Álvaro Laborinho Lúcio, autor de “As sombras de uma azinheira”: “A vida é ainda um deslumbramento”

Álvaro Laborinho Lúcio, autor, jurista e ex-ministro da Justiça em Portugal, está de regresso à escrita com “As sombras de uma azinheira”. Um romance que conta as mudanças profundas que Portugal viveu com o 25 de Abril de 1974 a partir de duas personagens centrais – João Aurélio, o pai ausente, e Catarina, a filha cheia de dúvidas. Escrever é um acto de prazer para Laborinho Lúcio, que recorda a imensa alegria que sentiu com a Revolução de Abril

 

O seu novo romance parte de um acontecimento histórico em Portugal – o 25 de Abril – para uma história ficcionada. Como foi este processo?

Todos concordamos que esse foi um período de grande transição no país. O que me estimulou a escrever este livro foi a aproximação do aniversário dos primeiros 50 anos do 25 de Abril. A ideia era tentarmo-nos aproximar desta data e começarmos, como cidadãos, a ter algum contributo para essas celebrações, para que não sejam apenas uma festa mas também uma reflexão sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que pode acontecer nos próximos anos.

Porquê o formato romance, e não outro?

Poderia ter escrito um ensaio. Mas entendi que a ficção era, talvez, a forma mais indicada de poder ter algum contributo para essa aproximação dos 50 anos. Este é um romance que não incorpora o debate político, e passa-se entre os 45 anos que antecederam o 25 Abril de 1974 e os 45 anos que lhe sucederam. [A história] acontece no seio de uma família cujo núcleo central era composto por um marido e mulher que há muito tempo ambicionavam uma mudança política em Portugal e que, ao mesmo tempo, desejavam ter um filho. Acontece que, por mero acaso, na noite de 24 para 25 de Abril, a mulher dá à luz o seu primeiro bebé, ao mesmo tempo que o país viu ser dada à luz a mudança que esse casal ambicionava.

Nasce então Catarina.

Sim. Com esse nascimento morre a sua mãe no parto. Temos então ao longo do romance um pai que renuncia a tudo, ao desígnio da mudança, à sua militância política ligada ao Partido Comunista Português e resolve abandonar tudo, inclusivamente a sua filha, e passar a vida na aldeia, que também vai definhando aos poucos. Ele fica virado para o passado e torna-se um desistente, porque, no fundo, naquele momento percebeu que não iria ver nada realizar-se na sua vida. Por sua vez, o bebé fica entregue aos cuidados dos tios, que vai fazer a sua vida nos 45 anos que sucedem ao 25 de Abril. Ao longo dessa vida Catarina vive sempre uma grande incerteza, que é saber se para ela é apenas a data de uma revolução, ou se tem direito a uma identidade. O 25 de Abril é a data da revolução ou é a data do seu nascimento? É esta a questão que ela interioriza ao longo da vida que nos dá um Portugal novo, também à procura da sua identidade.

Isso permite ao leitor uma espécie de exercício de reflexão.

Permite que o leitor olhe para as lutas de uma classe média comum envolvida numa luta contra a ditadura, que levou ao 25 de Abril. É como se essa luta se cruzasse com a redefinição da identidade de um país e com as pessoas que se tentam definir nesse Portugal novo. Espero, como escritor, que os leitores se encontrem nestas mudanças radicais e, ao mesmo tempo, nas várias contradições que essas mudanças foram propondo a cada um de nós, como desafios para a nossa própria identidade.

O livro apresenta então duas personagens centrais, Catarina e o pai, que possuem um forte simbolismo.

Sim. Estas personagens diferem um pouco das outras porque o autor não se preocupou com a sua consistência. Estas duas personagens são os olhos que o autor coloca no rosto dos leitores para que eles vejam, através delas, a proposta que ele lhes faz de avaliação do que foi o país antes do 25 de Abril e do que é o país depois. Daí que haja nelas uma personagem muito construída, fechada sobre si própria, que é o João Aurélio, e a parte relativa à Catarina, que é uma personagem em construção, feita por ela e pelo autor. Ao longo da narrativa há como que um diálogo entre os dois.

Este romance, não incorporando o debate político puro e duro, tem sempre esta perspectiva política.

Este é um livro em que somos chamados pelo exterior e olhamos para as coisas com uma perspectiva política de aproximação ou distanciamento consoante o ponto de vista. Os três primeiros livros que escrevi são romances mais intimistas. Este é uma leitura crítica face ao exterior e ao posicionamento que esse exterior deve ter e que nos desafia.

Quando nos aproximamos dos 50 anos do 25 de Abril é premente pensar a sociedade, o sistema político e a democracia que existe hoje em Portugal? Este livro é um exercício de reflexão sobre tudo isso, ainda que de forma metaforizada?

Sim, é sempre dessa forma. Estamos a falar de um romance, uma obra de ficção. Há um momento em que João Aurélio, no fim da vida, e passeando no cemitério, falando com os mortos, acaba por falar com um velho padre da região onde vivia, que lhe vem dizer para ter cuidado com a história da revolução, pois todas as revoluções acabam por caminhar para sentidos que não lhe estavam destinados no início, e que haveria o risco de acabar numa nova ditadura. Mas há questões relacionadas com a profissão da personagem Catarina e os lamentos que ela tem por não conseguir, na sua actividade, colocar a Academia a discutir a essência da política. A ideia é que no quotidiano das nossas famílias é que devemos ser celebrantes do 25 de Abril, temos de estar vivos, activos e responsáveis pelo que for o destino do nosso dia-a-dia e a definição do nosso futuro.

Espera que o livro lance este debate? Que espera dos leitores com esta obra?

Agora estou na fase da angústia, porque acabei o que tinha para fazer, o livro já está nas livrarias e deixou de ser meu, passou a ser dos leitores. Agora é a minha vez de esperar o que os leitores me dizem do livro que eles entendem que é. Ficaria muito feliz se me dissessem que se identificam com ele, sendo um livro que coloca os leitores perante as suas escolhas, que é identificar-se com as várias personagens e as questões que estas colocam. Neste ponto há uma aproximação deste livro com os anteriores, porque nenhum dos livros que publiquei até agora são romances fechados. Diria que são romances que terminam com a parte da própria escrita do leitor, que acaba por escrever um novo romance a partir daquele que eu lhes forneço. Ficarei agora expectante.

Escrever romances é um exercício de liberdade nesta fase da sua vida?

Em parte é. Tenho sempre muita dificuldade em responder porque razão eu escrevo romances. Eu próprio também não sei muito bem.

Simplesmente escreve.

Tenho imenso prazer em fazê-lo e em construir uma relação com a escrita. Não venho do mundo literário e tenho uma escrita conservadora ou tradicional. Mas depois na construção do romance diria que é uma escrita com muita influência da modernidade. Dá-me um gosto imenso de poder participar na vida pública através da escrita, criar, e para mim a vida é ainda um deslumbramento e está carregada de futuro, e é nesse futuro que gosto de intervir. Guardo do passado boas memórias mas não cultivo a ideia de saudade. Esta [a escrita de romances] é uma boa forma de intervir no futuro.

Como viveu o 25 de Abril? Achou que era um Portugal novo que se iniciava?

Senti uma grande alegria, mas foi difundida no tempo porque aconteceu uma circunstância curiosa. Eu era juiz na comarca de Oliveira do Hospital, tinha sabido da decisão de me colocarem em Coimbra e fisicamente eu mudar-me-ia para a cidade no dia 25 de Abril de 1974. De 24 para 25 comecei a arrumar caixotes e tinha marcado a transferência de mobiliário para a tarde do dia 25, e quando acordei e todos me falavam de uma revolução. Não sabia onde era, precisava era de ir para Coimbra. Mas depois percebi que havia uma revolução em Portugal, mas não se sabia muito bem qual era o seu sinal. Havia o risco de se fazer uma viragem ainda mais à direita e fiquei um pouco sem saber o que fazer. Entretanto o senhor que ia fazer o transporte das minhas coisas não aparecia, e ele disse-me que havia uma revolução e não podíamos ir para Coimbra. Depois, já em casa, vi televisão e percebi que a revolução era aquela que eu sempre tinha querido. Foi uma emoção muito grande.

Com o 25 de Abril as mudanças na sua profissão foram muito acentuadas?

O livro que escrevi em 2012 é exactamente sobre isso, é uma narrativa crítica da justiça. É um livro quase auto-biográfico, sobre um magistrado que começou a trabalhar em 1968, e que sou eu. Nunca senti, mesmo antes do 25 de Abril, que não tivesse independência para o exercício da função. Algumas vezes houve uma maneira mais insidiosa de procurar condicionar uma tomada de decisão, mas eu não me deixei influenciar por isso. Mas não era fácil, não nos sentíamos libertos como nos sentimos a seguir ao 25 de Abril. Antes do 25 de Abril havia uma grande dependência face ao Executivo para nomeações. Poderia haver quem se deixasse influenciar mais, mas eu nunca senti que fosse influenciado por isso. Depois do 25 de Abril as mudanças foram tantas que acabámos, nós magistrados, por incluir questões novas que a realidade nos colocava.

23 Fev 2022

Álvaro Laborinho Lúcio, autor e ex-ministro da Justiça: “Deveríamos estar inquietos com o que está a acontecer”

Álvaro Laborinho Lúcio tem estado muito ligado à escrita e à reflexão sobre as questões da arte e educação desde que se afastou do Direito, área à qual dedicou grande parte da sua vida. O autor fala dia 19 de Abril sobre estes temas, por videoconferência, entre as 18h30 e as 20h30 na Fundação Rui Cunha. Em entrevista, Laborinho Lúcio discursa sobre o novo livro que aí vem e de como a Democracia continua a ser fundamental

 

Fala dia 19 de Abril na Fundação Rui Cunha sobre as questões da arte e educação. São essenciais uma à outra, complementam-se?

Sim, e essa é uma forma muito correcta de pôr a questão, porque ajuda muito a desenvolver aquilo que se pretende quando se liga educação e arte. É essencial colocarmos a questão da relação entre a educação formal, ministrada na escola, e a educação em geral. Filio-me muito no pensamento de Mikhail Epstein, que dizia que a educação é uma actividade de humanos para o bem da humanidade. É esta dimensão da condição humana que, no fundo, constitui o objecto central da educação, que tem de ser transportada para a escola.

Como?

Quando partimos desse ponto de vista facilmente compreendemos que a arte é fundamental, porque é talvez a única forma que o humano tem de adquirir ou atingir alguma transcendência. A arte é fundamental para compreendermos o mundo, a vida, a evolução da humanidade, para sermos capazes de desenvolver pensamento critico. Mas a arte como uma entidade autónoma, como se fosse uma disciplina própria [na escola], como se fosse português ou a matemática, e não uma actividade dos tempos livres onde as crianças se divertem.

Relativamente ao Direito de Macau tem sido dada a devida atenção por parte das autoridades relativamente à sua preservação e manutenção?

Toda a minha vida foi praticamente ligada à justiça e ao Direito. Ultimamente tenho-me preocupado com outro tipo de temas, nomeadamente a educação. Uma das leis base da organização judiciária [de Macau] passou pelas minhas mãos. Teria todo o gosto que esse acompanhamento fosse feito segundo as linhas e orientações dos acordos políticos que foram estabelecidos, nomeadamente com a China, mas tendo sempre a noção de que há um ponto de vista português e a expressão de uma cultura portuguesa que gostaríamos de deixar como manifesto nesse território, e que o pudéssemos ir conservando. Entendo que deve haver uma preocupação do Estado português em manter também essa presença.

Foi ministro da Justiça entre 1990 e 1995, na altura que se produziram em Macau os grandes códigos que ainda hoje vigoram. Quais as grandes preocupações e desafios à época?

Daquilo que foram os acordos assinados e da possibilidade de aceitação da política “um país, dois sistemas”, em que no fim de contas era possível encontrar ainda a manutenção por um período longo, que ainda se mantém, da legislação portuguesa, muitas das dificuldades resultavam de perspectivas no direito privado português e até do direito processual que não era aquilo que imediatamente mais casava com a própria cultura da RPC. Houve a dificuldade em manter essa perspectiva e, ao mesmo tempo, encontrar uma forma de não criar, pela via do Direito, uma conflitualidade social, em que a certa altura não houvesse entendimento possível. Mas foi possível construir códigos estruturantes. Recordo-me de um dos problemas na altura era o de saber se seria preferível ensinar Direito aos chineses ou chinês aos portugueses. Esta era uma grande questão, nuclear, porque entendia-se que da boa ou da má decisão resultaria a preservação durante mais ou menos tempo do próprio Direito português.

Publicou “O Beco da Liberdade” em 2019. Porque decidiu enveredar pela escrita?

Sempre tive uma certa propensão para essa experimentação. Enquanto exerci funções públicas, muito ligado à justiça, não me sentia à vontade para entrar na escrita de ficção, embora quisesse experimentá-la. Se se escreve para publicar, à medida que se publica damos uma imagem de nós próprios, o que não quer dizer que as personagens que criamos sejam o nosso reflexo, mas de alguma maneira sempre que escrevemos manifestamos um ponto de vista ou um ponto de vista estético. Achava que o meu compromisso institucional com a justiça me obrigava a ter algumas reservas. Quando me jubilei decidi escrever, e escrevi talvez o maior livro que publiquei até agora, “O Julgamento”, que é uma narrativa crítica da Justiça. Terminava aí a minha relação com a Justiça e em termos do que projectei para o futuro. Comecei depois com um livro mais pequeno a interessar-me pela questão da educação, e é curioso que começo pelos direitos da criança. E é por aí que entro na escola e na educação. Mas em simultâneo surgiu a primeira experiência da escrita de ficção, o primeiro romance, e correu bem, foi bem aceite. Talvez não fosse um disparate. Ainda hoje digo que sou um escritor amador.

Achava que ia ser um disparate, receava a não aceitação do público?

Sim. Tinha uma insegurança em relação a isso, que continuo a ter. Olho para mim com a ideia de que os romances sejam aceites sem haver uma recusa da sua qualidade. Não é nesta altura que num golpe de dedos passo a ser um escritor notabilizado no mundo inteiro. Tenho a noção dos limites e é dentro deles que me quero manter. Fiquei feliz com as reacções e isso animou-me a escrever esse romance, “O Beco da Liberdade”, que também foi bem recebido. Tenho outro livro praticamente concluído e que poderá eventualmente ser publicado este ano. Depois tenho um ou outro conto disperso. Hoje tenho a minha vida muito limitada à escrita literária e às questões da educação e da cidadania.

Pode avançar alguns detalhes sobre essa nova obra?

É um romance, mas em que tentarei, embora não seja fácil, dar uma imagem de Portugal 45 anos antes do 25 de Abril e 45 anos depois. É um romance que termina imediatamente antes da pandemia porque esse será um tema para outra história. Será um Portugal de gente comum activa e não um Portugal de vilões ou heróis. Quem era essa gente de classe média empenhada politicamente antes do 25 de Abril e depois com muitas dúvidas depois? O título ainda não está fechado mas há-de ter lá pelo meio uma azinheira, que vem um pouco da música “Grândola, Vila Morena” [de Zeca Afonso].

Hoje questiona-se a democracia, e há quem a questione como a culpada dos problemas que existem em Portugal, um deles a lentidão da justiça. O que é preciso mudar para que se comece a pensar de outra forma, com mais confiança nas instituições e na própria democracia?

Deveríamos estar responsavelmente inquietos com o que está a acontecer. Para criar de facto uma inquietude mas também para a tornar responsável. Julgo que neste momento estamos a desenvolver combates que já não sabemos a quem se dirigem e sobretudo a que consequências podem levar. Precisamos de perceber várias coisas e depois agir de acordo com elas. Um dos aspectos mais saudáveis da democracia é o conflito, que é essencial, e quando não existe nenhum é perturbador. Mas o conflito não pode ser com as primeiras coisas que nos vêm à cabeça. Temos quebras extraordinárias de coesão social, percentagens de exclusão nas sociedades e temos de viver com esse tipo de manifestações menos serenas e compreender o que está por detrás disso. Mas não podemos é substituir o que ia sendo um contrato social e um pacto social entre os cidadãos e as instituições que os representam por um novo poder, que é o poder das redes sociais.

Que veio mudar muita coisa.

Tudo é permitido e tem repercussões nefastas. A democracia é uma coisa tão extraordinária que temos de a aceitar na sua fragilidade natural. Não podemos pedir tudo à democracia, porque o que pode oferecer maior eficácia é, talvez, a ditadura. Qualquer totalitarismo nos dá a maior segurança, o problema é aquilo que perdemos para ter essa segurança. Qualquer totalitarismo nos dá maior eficácia, o problema é aquilo que perdemos para ter essa eficácia. A democracia e o Estado de Direito são absolutamente essenciais e temos de saber qual o estado da arte em matéria do Estado de Direito. Tenho algumas dúvidas de que hoje o Estado de Direito esteja saudável. Pergunto se é verdadeiramente um Estado de Direito democrático e social que temos hoje ou se não é antes um Estado de economia liberal de mercado, que é uma coisa completamente diferente. O conjunto de valores por detrás do Estado de Direito foi substituído pelo valor do dinheiro e pelo da eficácia, que é aquele valor que permite dizer que os fins podem justificar os meios.

Programa “Arte na Escola”

A palestra de Álvaro Laborinho Lúcio insere-se no programa educacional e artístico “Arte na Escola”, que arrancou a 25 de Março e que é desenvolvido pela associação BABEL em parceria com a Associação de Pais da Escola Portuguesa de Macau. Importado do modelo que a Fundação Serralves, em Portugal, apresenta em várias escolas, “Arte na Escola” destina-se a toda a comunidade escolar, incluindo pais, alunos e educadores.

16 Abr 2021