Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico OrienteA Egiptomania em Portugal Um caso curioso dentre as febres de fim de século é o da egiptomania, que a Portugal também se dignou chegar. E não falamos de reproduções de estranhos monumentos junto aos Jerónimos, ou de maquilhagens bizarras, mas de poesia. No Egipto dos modernistas portugueses, as pirâmides, a esfinge e restante bric-a-brac imagético são sinais de uma ambiência hierática, rara, ritualística, e não apenas puramente exótica. Para exótico, qualquer Java ou qualquer Algarve serviria. Só o Egipto parece dar ao poema aquele misterioso timbre de sarcófago mental; envolvê-lo numa certa ambiência, tornando abstrato o que é concreto e concreto o que é abstrato. O terceiro poema da série «Chuva Oblíqua», do Pessoa ortónimo, reflete essa construção de um ambiente misterioso em pleno surto vanguardista. O Egipto atravessa o próprio ato de escrita do poema: “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/ Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente/ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides… (…)/ Ouço a Esfinge rir por dentro/ O som da minha pena a correr no papel…/ Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme”. Muito longe de qualquer descritivismo do país dos faraós, há aqui um mistério no ato de escrita que só o Egipto permite cifrar. Em Alfredo Guisado, um galego republicano da baixa de Lisboa, a atração pelo mistério redundou num travestismo metafísico junto às pirâmides, no terceiro poema da série «As Exéquias da Princesa»: “Meu Corpo é um Egipto de Saudade. /Mênfis a minha Alma. Meus sentidos/Pirâmides na minha antiguidade./ Meus seios são lagoas sempre cheias./ Múmias de reis meus olhos doloridos /E Nilos de desejos minhas veias.” É curioso que este poeta-princesa pouco se quis prolongar para além dos tempos da Vanguarda. Guisado calou-se por volta de 1918, reunindo apenas uns versinhos galegos. Ficaram só estas estranhas pirâmides do seu corpo metamorfoseado em país, e só elas conseguem simbolizar aquela misteriosa indefinição de um corpo. Já Ângelo de Lima, triste cativo vário de hospitais psiquiátricos, Pessoa juntou-o ao grupo da revista Orfeu para o seu segundo número, aumentando o escândalo. As geografias orientais de Ângelo vão além do Nilo, chegando até ao Rio Amarelo, mas é junto ao primeiro que a sacerdotisa e rainha Neitha-Kri entoa o seu próprio louvor: “Sou a Grande Rainha Neitha-Kri… /Sou Devota da Noute Pensadora…/ E Neith é grande, pelos Céus Senhora… / E eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!…”. Aqui não se trata do mistério da escrita ou do corpo, mas da reconstituição de uma liturgia perdida de uma religião mistérica ou esotérica, que o poema procura simular para isso recriando a própria língua portuguesa com palavras e expressões anómalas. O último exemplo é Luís de Montalvor, poeta órfico pouco conhecido, conquanto dinamizador de Orfeu, que se afogou com toda a família num carro que foi parar ao Tejo, uma espécie de Nilo lisboeta. Montalvor dirigiu a famosa coleção de poesia da Ática e verdade é que a sua obra poética, quase desconhecida, é-o sobretudo por ser muitíssimo parca, onde contudo se encontra a fantasia oriental «Dromedário», com elementos que citam condensadamente a temática da viagem ao Levante, mais do que precisamente ao Egipto: “Verdade ou sonho? Que importa/ ao morto olhar o rumo incerto)?/Eu sigo o sonho (e cismando!)/do dromedário pisando/silêncios do meu deserto…” Trata-se dum cenário reduzido a dados puramente simbólicos que remetem para uma paisagem essencialmente interior. O Egipto, como se vê, forneceu bons materiais para um hieratismo e um culto do Mistério que interessava aos poetas modernistas portugueses. Em síntese, é sobretudo um clima imagético e simbólico, por vezes puramente textual, como em Pessoa, que a partir dele se desenha.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hÍndia Mater [dropcap]E[/dropcap]nquanto os ingleses a pisavam com suas botas duras e os portugueses ficavam gratos por todos, incluindo eles próprios, se esqueceram dos restos dum velho domínio, a Europa de fins do século XVIII redescobria a Índia. O sânscrito e o indo-europeu, uma amálgama de Hinduísmo e de Budismo, o subcontinente como viveiro de religiões, madre de filosofias e de sistemas de misticismo, são ideias novas para a Europa de finais do século XVIII. Na Europa de Oitocentos, a Índia chegava para ser, em paralelo com a Grécia, um mais antigo e mais longínquo berço da Europa. Afinal, o país dos Árias era apenas a outra ponta de uma grande e comum civilização que se estendia até aos confins da Ibéria. Em 1950, um autor francês chamado Raymond Schwab interpreta todo este fenómeno, essencialmente anglo-francês, do século XIX como uma “Renaissance Orientale”, por dar origem a grande acervo de tradução e de recepção. É claro que esse processo fora já em boa parte realizado, talvez em proporções não menores, pelos missionários portugueses dos séculos XVI e XVII. Ora, apesar de conceder alguma relevância à missionação no processo, só isso chega para infirmar a tese de Schwab em abono de uma “Renascença Oriental” no termo do século XVIII enquanto novo humanismo, já que outras Renascenças orientais parecem ter sido possíveis. Ao tempo em que Friedrich Schlegel (1772-1829) compunha Sobre a Língua e a Sabedoria dos Índios (1808), aquelas fontes eclesiásticas já haviam mergulhado no ocaso das bibliotecas conventuais portuguesas, permitindo assim que a leitura parcial de Schwab se tornasse aceite. Este “novo humanismo” que o autor de La Renaissance Orientale ainda mais romanticamente leu nos autores românticos que se interessaram pelo Oriente consistiria num desejo de regresso ou de reunião com a sabedoria esquecida da outra metade do mundo. Em particular a Índia, espécie de súmula de Oriente e de Ocidente, repositório sempiterno no qual seria possível aceder à religião e à filosofia ainda em estado nascentes: ex oriente lux. Contudo, este louvor do Oriente como tendo sido grande no passado, e continuando a sê-lo apenas por referência a esse mesmo passado, certamente deshistoricizava a Índia, pondo-a como mero espelho no qual a Europa se mira para se entender na diferença. Coisas semelhantes foram ditas sobre a China, embora decerto nunca tenha ocorrido a cabeças românticas ou quejandas tomá-la por origem do Ocidente. A visão romântica do Oriente continua, portanto, a ser uma distorção a que alguns chamariam orientalista, mesmo se motivada por respeito ou até veneração. Já perto do final do século da imprensa e do progresso, nas várias tentativas de compor uma epopeia moral da Humanidade como a Lenda dos Séculos de Vítor Hugo ou a Visão dos Tempos de Teófilo Braga, a Índia foi ainda representada pelo poema dramático europeu como correspondendo a um estágio ou fase primitiva da Humanidade, ainda que responsável pela criação do sentimento religioso, no âmbito dessas várias tentativas de formular em verso complicadas sínteses da História e do pensamento. Assim, a Índia é para Teófilo um “leito de morbidez e graça” (1895, p. 148), e o cerne das “idades teocráticas” da História, num determinismo tipicamente oitocentista. É contra esta linha de representação ainda orientalista da Índia, que se prolonga pelo século XX adentro, que o goês seareiro Adeodato Barreto escreve em 1936 Civilização Hindu, em tempos a única obra que o leitor português dispunha para se informar sobre cultura indiana. Ainda que incomparavelmente mais informado, além de constituir a voz de um natural, é de novo a India Mater de matriz romântica que reside lá no fundo, sobretudo na idealização de uma Índia pacificamente civilizadora, tanto que a própria Revolução Francesa devém, para Adeodato, um exemplo de uma atitude que já tinha sido antecipada por um velho rei budista: “Eis uma verdade que as nações ocidentais não assimilaram ainda. O Dharma-raja de Açoka, reino da Justiça e do Amor, foi recordado à Humanidade pela Revolução Francesa. Mas constitui, infelizmente, ainda hoje, um ideal a alcançar!”.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hAlberto Osório de Castro [dropcap]E[/dropcap]stá por fazer a história das figuras portuguesas que viveram e escreveram o chamado Oriente Português em tempos mais próximos de nós. Todos conhecem os descaminhos de Camões e as tropelias de Mendes Pinto pela Ásia, mas quem conhece a tímida viuvez de Wenceslau de Moraes, os amores de Pessanha pela Águia de Prata, as vistas do japão em Armando Martins Janeira? Muitas vezes ligados a cargos públicos, vários escritores e intelectuais não só fizeram a sua vida nas então colónias portuguesas da Ásia, mas sobre elas escreveram, adensando uma longa tradição literária que vem do século XVI. Por exemplo, Alberto Osório de Castro (1868-1946), juiz, poeta e erudito, primo de Camilo Pessanha, seria uma dessas figuras a ser urgentemente recuperada, por ser fundadora de uma moderna linhagem de escrita sobre o Oriente em português, não só a nível literário, mas também científico. Embora amador, como vários intelectuais do seu tempo, foi um respeitado membro da comunidade científica nacional e internacional, o que comprovam as suas obras literárias, cheias de erudição orientalista e os estudos científicos éditos e inéditos no âmbito das ciências humanas e naturais. Dados como estes permitem entender a razão pela qual Camilo Pessanha, em resenha ao livro Flores de Coral (1910), lhe atribuía uma “pouco vulgar cultura científica”. Por exemplo, as detalhadíssimas anotações botânicas sobre flora de Timor que enxameiam esse que foi o primeiro livro publicado na colónia dão corpo a uma espécie de ciência feita ao sabor da pena. Percursores in illo tempore, os portugueses, como Diogo do Couto ou João de Barros, lançaram as bases epistemológicas para a criação de um conhecimento europeu sobre Ásia, do qual ingleses e franceses tomaram conta. Restou aos portugueses que depois deles vieram uma ciência mais descomprometida, por assim dizer, feita à margem, literal e figurativamente. No caso de Osório de Castro, é literalmente nas notas aos poemas de Flores de Coral (Dili, 1909) que ganha corpo um olhar simultaneamente literário e científico sobre Timor. O seu nome está muito ligado a Timor, como se sabe. Diz-se que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para essa metade de uma ilha para onde ninguém queria ir, mas que o apaixonava. Mas antes de Timor esteve por Goa, onde foi Procurador da Coroa nos primeiros anos do século XX. AÍ haveria de fundar a longeva revista científica O Oriente Português, que começou em 1907, e dirigir a biblioteca de Nova Goa, desempenhando trabalhos como arqueólogo. Em 1907, foi juiz de direito da comarca de Moçâmedes mas, saudoso da Ásia, é no mesmo ano transferido para Timor. Sidonista convicto, chegou à Metrópole ainda a tempo de ser Ministro da Justiça de Sidónio Pais, em 1919. Não voltando mais ao Ultramar, participa e preside a instituições relacionadas com assuntos coloniais. Foi jurado do VIIº Concurso de Literatura Colonial (1933) e júri do concurso literário do S.P.N. (1934) que premiou, em segundo lugar, Mensagem de Fernando Pessoa. Mas o Orientalismo de Alberto Osório de Castro é ao mesmo tempo científico e estético, dimensões muito intimamente ligadas. Desde o seu primeiro livro, Exiladas (1895) se encontram poemas que glosam elementos da erudição orientalista, como o teatro clássico indiano ou motivos de japonaiserie. De outra forma, faz a poesia conviver com a erudição e a investigação em livros como A Cinza dos Mirtos (Nova Goa, 1906) e Flores de Coral que, para além dos poemas propriamente ditos, incluem coisas tão singulares como partes pautas musicais, gravuras de antigualhas indo-portuguesas, glossários, boletins, documentos, visando contaminar a poesia pelo saber enciclopédico. Em volume, publicou ainda o livro de versos O Sinal da Sombra (Lisboa, 1923) e o relato em prosa A Ilha Verde e Vermelha de Timor (Lisboa, 1943), a sua obra mais conhecida. Num ambiente onde se cruzam diversas estéticas (Decadentismo, Simbolismo, Parnasianismo, indícios de Modernismo), é um dos mais centrais criadores de um gosto moderno pelo “oriental” na poesia portuguesa da viragem do século, bem mais que Pessanha, que em verso pouquíssimo escreveu sobre a China. E esse Oriente toca geografias diversas: Índia, Pérsia, Egito, Insulíndia (Java e Timor), Japão e China. Esta forte inscrição na produção literária do saber acerca do Oriente é de fato característica da obra de Osório de Castro, sem esquecer as ligações íntimas da sua escrita ao projeto colonial, do qual foi ativo participante. Esta parece ser a grande originalidade de um autor esquecido, quer pelos manuais de literatura, quer pela ciência.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hO Jornal Único [dropcap]A[/dropcap] comunidade portuguesa de Macau não quis ficar fora das celebrações do quadricentenário da chegada de Vasco da Gama à Índia (1898), mas os festejos cívicos revelaram-se muito contidos, devido a uma outra peste que nessa altura grassava, um surto de cólera. Ficámos só com o busto no jardim hoje que leva o nome do almirante, nos limites da cidade oitocentista. Localmente, as comemorações do centenário do Gama foram lidas como a oportunidade ideal para a afirmação do poder central na colónia, através da homenagem da comunidade às figuras do malogrado governador João Ferreira do Amaral e do militar Vicente Nicolau de Mesquita, que tomara o forte de Passaleão, hoje parte de Zuhai. Um outro resultado material destas comemorações foi a publicação do curioso Jornal Único (1898), bem uma obra do nacionalismo finissecular. Revista, mais do que jornal, e de número único, neste Jornal Único ouvimos sobretudo a voz de uma comunidade intelectual ultramarina misturada com a de alguns euroasiáticos, como o próprio organizador António Joaquim Basto. O triplo nome “Camões–Mesquita–Amaral”, monumentalizado como um pedestal para o Gama, aparece no frontispício da revista e em quase todos os textos da mesma, sublinhando a continuidade entre esses dois pares: de um lado o fautor da autonomia de Macau face à China e o seu garante; de outro o nauta e o seu cantor. Trata-se de um grande e luxuoso volume, ornado de fotografias e impresso num papel especial. Nesta antologia, quase toda constituída de textos de circunstância, o louvor do passado só faz sentido à luz da necessidade de renovar o colonialismo português, que era o programa ideológico subjacente às comemorações deste centenário. Nesta conjuntura, é dada especial relevância à posição de Macau, que em “Praia Grande” de António Joaquim Basto, a esse tempo Presidente do Leal Senado, é descrito como colónia “quasi perdida” (p. 14). O clima de estagnação que faz da Cidade do Santo Nome uma terra “anémica e sem forças para robustecer” (p. 14) atravessa também, de uma forma elíptica, textos mais surpreendentes, como um duplo soneto de Pessanha que aqui se encontra. Embora Camilo não pertença à comissão para as comemorações do Centenário e se furte a proposições daquele género, faz claramente parte de um mesmo esforço coletivo mobilizado pelos portugueses na China em torno das celebrações, ou não participaria nesta empresa de todo. “Nau San Gabriel”, com o subtítulo parentético “No quarto centenário do descobrimento da Índia” [sic], dá a ver Portugal, na calmaria pós-ultimato, através da alegoria de uma nau parada: “Inútil! Calmaria. Já colheram /As vellas. (..)Pararam de remar! Emmudeceram!”. É daqui que vem a necessidade de de novo retomar os ritmos marítimos, numa segunda viagem ou descoberta: “Velhos rithmos que as ondas embalaram). // San Gabriel, archanjo tutelar, (…)/ Vem-nos guiar sobre a planicie azul. //Vem conduzir as naus, as caravellas, /Outra vez, pela noite, na ardentia, /Avivada das quilhas. (…)/ Outra vez vamos!” (p. 14) A nau-pátria é um tema alegórico do imaginário finissecular e que aparece em muitos outros textos da época. Assim se entende que o soneto é uma glosa aos motivos oficiais, heroicos e marítimos, do centenário da Índia, no espírito do nacionalismo cultural de perfil republicano. A Nau-Capitânia, imagem da nação, necessita de uma intervenção quasi-divina para nova travessia regeneradora, cujos contornos são tão nebulosos quanto a visão que o poeta e seus coevos tinham do futuro de Portugal. Ao contrário do que alguns críticos têm dito, esta contribuição de Pessanha para o movimento de despertar nacionalista é cristalinamente nacionalista, embora com alguns ecos de vencidismo, contudo insuficientes para infirmar o objetivo bem como o valor e sentido do contexto da sua publicação. É precisamente o conhecimento do contexto de Macau e da produção em língua portuguesa feita em Macau, que aqui fazem a diferença na interpretação deste poema. E assim, apesar de o soneto parecer acusar a tese de Oliveira Martins – que impregna a literatura tardo-oitocentista – da crise nacional enquanto forma insuperável de estagnação, este poema de alguma forma inaugura a ideia que Pessoa retomará uns anos mais tarde das “Índias Espirituaes”. Esta singular ideia cinge-se a isto: as novas descobertas a fazer não serão já nos mapas físicos, mas antes nos mapas mentais, culturais e “espirituais”, ideia que o ortónimo dará corpo em Mensagem e em centenas de fragmentos ensaísticos. Mas é o discreto soneto de Camilo Pessanha que permite dar a Macau e à produção aqui feita pelos portugueses um lugar central na genealogia de uma ideia que ecoará ao longo do século XX, a de um “imperialismo cultural”, na formulação de Fernando Pessoa.