João Romão VozesAinu Comunidades indígenas é tema que pouco nos ocorrerá quando pensamos no Japão, ilha distante e relativamente isolada, com notoriedades internacionais várias, desde filosofias e saberes ancestrais até modernos desenvolvimentos tecnológicos, mas a que remotamente associamos a presença de minorias étnicas indígenas, que afinal existem, no seu longo e sistemático silêncio desde que se procedeu a um processo massivo e forçado de assimilação e “integração” na sociedade japonesa, no final do século XIX. As comunidades Ainu viviam sobretudo na região de Hokkaido, uma ilha no norte do Japão, e num conjunto de outras ilhas, ainda hoje objecto de disputas internacionais com a Rússia, num trajecto marítimo que conduz à costa oriental russa. Com uma língua própria, não escrita, que se foi transmitindo oralmente, esta comunidade antecipou muito largamente a chegada de habitantes japoneses a Hokkaido, o que só aconteceria no final do século 19, para edificar a cidade de Sapporo e iniciar a ocupação da ilha. A hostilidade foi grande desde o primeiro momento, incluindo também o universo académico, com grande centralidade, política e geográfica, na nova cidade de Sapporo. Ainda hoje o vasto campus da Universidade de Hokkaido fica situado em pleno centro urbano e já era um dos elementos centrais na planta e no conceito original desta nova cidade construída numa área quase inabitada do planeta. E é esse “quase” que assinala as relevantes diferenças: se não é original colocar uma universidade (neste caso uma escola de estudos agrícolas, na sua formulação original) no centro da urbe, já a presença de comunidades indígenas anteriores à chegada da população dominante no país foi uma novidade na evolução histórica da sociedade japonesa que ainda hoje coloca problemas por resolver. A relação da população do Japão com as comunidades indígenas Ainu foi desde o início de imposição e assimilação: com o importante suporte ideológico de um professor vindo dos Estados Unidos para liderar a fundação da Universidade de Hokkaido (ainda hoje omnipresente na estatuária da cidade de Sapporo), as comunidades Ainu – e os territórios que ocupavam – foram juridicamente integradas na sociedade japonesa, quer em termos das suas identidades como pessoas, quer no que respeita aos seus nulos direitos de propriedade sobre o solo, ao contrário do viria a suceder noutros países com comunidades em situação semelhante. Na realidade estas comunidades foram obrigadas a relocalizar-se e a sua língua foi proibida. Mais de um século passaria até haver um parco reconhecimento das comunidades Ainu, em 1997, relacionado com alguns aspectos culturais específicos, incluindo a língua, mas sem qualquer direito à posse de terras ou compensação pela imposição forçada de normas sociais estranhas à população. Na realidade, só quando Hokkaido acolheu magna reunião do denominado “G8” (em 2008, um anos depois da publicação da declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas), o governo japonês viria a reconhecer os Ainu como população indígena a viver em território japonês. Essa reconhecimento só viria a assumir plena força de lei em 2019, definindo-se a comunidade Ainu como uma minoria étnica no país. A lentidão, injustiça e mesmo violência com que os processos administrativos impuseram a assimilação das comunidades ao longo de mais de um século tiveram naturalmente impacto nos modos de vida de cada uma das pessoas que lhes pertencia – e que eram inevitavelmente tratadas como de segunda categoria no próprio país onde sempre tinham habitado. Esse estigma fez com que, até aos dias de hoje, as pessoas de etnia Ainu evitassem assumir publicamente as suas origens. Também a nível universitário a relação conflictual havia de ser prolongada – e ainda hoje não resolvida. Na realidade, o meu único contacto directo com membros da comunidade Ainu deu-se há quase 10 anos, quando trabalhava temporariamente num projecto na Universidade de Hokkaido. Em frente ao portão principal do campus, um pequeno grupo de pessoas Ainu reivindicava a devolução dos cadáveres que, com fins científicos, tinham sido expropriados aos seus antepassados durante a primeira metade do século 20 e que nunca tinham sido devolvidos. Um problemas de difícil solução hoje, portanto, e que continua a assinalar a tensão duradoura entre a academia e as comunidades indígenas de Hokkaido. Na realidade, ainda que a Universidade tenha inaugurado em 2005 um centro de estudos dedicado às comunidades Ainu e indígenas, só agora ali trabalha uma investigadora de origem Ainu. A assinalar a sua entrada no centro, Mai Ishihara dá uma entrevista à página de internet da Universidade onde, entre outras coisas, descreve a forma como toda a vida omitiu as suas origens, que na realidade só lhe foram reveladas pela família quando já tinha 12 anos. Mesmo já adulta e a trabalhar na Universidade, a investigadora explica as dificuldades e hesitações que teve para assumir publicamente as suas origens ancestrais na sociedade japonesa contemporânea. E no entanto, as comunidades Ainu que ainda hoje são vistas de forma preconceituosa e estigmatizadas como categoria social inferior, acabam por ser usadas como atracção turística na região de Hokkaido, onde visitei vários museus dedicados às suas tradições culturais e até uma “aldeia Ainu”, onde supostamente se realizariam performances artísticas da comunidade e se venderia o seu artesanato(o que afinal não foi propriamente o caso). Na realidade, nem nos museus, nem na dita aldeia voltei a ter oportunidade de contactar pessoas Ainu. Talvez esta integração num centro universitário de uma investigadora que assume a sua origem Ainu constitua um tardio mas relevante passo no sentido do reconhecimento de pleno direito desta comunidade. Talvez o museu nacional Ainu que abriu no ano passado em Hokkaido constitua outro passo importante. Mas até agora a tradição cultural Ainu tem servido mais para promover o turismo de Hokkaido do que para reconhecer os direitos de uma população historicamente oprimida, segregada e auto-silenciada.