Ano do Galo

Já canta o galo.

E fá-lo longo, no risco da aurora.

Algo chora… febril ou flauta,

ou será pauta de um juvenil destino?

 

Já canta o galo.

Ralo o canto por rala a voz.

É atroz o universo: quando nasce…

quando se reduz a um verso.

O mundo escouceia, mal o galo,

com o tal verso, o incendeia.

 

Estremunha a aldeia, o fel desliza.

É dia de santo, não muge brisa.

Súbitos, após a missa, revibram os sinos.

Numa panela, um padre guisa dois assassinos.

 

Cristo, sempre alado, prevê a estação,

talvez o herdeiro: lá p’ra Fevereiro emergirá.

Será gentil, será dotado e de bom grado nos salvará.

 

………….

 

Calou-se o galo.

É um regalo flutuar neste intenso silêncio.

A chuva e o suão, os néons e o pó esmoreceram.

Faz no entanto dó testemunhar um mundo assim.

Ofegante no jardim, madrugada por raiar

e o galo por cantar. Para onde irás se não há mar?

 

Calou-se o galo.

Incertas, as coisas adquirem o seu valor seminal.

Nenhum animal as demora nem ilusões as detêm.

Lêem o jornal na luz da noite.

Freme o açoite, algo crava a jugular.

Não ligues, rapaz: foi ilusão… fora… um ar…

dois coriscos que passeiem na veia da avenida.

Faz o pino e lambe a ferida. Tudo se evaporou…

 

O ano fina-se em amáveis cacarejos.

O galo ainda não cantou.

 

12 Fev 2018