estático e imutável.

Naquelas aparentes copas, mergulhadas nas águas, imagino a ânsia do silêncio do mundo. As árvores estão tristes. Ou estamos tristes nelas como numa ética estética ou poética que nelas queremos ler. Mas estão em silêncio e isso é certo.

E como é belo este silêncio.

Depois, sinto que chega, talvez por terra, mesmo. Ou sacudindo penas arrepiadas do frio que está. Sei, aí mesmo nas minhas costas onde vai pousar a mão. E quaisquer palavras ditas passarão a ser a voz deste lugar.

15 Abr 2020