Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA memória de Yokohama – III A mulher abriu a porta envidraçada da varanda e deu ordens para que parassem com tudo. Fê-lo com um gesto brusco. Os braços cruzaram-se por três vezes no ar, como se estivessem na pista em frente de um avião. No terraço, um dos agentes cumpriu a ordem e disse com o megafone: “Podem parar. Digam aos figurantes que parem a operação. Acabou a experiência”. Os cientistas entraram de rompante no quarto. Envolveram silenciosamente a mulher e ouviram-na, enquanto passava as mãos pelo corpo inerte de Laurentino: “Meus senhores, a mais longa fase do projecto acabou neste momento. Como sabem, estamos face a uma experiência sem precedentes.”. A mulher abriu depois o peito de Laurentino, premindo na ondulação junto ao externo e continuou: “há três anos apenas, era difícil imaginar que esta mistura de circuitos, cabos, fibras conectoras, chips e sobretudo os quinhentos biliões de conexões interneuronais pudessem ser programados desta maneira”. A mulher, afinal a directora do projecto há quase dois anos, falava com entusiasmo para os cientistas que enchiam o quarto do hotel da Fortaleza do Guincho e, num aceno rápido, acabou por abrir uma das válvulas do dorso e retirou o mais esperado dos artefactos, parecia uma caixa de fósforos com um cilindro em miniatura na parte inferior. E disse, com gravidade, a voz metálica e cheia de eco: “É a caixa azul do nosso robô!”. “Podemos finalmente ver as imagens que foram produzidas na mente do Laurentino?”, perguntou um dos assistentes. “Claro”, concordou a mulher. A pouco e pouco, os cientistas foram-se sentando como podiam e onde havia lugar. Sobre o tapete, na cama ou no rebordo da lareira. Não havia tempo a perder. Até que as primeiras imagens apareceram no terminal que estava ligado à minúscula caixa azul. Eram imagens às vezes sobrepostas e quase sempre alagadas por uma espécie de esquadria de cores fortes que distorcia os contornos precisos das figuras. Mas, a certa altura, as imagens tornaram-se mais nítidas: eram os chapéus quase brancos dos músicos da banda, era a imensa calote de betão a crescer entre penhascos, era um javali na sua última investida, eram as águas escurecidas da barragem, era o nariz arredondado de um judeu que não tinha nome judaico e da sua bela Clara, eram as três estrelas cadentes vistas da Tower Two, eram imagens de desejo pela mulher que contava histórias a Laurentino no avião, era o portão a deslizar sobre os carris negros da fundição, era um TIR gigante a atropelar um de dois namorados que iam de mão dada, eram fotogramas do filme L´Age d´Or de Buñuel, era o descampado aragonês, eram as chamas do World Trade Center observadas dos telhados do Soho, eram as árvores do terreiro da antiga fundição e era ainda o quarto de hotel a que um dia haviam chegado: ela deitada na chaise longue e ele na cama com os pés sobre a colcha onde está estampado um brasão e um pássaro com as asas em fogo. No tecto, viam-se diagonais esculpidas a tijolo cru encimadas por uma folha de parreira aberta de par em par. E os últimos registos eram parapentes, nuvens esparsas, beduínos e tuaregues irados, móveis cobertos por lençóis brancos, um velho com ar de profeta, uma recta sem fim, aves gigantes sobre pranchas de surf, uma cidade cheia de zigurates, risos indistintos, rochas escuras sob águas verdes vagas muito claras e fogo, apenas fogo e mais fogo a sobrevoar o mar. No final, segundos antes de acabar a gravação, revia-se a mulher a cair para o chão após a invasão da polícia. E, logo a seguir, já morta e inanimada, percebia-se que ela não passava de um robô, enquanto Laurentino ria a sonhar-lhe as entranhas, as mil simulações e a secreta fortaleza dos circuitos. Num derradeiro ápice, como se olhasse para cima na direcção da estrela da manhã, Laurentino viu ainda um imenso trono de barro. E sentado nesse trono estava deus de barba por fazer e a rir às gargalhadas com ar matreiro. Juntava as mãos uma na outra, ajudado por milhares de cabos ligados a circuitos high tech, à imagem da escultura viva do artista Stelios Arcadiou, mais conhecido por Stelarc, The Third Hand, a tal que tanto o impressionara, precisamente há um ano, em Yokohama.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA memória de Yokohama – II Lembrava-se de ter levado a mulher para as imediações da falésia de xisto escuro. Lembrava-se de descer de jipe até às águas escurecidas da barragem. lembrava-se de ver a silhueta da imensa calote esférica perdida entre arames farpados, vigias e um rebordo infindável de amieiros e pinheiros mansos. Laurentino lembrava-se que havia festa e fogo de artifício na aldeia e que a banda tocava música cigana húngara sob sombras avermelhadas de poeira. Laurentino lembrava-se de ter levado a mulher para dentro do átrio onde se erguia o antigo armazém da fundição. Laurentino lembrava-se de ter passado a correr com a mulher pelo cedro libanês que tinha ramos de bruxa e pela alfarrobeira imobilizada num repto da natureza. Laurentino lembrava-se de que tinham os dois passado pelas ruínas da vagoneta e do torno, para depois entrarem finalmente no armazém. O portão deslizou sobre carris negros e ouviu-se um som metálico e seco, um bramido pálido e oco. A mulher sentou-se no chão a um canto e tentou respirar fundo. Chorou depois compulsivamente e apenas dizia e repetia: “Eu sei coisas a mais. Eu sei coisas a mais. Eles vão matar-me. Ou uns ou outros. Ou uns ou os outros”. Lembrava-se de ter saído até ao cais, enquanto a mulher dormia no interior de um vestíbulo abandonado da fundição como se estivesse calafetada e defendida pela escuridão. Laurentino lembrava-se de ver dois carros pretos a estacionarem ao pé do cais de onde saíram vários homens de cabelo rapado que telecomunicavam entre si. A banda tocava com vivacidade meteórica e os chapéus dos músicos pareciam tendas de linho expostas à poeira avermelhada do Negueve. A pequena multidão acercava-se das barracas de comes e bebes, dos cachorros de peluche, dos ursos de focinho branco, dos palhaços ruidosos, das tendas de tiro, das tabernas improvisadas e do homem-estátua que mais parecia um bobo convulsivo esboroado em aguarela ocre e azulada. E, nessa altura, mais por intuição do que por temor, Laurentino regressou subitamente à fundição atravessando um caminho secreto e remoto que conhecia do tempo das brincadeiras de criança. Tudo havia sido preparado. Lembrava-se, por fim, de ter colocado a mulher dentro de um tapete turco. Por cima do rolo improvisado, encheu o jipe de latas, restos de cadeiras, dossiês comidos pelo bicho, hastes de candeeiro, jarros, molduras de fotografia, zincogravuras, cortinados, roldanas, ferramentas carregadas de ácido e um ou outro varão de cobre. Vestiu um fato de macaco a cheirar a podre e saiu da aldeia em direcção às alturas. Lembrava-se agora de circundar mais uma vez estas estradas muito íngremes. Levava o coração a ribombar, a tremer e revia assim a vertigem dos vales fendidos pela corrosão dos glaciares. Por trás, nada. Nem viatura, nem vivalma, nem sinal de perseguição. A fuga parecia perfeita. A mulher mal conseguia respirar e o tempo passava, lento e perigoso, como leme de veleiro no meio de súbita tempestade. Laurentino lembrava-se de ter andado quatro dias e quatro noites sem parar, a não ser para comprar gasóleo, água e bolachas de água e sal. E foi já num país que parecia Espanha, num descampado tipo aragonês, que Laurentino se lembra de ter livrado o carro de tanta porcaria. A mulher, completamente tonta e inundada por ansiolíticos, sentou-se a seu lado e não disse água vai água vem durante várias horas. Lembrava-se de ter chegado a uma terra cheia de praias onde não havia mais estradas por onde seguir para poente. Apenas o mar e nada mais. Uma terra de fins onde quase toda a gente se conhecia. Uma terra de toldos brancos, uma terra de linhas de comboio entre canaviais e marquises de alumínio, uma terra de areais e alicerces esventrados e balaustradas opulentas entre bustos de leão em cerâmica clara. Uma bela terra cheia de fadários e oliveiras. E ao fim dessa longa tarde, por fim, entrou no hotel que era uma dourada Fortaleza no Guincho. O hotel mais ocidental da Europa. E cada um dormiu onze horas bem contadas. Lembrava-se de ter acordado às duas da tarde desse décimo primeiro dia de Junho. Quando regressou ao quarto, já a mulher tinha saído do longo banho de imersão. E foi nessa altura que ela, com a toalha em jeito de turbante na cabeça, premiu o botão da televisão. Segundos depois, não mais do que isso, a programação normal era interrompida e as imagens mostravam a imensa bola de fogo que irrompia pelos vales e falésias de xisto escuro onde Laurentino tinha nascido. “Tudo leva a crer que um ataque terrorista fez explodir a maior central nuclear da Europa”, dizia-se na televisão com voz pouco convicta. Quase ao mesmo tempo, Laurentino abriu a vidraça das janelas e viu a polícia especial por todo o lado. Pareciam astronautas munidos de bastões eléctricos e viseiras violetas escuras. Avançavam pelas escarpas ou pela falésia que desce sobre o mar em plano inclinado, cercavam as dunas e as duas praias. Entravam nas varandas e subiam já ao terraço. As sirenes dispararam por todo o lado e, sem que nada o fizesse prever, envolveram a tranquilíssima fortaleza do Guincho. Ouviu-se nessa altura um disparo e Laurentino não se lembra de mais nada. (continua)
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA memória de Yokohama – I Lembrava-se do labirinto de veredas e caminhos, dos vales profundos e das sombras avermelhadas da poeira que se iam instilando nos chapéus quase brancos dos músicos da banda. A paisagem era pele macia de mulher vivida, cheia de sulcos e sedas, cheia de vestígios e volúpia de noites intemporais. A paisagem era música ágil e ondulante que tanto soava e calava cada despique mais impetuoso como fazia delirar o mais bizarro dezedor de versos e pragas. Enfim, a paisagem era de grão puro, luzidio, uma verdadeira obra de glaciares. Lembrava-se das árvores do terreiro da antiga fundição, uma alfarrobeira deitada ao vento, uma folhagem de feição talhada pelo esquecimento, uma copa desenhada pelos anjos a pensar na futura melancolia dos guindastes e de outros corpos de aço. E ao pé do poço de águas férreas havia ainda o cedro gigante, uma ramagem de estiletes densos, uma vassoura de bruxas a acenar na direcção das nuvens, um lamento de invernias envolto por trepadeiras selvagens e pelo uivo sem eco dos lobos. Lembrava-se de ver, há muitos anos, a imensa calote de betão a crescer entre penhascos e a massa húmida dos pinheiros. Parecia uma esfera de luz apoiada sobre ogivas metálicas com a magia daqueles arco-íris de trezentos e sessenta graus que se formam nos desfiladeiros da serra. À volta havia bandos de jovens vestidos de gabardina amarela, ramos de flor na mão, letras inflamadas e violas adormecidas nas mochilas que faziam coro grego de protesto face a este soberbo leviatã onde, um dia, os núcleos dos átomos haviam de ser cotejados. A imensa construção projectava-se para além da barragem e dava à região um raro vigor de alma material, um rosto porventura excessivo e uma panóplia variadíssima de habitações pré-fabricadas onde centenas de operários vindos de muito longe entravam e saíam do formigueiro da terra. Lembrava-se da falésia de xisto escuro que descia a pique entre nascentes e juncos. Era um precipício criado por blocos de granito tão soltos quanto a velada gaguez da mulher que o avistara, há dias, no check-in do aeroporto. Tinha sobrancelhas grossas, o rosto esguio, cabelos encaracolados, os dedos finos e não deixava de evocar estas fragas desenhadas pelo abismo onde luziam os sinais mais simples dos deuses. Lembrava-se de ouvir os sinos ao vento, eram campainhas que estavam presas aos ramos da indolente alfarrobeira e do espesso cedro libanês e que ressoavam ante a presença da lua nova e dos vendavais que redemoinhavam entre os muros do átrio onde havia argolas para burros, restos de um torno metálico coberto por uma camada de ferrugem esverdeada e uns tantos vasos esvaziados, embora pejados pela memória dos gerânios e das folhas enroscadas dos gladíolos. Lembrava-se das águas escurecidas da barragem, desse verde vago de correntes brevíssimas onde o ofício dos remos e os braços abertos dos remadores limavam a sede do tempo. Visto do alto do precipício, era um movimento lento, vagaroso, bastante sincopado. Era como a miniatura de um limbo que progredia do paraíso esquecido até à sombria mansidão que rodeava o pequeno cais da aldeia. Aí, sobre o que sobrava do velho coreto, estava perfilada a banda de uniformes brancos como se fosse um insecto minúsculo cheio de tentáculos esponjosos e envolvido pela espessa poeira avermelhada do fundo da terra. Lembrava-se ainda da história que a mulher lhe contara. Era um homem que tinha mandado matar o próprio filho, depois de ter feito o mesmo à mãe, uma médica ruiva que pouco exercera e que vivia há alguns anos numa ilha meio despovoada do Fleuve Saint Laurent. Parece que a amante desse homem sem nome sobreviveu a toda esta mortandade mitológica e acabou por se isolar no sul de Marrocos onde inventou, talvez por expiação, uma novíssima vida. E parece que o homem sem nome ainda continua a monte no planeta, talvez em Kandaar, algures no Golfo Pérsico ou no Sudão. Talvez mesmo no inferno. Talvez, quem sabe, diluído nas letras secretas de uma cartilha que terá no altíssimo um presumido autor de luxo. Lembrava-se tão bem da mulher de sobrancelhas grossas, rosto esguio, cabelos muito encaracolados e dedos tingidos pelo sigilo dos antigos gelos. Depois do avião levantar, a mulher sentou-se a seu lado por mero acaso e contou-lhe a história toda, porque, dizia, não era capaz de calar o que a vida nela decidira guardar. Eram coisas a mais e, desse por onde desse, alguém teria que as ouvir. E Laurentino foi à casa de banho e pensou que estava nos fogos do Arsenal veneziano onde Dante sonhou o seu abnegado inferno, mas viu-se foi quase acossado pela perseguição da amazona que entrou no cubículo e trancou a porta por dentro atrás de si. Garantiu-lhe que era tudo verdade verdadinha e que estivera mesmo com a amante do homem sem nome, no sul de Marrocos, num antigo hotel colonial onde se preparavam coisas muito estranhas. E que, logo que o avião aterrasse, ela mesmo seria alvejada. Lembrava-se tão bem de ver a mulher a beber uísque e mais uísque no resto das horas da viagem e de alguma santa turbulência aeronáutica. De vez em quando, interrompia o olhar de Nefertiti alheada e tensa para repetir ao ouvido de Laurentino que teria já poucas horas de vida, a não ser que alguém, fosse quem fosse, se dispusesse a ajudá-la. A agitação aumentou, logo que a aterragem foi anunciada e as luzinhas de emergência obrigaram a recolocar os cintos de segurança.