Queirozices

[dropcap]Q[/dropcap]ueira-se ler Eça de Queiroz com algum sobreaviso – chame-se “olhar crítico” para condescender ao linguajar vigente – e depressa ressaltará uma contumaz sobranceria e não pouca petulância por entre os interstícios da magnífica prosódia, da calibrada pulsação narrativa, da mão firme no contorno dos tipos e da acuidade do retrato social.

Eça tinha mundo, andava lá por fora, vira coisas, ao contrário dos borra-botas que aos fins de tarde, encostados à Havaneza do Chiado fofocavam, demoliam umas reputações e lisonjeavam outras, arengavam opiniões, enfim ditavam as modas e os gostos a prevalecer na cediça e periférica Lisboa de oitocentos.

Em “A cidade e as serras” a cena do jantar no 202 dos Champs Elysées é impagável de ritmo e burlesco e só a pode engendrar não quem a imagina em abstracto, mas quem deveras conviveu com as luzes e as modernidades de Paris. A Madame de Todelle que caiu do velocípede, Dornan, “o poeta neoplatónico e místico”, Joban, “o supremo crítico teatral”, fazem conjunto com as elegâncias de Jacinto – “um roupão branco de pelo de cabra do Tibete.”

Mas a quem dirige Eça estas minuciosas descrições, quem quer ele que as leiam, senão precisamente os borra-botas da Havaneza?

Eça não pretendia apenas derrotá-los e calá-los com as graças do seu talento literário, bem acima da nacional-mediania e que mesmo o seu némesis Fialho de Almeida – ou mero candidato a isso, pois nunca pela obra lhe chegaria aos calcanhares – se via forçado a reconhecer. Eça queria esmagá-los, invectivá-los ou até deslumbrá-los com o seu cosmopolitismo. Sabendo-se melhor do que os coevos, porém mal-amado ora por aquele rancor tão portuguesinho ora por um despeito em troco do seu snobismo, Eça ansiava por asseverar uma posição existencial e intelectual superior à deles.

Dizem, e talvez com mais razão do que calculam, que tudo isto é muito contemporâneo.

Emulando a subtileza e a perspicácia inquisitiva de Eça na observação da sociedade em seu derredor é certo e sabido que não falta hoje quem, com o zelo dos escrupulosos, se proponha apostrofar esta choldra que não progrediu um milímetro desde os dias queirozianos, apenas transumou dos umbrais da Havaneza para o caneiro das redes sociais. E em reforço da cumplicidade com quem os ouve, como se reflectíssemos aqui entre nós tão clarividentes que somos, lá vêm as imprecações contra a letargia e a cupidez dos tempos, as cabalas dos poderosos que se não viéssemos acusar ninguém as expunha, a superficialidade e a bruteza do povo que enxameia os hipermercados aos fins-de-semana, a mesmidade dos vendilhões do templo da cultura que se põe com entretenimentos em vez de denunciarem as enfermidades da grei com murros no estômago dos espectadores, o Estado pusilânime que não investe nas radiosas flores que amanhã nos deslumbrarão.

O diabo é que quem se põe com estas faenas acaba por ser parte delas. E ao constituírem-se de motu próprio como fiéis depositários do “sentido crítico” queiroziano, ao apropriarem-se do lugar do narrador que é o de um deus ex machina, estes pretensos videntes afundam-se num pedantismo em que só o génio na escrita de Eça o protegeu de nele escorregar. Descarnados desse dom os imaculados não passam de pernósticos, traço indissociável do ridículo.

É isto um fenómeno patrioticamente luso-nacional-português que Eça ele próprio não desdenharia capturar em prosa. Aqui ninguém enfia carapuças em concreto pois todos crêem que ela cabe melhor na cabeça de outros em abstracto, por isso tantos há que queiram dar uma mãozinha – ou meter a mão pela calada – na troça de assestar carapuças noutrem.

Sucedeu, portanto, que os descendentes dos toscos e ronceiros que resmoneavam diante da Havaneza, sem se arredarem um milímetro das maneiras e da mentalidade dos antecessores, arrogaram para si a sátira e o entono de Eça de Queiroz. Bela partida lhe pregaram, não haja dúvida.

 

15 Mar 2019

Branquear com sangue

[dropcap]O[/dropcap] castelo está cercado, aproxima-se o fim. O general Kurogane sobe aos cómodos reais para confrontar a Dama Kaede, astuciosa intriguista, cujas conjuras e ciladas, acrescidas de um sortilégio sexual, conduziram o clã Ichimonji à catástrofe iminente.

A câmara fixa-se nela e Kaede, niponicamente hierática, como deve ser a alteza sobretudo em face do veredicto, vai fitando um ponto infinito enquanto revela que o seu triunfo é inexorável assim alcançando a vingança por que tanto porfiara. Está iminente a aniquilação dos Ichimonji que décadas atrás haviam massacrado a sua família.

Kurogane desembainha a catana e ante o clamor de pânico das cortesãs, na parede para onde agora olhamos estampa-se um formidável jorro sangue. O realizador Akira Kurosawa oferece-nos alguns segundos de fascínio e silêncio para contemplarmos aquele esplendor vermelho.

De seguida o General Kurogane repta quem o quiser ouvir: “Preparem-se para morrer.” E parte para a batalha.

Ao longo de “Ran” o General Kurogane assassinara e cometera crimes irremissíveis porque a todos os valores sobrelevou o princípio da lealdade. Em nome dela permitiu-se executar as iniquidades que lhe foram encomendadas pelo seu Senhor; para não a desfalcar recalcou apreensões e dúvidas, comprometendo-se com franqueza em actos que sabia serem indecentes.

Mesmo que imperturbável e deixando connosco o encargo de ajuizar o que nos dava a ver, a câmara de Kusosawa, porque nada omitindo, foi-nos revelando a personagem do General Kurogane como sórdida e degradada. Um esbirro sempre teria o indulto da inconsciência e da subordinação, mas o braço direito do Senhor não tem como atenuar a sua parte de responsabilidade individual.

É inesperado, logo um golpe de génio, daqueles que desequilibram o escrúpulo do espectador, que no final de “Ran” Kurosawa conceda a Kurogane uma dádiva inestimável – a redenção. É, aliás, uma dupla e apoteótica oferta: primeiro a de acertar contas com a perfídia ao cortar o mal pela raiz acutilando a Dama Kaede, no que acrescenta mais uma grave culpa ao seu rol; mas a seguir a de resgatar a honra com uma morte em combate.

Aliás retrocedendo àquela cena capital nela descobrimos, porque só ali nos é dado saber, que afinal a odiosa Dama Kaede também agiu com abandono e sem cupidez, por motivos superiores ao seu interesse pessoal, consciente desde o início das suas maquinações de que, na melhor das hipóteses, trespassá-la-ia a lâmina de uma catana. Também ela agiu por fidelidade, neste caso à memória dos seus antepassados, desafrontando o ultraje com um castigo ainda maior do que o sofrido. Maior porque mais subtil do que a mera extinção olho por olho, dente por dente, da casa Ichimonji. A queda que ela provocou é antecedida por um apogeu de poder e força, angariados por uma sucessão de infâmias políticas, conjuras familiares e massacres militares. Não só ela fez com que os Ichimonji caíssem de mais alto como trabalhou para que merecessem a ruína.

Ou seja também com a Dama Kaede Kurosawa foi misericordioso. A economia narrativa de “Ran” ficaria estropiada se ela fosse retirada de cena de maneira inconclusiva, rendendo o seu desenlace à imaginação e à especulação dos espectadores, talvez a pior desgraça a que se pode condenar uma personagem. Esse martírio ficou reservado para o velho rei Hidetora cuja ponderação, equidade e candura no início do filme, ao dividir com isenção o reino pelos seus três filhos, desencadeou todos os tormentos e tribulações que fomos presenciando. Hidetora, o justo, acaba cego e só a tactear o vazio à borda de um precipício.

As culturas mais díspares e historicamente incomunicáveis, todas reconhecem o sacrifício da vida pela sorte das armas como um honroso resgate dos males antes praticados. “Ran” é assim um filme absolutamente japonês e absolutamente shakespeariano. A tragédia é inseparável do sangue – nos tempos de hoje talvez o elemento que mais repugna ao sentimentalismo e ao moralismo vigentes – e tem aqui como detonador a lealdade, pois é por via dela que se corre para a perdição.

Do elenco de virtudes cardinais a lealdade será a que mais a que mais sobressalta a ética com os seus dilemas, a que mais corrompe as outras virtudes e a que mais dano causa a quem a professa. Incubado nas decisões erradas que incauta e aleatoriamente por ela vamos tomando o vírus do fatalismo nela latente pode alastrar a peste da tragédia, esse ectoplasma que se apropria sem remédio de uma vida.

Pior do que a lealdade só a deslealdade.

8 Mar 2019

Outra vez Roma

[dropcap]E[/dropcap]stivéssemos na Roma Antiga e a Grande Noite dos Óscars de 2019 seria o equivalente ao desfile triunfal do general conquistador ao longo do fórum até ao templo de Júpiter, aclamado em apoteose pela multidão e arrastando atrás de si os despojos. Para que não se deslumbrasse, o escravo que suspendia a coroa de louros sobre a sua cabeça segredava-lhe: “memento mori” (“lembra-te que és mortal”).

Que vitória se celebrou na passada noite de 24? A da admissão da Netflix na MPAA ocupando o assento deixado livre pela Fox entretanto fundida com a Disney. Para que o simbolismo do acto não passasse em claro esta nomeação foi anunciada a 22 de Janeiro, dia em que se divulgaram os candidatos aos Óscars entre os quais, pela primeira vez, constava uma produção da Netflix – “Roma”. Em terra de filmes nenhuma coincidência é deixada ao acaso.

A Motion Pictures Association of America representa os interesses dos grandes estúdios que se supõe coincidentes com os interesses da indústria em geral. Luta infatigavelmente desde 1922 junto dos legisladores para que nada prejudique e muito incentive a economia do cinema. Em resumo: faz lobby em Washington. Um dos seus presidentes mais famosos, dinâmicos e determinantes foi Jack Valenti que entre 1966 e 2004 conseguiu garantir, por entre ventos e marés extremamente adversos, não só a sobrevivência como o crescimento da produção cinematográfica. Foi ele o homem que tomou tantos pequenos-almoços quantos os necessários com o Presidente Clinton até dar cabo das veleidades da Microsoft em subordinar a indústria de cinema à economia das então apelidadas de “novas tecnologias.”

O espectador menos distraído ou que chega a horas ao cinema deve ter reparado que à cabeça dos filmes, depois de surgido o logotipo de uma conhecida “major”, sucedem-se nomes de empresas de produção pouco memoráveis. Disney, Universal, Paramount, Warner, Sony (ex-Columbia) concentram sobretudo o seu investimento na distribuição, ou seja, na parte comercial da fileira, e entregam os afazeres da produção propriamente dita a estas companhias.

Toda esta constelação tem como clientes principais as companhias de exibição, ou seja, as donas de salas de cinema. A seguir vêm as televisões, nos seus diversos formatos. A maior destas cadeias é a AMC que “por acaso” é desde 2012 propriedade de um poderoso grupo chinês, o Dalian Wanda Group. Um certo mau-estar, portanto.

Entra então em cena a Netflix.

Até à chegada deste serviço a hecatombe da indústria musical acontecida no início do século gerou uma forte e quase irremovível suspeita no cinema em relação a tudo que tivesse a ver com a internet. Pior do que a pirataria foi a cultura que ela desenvolveu, a ideia de que a música ou o audiovisual são bens comuns, como o ar que se respira, cujo acesso e usufruto é um direito gratuito. Isto é tão tolo como achar que as costeletas aparecem no supermercado por milagre.

O percurso da Netflix foi tudo menos previsível como são sempre as grandes transformações. E, também como de costume, resultou de uma série infindável de decisões, umas circunstanciais outras estrategicamente audazes, à imagem das partículas postas a correr num acelerador até que da sua colisão deflagre matéria nova. Tal como as majors assim a Netflix foi acrescentando à sua actividade de distribuição o investimento na produção até atingir o ponto de não-retorno e de consolidação actual.

De início vista e combatida como concorrente, mesmo como intrometida, mal deu sinais de generosidade em relação aos produtores, a Netflix tornou-se um parceiro deveras interessante na fileira do cinema. Veio oferecer a produtores e distribuidores uma alternativa à exibição em sala, deu-lhes acesso a um mercado irresistivelmente crescente e inexplorado, a internet, introduzindo a lei a ordem no que era um faroeste. Os índios desta história são os canais de TV cabo pagos – a HBO, por exemplo – cujo público está a migrar para outras plataformas e as salas de cinema que embora ainda não sintam na bolsa – o ano de 2018 terá sido o mais rentável de sempre – já sentem na estratégia o efeito desta concorrência: menos filmes, mais bombásticos (e caros), para um público afuniladamente adolescente. Isto vai acabar mal…

Uma poltrona na MPAA, uma obra prestigiada por prémios e louvores dantes reservados ao circuito do cinema, um modelo de negócio radiante – o mundo não está a mudar, já mudou. E a arma fumegante foi encontrada na mão da Netflix.

 

1 Mar 2019

Da eternidade em vida

[dropcap]S[/dropcap]omos fracos juízes do nosso tempo, sobretudo quando pretendemos adivinhar a eternidade no pedaço de história em que nos coube viver.

1.

Em 1884 o jornal “O Imparcial” de Coimbra organiza um inquérito entre os seus ilustres leitores para que escolhessem a grande figura literária do seu tempo. Em 1º lugar ficou o velho Camilo, em 2º Pinheiro Chagas e em 3º Latino Coelho.

Por estes dias já Camilo se arrastava meio cego no solar de Ceide, arrepiado pelos guinchos do seu louco filho Jorge. Foram só mais 4 anos disto até se suicidar, mas ainda deu para o escatológico “Vulcões de Lama”. O preito dado pelos leitores a Camilo seria assim aquele que se presta por mera reverência às individualidades histórias que calha ainda estarem vivas. Porque dos 3 nomeados o mais reputado nos círculos instruídos e decentes da capital, o que marcava o passo das letras coevas, era, sem dúvida, Pinheiro Chagas. Tudo que publicava fazia furor, “O Terramoto de Lisboa” e “A Mantilha da Beatriz” foram best sellers instantâneos e a crítica jurava pela perpetuidade literária destes romances. A sua escrita fresca e optimista sem prescindir de um módico de erudição, permitiu-lhe uma “História Alegre de Portugal”, acolhida como a prova evidente de que os grandes problemas e entendimentos do século podiam ser divulgadas com sucesso popular.

Contra Pinheiro Chagas, ou contra o seu patrono Castilho, ainda rabiou Antero na famigerada Questão Coimbrã, ao passo que Ramalho Ortigão e Camilo, nunca o desconsideraram. Eça, esse, invejava-lhe largamente o prestígio e ambos não se coibiram de trocar acrimónias.

Jornalista, deputado, ministro, tradutor de Verne, professor de Literatura Clássica na Universidade de Lisboa, Secretário-Geral da Academia das Ciências, fundador da Sociedade de Geografia, tudo isto além de escritor; quem poderia duvidar que Pinheiro Chagas seria laureado para todo o sempre como o maior vulto literário do final do século XIX?

2.

Se calhar ainda hoje há quem se lembre de “A Ceia dos Cardeais”. Foi talvez o maior êxito teatral de um autor português.

Sobre ser um escritor de sucesso, Júlio Dantas foi uma figura pública sumamente respeitada. Duas vezes ministro: da Instrução Pública e dos Negócios Estrangeiros; professor no Conservatório Nacional; Presidente da Academia das Ciências desde 1922; fundador da instituição percursora da actual Sociedade Portuguesa de Autores; Doutor Honoris Causa pela Universidade do Brasil e depois pela de Coimbra, terminou a carreira em glória como embaixador de Portugal no Rio de Janeiro.

Júlio Dantas cortejou a monarquia, aclamou a República e foi deferente sem meias-tintas com o Estado Novo. Sendo insubstituível e incontornável não houve quem o tomasse como oportunista.

Contestou-o apenas uma pandilha de rapazes neuróticos, snobs e insolentes, infectados pela fugaz moda do modernismo da primeira década do século XX, que inspiraram a sua truculência em Marinetti ou Mayakovsky e se acoitaram atrás do insano Almada Negreiros. O indecoroso e tremendo ultraje mais confirmou, a quem estivesse em seu perfeito juízo, que a História guardaria Júlio Dantas como a quintessência da intelectualidade portuguesa do seu tempo.

3.

Fernando Namora enalteceu-se como figura de proa do neo-realismo, um movimento que pretendeu libertar as letras portuguesas da grandiloquente mas balofa retórica do Estado Novo, utilizando uma prosa simples e naturalista para não só denunciar a miséria em que Portugal vivia, como exibir a irreversível verdade histórica para que a humanidade caminhava.

Ao plinto de Namora apenas se avizinharam Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes, uma tríade cuja sombra se projectou na literatura portuguesa durante os anos 50 e 60 e ainda um pouco na década de 70. Fora deles, dizia-se, havia pouco a considerar e quaisquer notas destoantes eram remetidas para um limbo.

Ainda hoje não deve ter havido escritor português mais traduzido do que Fernando Namora, pelo que, além de uma certeza científica, parecia uma evidência que lhe caberia ser consagrado à posteridade como o grande farol das décadas em que presidiu à literatura portuguesa, ofuscando quaisquer outras luzes.

4.

Hoje, o panorama literário de Portugal é dominado por duas figuras quase intangíveis, autênticos clássicos em vida. Manuel Alegre e António Lobo Antunes são as incontestadas eminências das nossas letras contemporâneas, os mais autopsiados pela academia, os mais consagrados pela crítica. Não se vê ninguém que lhes denigra o mérito nem alguém que lhes pise o manto da preponderância.

Será possível haver quem lhes negue assento entre imortais e memoriosos como Chagas, Dantas e Namora?

22 Fev 2019

Paris blues

[dropcap]P[/dropcap]ara o jazz, Paris era uma constante Primavera. Um sentimento de aconchego e desprendimento insuflava nos músicos ali chegados em digressão, fosse do bulício dos boulevards, da joie de vivre que pairava na atmosfera, da comida mais sápida e das refeições demoradas, da elegância blasé efluída de todas as coisas, ou mesmo das francesas, que olhavam sem subterfúgios e galanteavam sem acanhamento.

O céu dos outros é sempre menos turvo do que nosso, mas esta sensação de limpidez e desafogo tinha causa tangíveis.

Em Paris os músicos de jazz apanhavam-se longe da pressão em partes iguais de dealers, agentes, promotores e editores. Usufruíam por uma vez de um abrandamento que lhes instilava o gosto raro da liberdade – tudo ali lhes corria com folga e gentileza. Outra razão mais incisiva e pungente os encantava em Paris; resumiu-a Miles Davis. “Aqui não me tratam como um grande artista negro, apenas como um grande artista.”

Aos 22 anos e ainda com tudo por fazer, porque toda a criação que o perpetuaria veio depois, Miles Davis já impressionava quem o escutasse e ninguém duvidou que era estelar o seu brilho. Foi em 1949 que pela primeira vez levantou voo de solo americano e pela primeira vez abriu asas em Paris.

Ao cabo de um par de concertos de sala cheia Miles foi acolhido por Boris Vian e Jean-Paul Sartre que nele exultaram o artista informal porém veemente, sofisticado mas livre de sofismas, que se afirmava a contracorrente sem ser adversativo, desmarcado do sistema contudo isento das complacências da marginalidade. Estigmatizados por uma espécie de complexo de Caim viram em Miles um alter-ego. Vian e Sartre professavam o inconformismo como norma, todavia em vez de se verem expulsos do Éden académico, assim legitimando a sua rebeldia, tão-só haviam arrombado uma porta aberta e ficaram com as chaves do meio intelectual na mão. Miles Davis ostentava, portanto, uma integridade original que eles haviam institucionalizado e da qual tinham saudades. E se Miles nunca ouvira falar de Sartre e Vian de imediato percebeu a envergadura e o alcance deles. Arrastaram-no para os círculos da boémia de Saint Germain e apresentaram-no, por exemplo, a Picasso, também ele interessado em conhecê-lo. Nas longas e animadas conversas até altas horas da madrugada Miles escutava e era ouvido sem que por uma vez se lembrasse, ou alguém o lembrasse, que era um negro entre brancos.

Em 1949 as úlceras da ocupação ainda segregavam pus, a França oscilava entre a vingança e o recalcamento, numa espécie de guerra civil em banho-maria. Mal supurada a cicatriz ficaria para sempre, mas na Paris desse tempo ninguém sabendo que cartas se escondiam em que mãos, o jogo estava em aberto e tudo era possível.

Que mais poderia acontecer a Miles Davis em Paris senão apaixonar-se?Mesmo que só mais tarde o cognominassem de “Prince of darkness” já então Miles irradiava reputação de bera e mercurial. A velha história: arreganha os dentes para que não te ponham o pé em cima. E já entendia, por experiência própria, que vida e a música, o génio e o valor, o reconhecimento e o respeito, não cresciam juntos. Na sua atitude, porém, não havia máscara mas armadura. De modo que na Paris fervilhante de 1949 o existencialismo que então pulsava nos espíritos e corações acometeu Miles de modo subcutâneo e não apenas como uma volúptia epidérmica.

E por quem haveria este príncipe das trevas de se apaixonar senão pela musa dos caveaux, a feiticeira da nova chanson, sempre de vestida preto, Juliette Greco?

Arrebatadamente usufruíram de todas as prendas que os amantes cobram de Paris: passeios de mão dada ao entardecer pela margem esquerda do Sena, jantares íntimos num bistrot à luz das velas, confidências e beijos num banco do Jardim do Luxemburgo. Haveria nisto a puerilidade e a diminuição do cliché se não estivessem eles precisamente a instaurá-lo (a célebre foto de Doisneau, “Le Baiser de l’Hôtel de Ville” é de 1950) e sobretudo se fosse minimizado que ninguém virava a cara ao ver um negro retinto e uma branca muito pálida a trocarem carícias em público. Quanto ao resto que é sólito verificar-se entre namorados, Greco, que jurou em canção de tudo se lembrar, admitiu numa entrevista, guardando recato nas palavras mas escapando-lhe um sorriso de plenitude, que ambos estiveram à altura das tórridas promessas.

Revelando uma insólita vocação para padrinho Sartre perguntou-lhes de boa-fé porque não se casavam. Miles poderia ter redarguido com escrúpulo: “porque nos EUA vivo com Irene Cawthon de quem tenho dois filhos” ou respondido com lucidez: “o que se passa em Paris fica em Paris.” Preferiu a verdade: “Se casássemos Juliette nunca seria considerada nos EUA uma grande artista, mas apenas a minha ‘white bitch’”.

E assim foi que Miles Davis provou o travo amaro da renúncia, que nem a graça do altruísmo mitiga. Quem sabe se desta inacabada paixão, agora lendária, remanesceram os indícios de cepticismo e retraimento que ecoam no timbre da sua música.

15 Fev 2019

Aterrar em segurança

[dropcap]S[/dropcap]abes que se te virares a extensão do que ficou para trás já é suficientemente vasta para que o horizonte se desvaneça em brumas. Longe vão os alvores da aurora e por diante encadeia-te a direito o ocaso – quando levantará o mocho que voa ao crepúsculo?

Mas é preferível não fazeres como a mulher de Lot, exemplo do que pode suceder a quem olha para trás.

Mesmo de olhos fechados – sobretudo de olhos fechados – percebes que são mais os escombros, as lavras inacabadas, as casas abandonadas, os caminhos que derrocaram ou deram em impasses, do que o edificado capaz de subsistir um pouco para além de ti. Verás também que ao cabo de tanto som e de tanta fúria, e de tão pouca consequência que tiveram, é estreita e marcada de acasos a vereda por onde chegaste até aqui.

Já sabias, contudo, que assim era, ninguém te iludiu ou prometeu outra paisagem, diferente desfecho. Bem avisado foste por tantos dos que te precederam e tiveram a generosidade de contar o que sentiam e verificaram em face daquilo que se lhes deparava – está tudo pintado, cantado, escrito ou filmado.

Mas tal como a memória é um epifenómeno ou uma circunstância do esquecimento, porque se o cérebro não deslembrasse a vida seria impossível, de tão angustiosa e paralisada, também a sabedoria nunca há-de convencer mais do que a experiência e por esta é limitada. Não se sabe verdadeiramente quanto dói um choque eléctrico antes de se enfiar o dedo na ficha, por mais que a metafísica queira converter em “tristeza” e “felicidade” o que é sempre vivido como simples e pequenos desgostos ou alegrias.

Chegaste, portanto, aqui prisioneiro das tuas próprias quimeras, sobretudo daquela que te fez crer ser a marcha sempre para diante, equivocado por todas as pontas soltas que faltam atar (nunca nada se atará), pelo encantamento do que de novo te instiga como alternativa à rota batida em que vinhas posto. E deliberadamente, como todos antes de ti, julgando-te tu tão sagaz, confiaste que não seria igual contigo, que a qualquer hora o recomeço é provável e está ao alcance da mão.

Por outro lado é mesmo para trás que deves olhar.

O teu domínio não está no que virá, mas no que foi, no que à tua volta se foi esquecendo e só tão poucos como tu recordam. Conversas mais com os mortos do que com os vivos, porque é nos mortos que descobres maior sabedoria e novidade.

Nunca foi tão bom como agora – dizem e reconheces – nunca houve tanta escolha e diversidade, nunca tantos se empenharam tanto em tantas coisas. Todavia há um rumor surdo e persistente, a película superficial vai ganhando espessura, o ruído é cada vez mais sólido, a maré traz na frente mais espuma que demora mais a borbulhar sobre as coisas – serão os teus ouvidos ou será isto que declina?

Finalmente percebes. Todos estes clarões que à tua volta deflagram, a imporem-se com a vaidade e a certeza das coisas descobertas, como se fossem causas e tivessem futuro, não passam de meras consequências, fogachos ténues do que no passado já houvera sido imaginado. Não os incomodes nem desiludas; se lograrem atingir o revolto cabo que ora dobras, logo saberão ser normal contarem-se menos os triunfos do que os desaires, e que a repetição prevalece sobre a diferença.

Ao fundo, no fundo, o tédio. Não incomodes, não te atravesses, tenta não seres grotesco. Doravante seguirás na esteira do carro da sorte, visto que já recolhido foi o espólio da tenacidade e do merecimento que eventualmente houve e nada mais tens a receber.

Aperta o cinto de segurança, em breve acender-se-á a luz de aviso e uma voz te informará do tempo e da temperatura lá em baixo. Boa aterragem.

1 Fev 2019

Elogio dos filmes longos

[dropcap]H[/dropcap]á um famigerado, sacramental e tácito postulado entre os “dealers” e leiloeiros de arte nova iorquinos segundo o qual qualquer quadro terá de caber nos elevadores dos edifícios de apartamentos de Park Avenue.

Também no cinema é princípio consuetudinário que a duração dos filmes se inscreva entre os 80 e os 120 minutos. Em ambos os casos o propósito é o mesmo: não afastar consumidores por motivos meramente logísticos. Tanto um filme demasiado curto como um desmedido desorganizam os horários das salas de cinema impedindo-as de realizar a habitual quantidade de sessões às horas do costume.

A extensão dos filmes foi o combustível de uma “cause celebre” que definiu de vez a relação de poderes da indústria cinematográfica. Em 1925 o realizador Erich von Stroheim das 85 horas que havia filmado insistiu numa versão final de “Greed” com cerca de 8 horas e o jovem Irving Thalberg, há pouco tempo posto à cabeça dos estúdios da MGM, tirou-lho das mãos, mandou-o remontar sob a sua supervisão e deu à luz uma cópia com 140 minutos. A queda em desgraça do primeiro e o prestígio do segundo consubstanciaram-se com tal desfecho, mas além desta consequência imediata o que definitivamente ficou estabelecido foi assegurar que o produtor é quem na verdade imprime a sua marca no resultado final de um filme.

De modo que os filmes longos, muito longos, passaram a ser uma raridade circunscrita a um cinema de distribuição marginal. Até porque, é uma evidência, ninguém tem vida para se enfiar numa sala durante mais de 5 horas – ou bastante mais…

Há porém outra e menos referida causa para tal raridade, que não se detém na paciência do espectador, sequer nas dificuldades de produção. Um filme de longa duração exige uma segurança e uma maestria invulgares na manipulação do elemento mais volátil, impertinente, indómito, implacável, unívoco e, no fundo, essencial do cinema – o tempo.

Na verdade o rabo é o grande sensor da capacidade de envolvência de um filme, ao qual produtores e realizadores costumam – ou deviam – dar atenção. Quando as sinapses trazem ao cérebro sinais de incómodo do rabo no contacto com a cadeira é porque o enfado está a tomar conta dos nossos sentidos. E o enfado, como se sabe, é irreversível.

Quer isto dizer que duração não é demora. Sobram por aí curtas-metragens ditas de autor que abrem num plano estático e por lá ficam. Vasculhamos com o olhar os quatro cantos do enquadramento, tornamos a dar a volta e aquilo ainda ali está sem nada mais para dizer mesmo quando tem árvores batidas ao vento. Ao cabo de um punhado de prolongadíssimos minutos percebe-se que tanta e tão pretensiosa solenidade comparece unicamente para remediar o vácuo, que a coisa tem bazófia de sinfónica, mas é composição de uma nota só. A sensação de morosidade de um filme depende, portanto, da sua redundância, não do comprimento.

Fomos acostumados a que os filmes nos exijam concentração e esperteza para seguir as subtilezas do enredo, palpitação emocional para viver as alegrias e tristezas das personagens, contemplação ou deslumbramento perante as vistas e panoramas que ele nos dá a ver. Em troca é suposto devolverem um troço de vida condensada; em 90 minutos podem passar lá dentro décadas de história ou uns intensos momentos de drama.

Um filme verdadeiramente longo obriga à disponibilidade de uma viagem de avião intercontinental, sem mais nada que fazer senão estar ali. Ora isto tem potencial para originar um enorme prazer, equivalente ao de uma imersão total num universo paralelo. Estou em condições de afirmar que me custou sair de “Satantango” (1992) de Bela Tarr com 7h30m ou do documentário “Near Death” (1989) de Federick Wiseman com 6h, porque em ambos já me havia integrado neles e acomodado a permanecer ali dentro.

Noutros casos são filmes oceânicos, nos quais mergulhamos e vamos nadando durante um tempo, sabendo que não poderemos ir até ao seu fundo nem atravessá-los com as nossas pequenas braçadas – são muito maiores do que nós. A experiência de assistir a “Hitler” (1977) de Syberberg com 7h22m ou de “Le Soulier de Satin” (1985) de Manoel de Oliveira com 6h50m é a de começar a sentir que “aquilo” subsistirá para sempre independentemente de mim.

Ver um filme longo, tal como a difícil arte de ficar um ínterim sem fazer nada, oferece-nos um benefício precioso e cabal, que é o de ganharmos uma percepção do tempo doutro modo inalcançável.

18 Jan 2019

Sujeitos indeterminados

[dropcap]C[/dropcap]om tanto ardor se arrepelam os assuntos alçados à ordem do dia que ganham estes proporção cósmica, como se deles dependesse a fortuna e a regularidade do mundo. Mas logo que no cata-vento sopram outras excitações tudo se dissipa sem seguimento, efeito ou desfecho. Voltar atrás tempos depois – mesmo que tão só um par de semanas – ao que foi dito e vigorosamente discutido é como ir a um passado remoto onde as coisas se apresentam tão esdruxulas e embaraçosas como as calças à boca-de-sino dos anos 70 se as vestíssemos hoje. Exumar tais assuntos é capaz de valer a pena se for tido que as larvas da memória deixam a limpo o que tanto corrupio não degradou.

No dia 1 de Janeiro lá houve então mais uma Mensagem de Ano Novo de Sua Excelência o Presidente da República, despendida pelo actual incumbente.

Televisivamente é uma tradição encetada por Américo Tomaz, que a comunicava com monocórdica dicção de mestre-escola e fixado nos papéis, apontando para a câmara a cabeça de sáurio. Figurão manhoso e grotesco em partes iguais, tão nulo que a história o descurou, na última alocução que proferiu – mal sabia ele… – no primeiro dia de 1974, este Almirante de secretária estadeou com plenitude a sua vacuidade em frases como: “todos nós devemos ser profundamente humanos e, ao mesmo tempo, profundamente portugueses” ou “a Pátria tem o direito de a todos pedir que se unam cada vez mais.” Adágios que da Miss Alabama 2018 a um qualquer vereador autárquico, ninguém desdenharia.

Confirma-se, portanto, que apesar de vivermos tempos bem mais desenvoltos que os do antigamente, a tradição de rotundidade da Mensagem de Ano Novo mantém-se inalterável.

Serve sobretudo o discurso para azafamar as editorias políticas das redações, sempre ávidas de páginas chamativas, pondo em marcha um carrocel de declarações derivativas e subsequentes que passam optimamente por informação noticiosa. O que resolve a contento o quebra-cabeças que é fechar um jornal num dia em que estando todos, do povo aos responsáveis por ele, a jiboiar os excessos da quadra, nada acontece além dos folgazões e gélidos primeiros banhos de praia do ano.

Aos canais televisivos a mensagem presidencial fornece a antena de pelo menos 48 horas de debate e comentário, com comentadores (passe a redundância), um inclinado à esquerda, outro ao centro e eventualmente um terceiro apresentado como académico, infundindo assim um aroma de neutralidade e ciência (da social, não da autêntica) à cavaqueira.

Nas famigeradas redes sociais, onde um fósforo a arder equivale ao incêndio de Roma, a prédica presidencial é combustível óptimo para as apocalípticas altercações do costume. Por ali o mundo acaba todos os dias.
Os partidos também lá reagiram como lhes cumpre. Os partidos gostam muito de reagir porque lhes dá prova de vida e lhes permite exibirem, com “convicção”, “responsabilidade” e “sentido de Estado”, a determinação e a contundência que têm como múnus.

Com o tremendismo em que excele o actual inquilino de Belém, depois de em 13 parágrafos se aliviar do rol de chavões inerentes à credibilidade do cargo, entrou a alarmar as portuguesas e os portugueses interpelando-os com uma exigência. Afinal era tão só para lhes pedir que votassem nas eleições que irão pontuar o ano. Talvez não fosse momento para grandes explicações, mas decerto que o rogo seria menos inócuo se minimamente trouxesse luz ao perturbante facto de cada vez menos portuguesas e portugueses, e cada vez com menos crença, exercerem um direito inigualável e fundamental que os devia deixar orgulhosos por dele poderem fazer uso.

Guardado estava o bocado… Após algumas recomendações paternais, eis que o Supremo Magistrado da Nação solta a frase que concitou as atenções gerais:

“Podemos e devemos ter a ambição de dar mais credibilidade, mais transparência, mais verdade às nossas instituições políticas.”

Sem deixar os seus créditos por mãos alheias, os reactivos partidos retorquiram que sim senhor, que era mesmo isso, que tinha toda a razão. De igual modo a caravana de comentadores que segue estes dizeres, queimou toda a lenha da sua retórica para lançar sinais de fumo, com muitos rodeios e especulações, a propósito da sentença.

A todos faltou contudo, esclarecer um pormenorzinho. Estando subentendido o sujeito da oração e fugindo todos os intervenientes de calçarem esses sapatos, a quem afinal foi dirigida a invectiva? “Nós” quem? Ninguém se acusando é de supor que aos deuses ou à estratosfera.

No jogo de sombras em que protagonistas e figurantes actuam na ordem política vigente, este sujeito subentendido a que se referia O Senhor Presidente da República é a entidade mais enigmática e procurada pelo comum cidadão-eleitor.

“Eles” deviam dar um prémio a quem o encontrasse.

11 Jan 2019

As penas de Bird

[dropcap]M[/dropcap]ais do que uma vez Charlie “Bird” Parker se descompôs no indecoroso e lastimável espetáculo de encalhar diante do clube Birdland aos gritos de que lhe deviam dinheiro por lhe usurparem o nome e o proibirem de entrar. Desleixado como um vagabundo não hesitava em pedir esmola aos atónitos transeuntes que Sábado à noite pejavam a Rua 52.

O alcunha de “Bird” ou “Yardbird” foi um chiste de caserna apodado a Parker, com o seu quê de jocoso. Numa digressão ele salvara uma galinha de ser atropelada, recolhendo-a viva no autocarro. Não houve clemência mas egoísmo no gesto; no dia seguinte estrangulou-a, depenou-a, eviscerou-a, assou-a e comeu-a sozinho.

O Clube Birdland deveras homenageava – e capitalizava – a celsitude de Charlie Parker, percursor e sumo-sacerdote do bebop, música endemoninhada que só os duendes que nele estrebuchavam poderiam ter soprado. E mal abriu em 1949 depressa o Birdland refulgiu como uma das entradas mais chamativas da tal Rua 52, onde a partir do final dos anos 30 e durante duas décadas o jubiloso swing estrondeava no ar. Às mesmas horas, 5 fusos mais adiante na rotação do planeta, as noites da Europa Continental sofriam doutra animação, incendiadas pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial. Propelidos pelos ritmos fulminantes do jazz, grupos festivos ou corações solitários, aventuravam-se na Rua 52 até de madrugada, de porta em porta para dançarem, filar namoro, matar a sede e outros divertimentos. Havia naquilo tudo um frisson de transgressão, um sentimento de ousadia, de quem passa para o lado incerto da cidade.

A este travo de inquietação e um tanto de lascívia que se pedia ao jazz, e ele não se fazia rogado em proporcionar, o Clube Birdland acrescentou alguma bizarria na pessoa de “Pee Wee” Marquette, o apresentador de palco, que do alto do seu metro e dez de altura, introduzia os músicos com piadas duvidosas. E se eles não lhe dessem uma gorjeta, enganava-se deliberadamente ao pronunciar os seus nomes.

Cedendo aos rogos de Parker, ou para o calar, a gerência do Birdland deu-lhe o cartaz de um fim-de-semana. Mas na sessão de 5 de Março de 1955 Bird atingiu um nadir. Ao piano Bud Powell – outro génio fatal e martirizado, que passou por estadias em hospitais psiquiátricos onde o “trataram” a electro-choques – assaz alcoolizado, incapaz de acertar nas teclas, deu em insultar Parker, também ele mais para lá do que para cá, tendo chegado meia-hora atrasado, o que lhe valeu uma admoestação pública. Perante uma casa cheia a altercação azedou e num acesso de raiva Powell bateu com a tampa do piano e saiu do palco despejando uma nuvem de impropérios. Parker, como num transe, pôs-se a recitar ao microfone “Bud Powell… Bud Powell… Bud Powell…” Apavorados ou nauseados, os espectadores retiraram precipitadamente. Tarde de mais o contrabaixista Charles Mingus ainda tentou salvar a noite com uma frase que acabaria nos anais: “Senhoras e senhores, por favor não me associem a isto. Isto não é jazz. Isto é gente perturbada.”

Uma semana depois Charlie Parker morreria engasgado no sofá da suite de Nica, a vestal e protectora dos músicos de jazz. O médico-legista que o autopsiou espantou-se ao ver na ficha a idade de 34 anos. O corpo parecia de um homem de 70.

Bird não foi uma avis rara. Com o tempo os demiurgos do jazz foram ganhando contorno e estofo de trágicos, mas enquanto vivos eram muitas vezes suportados como intoleráveis e funestos, mesmo se admirados – criaturas a evitar. Quando muito levavam-nos na conta de dramáticos; sentiam-se incompreendidos, o que raro seria verdade, eram incapazes de resistir à exigência de uma criatividade infalível e constante buscando consolo no além do vício, e despenhavam-se no lugar-comum, nem sempre errado, que associa o génio ao desmando e à loucura.

As figuras lendárias alguma vez hão-de ter sido humanas e como humanos sofreram vidas dolorosas e amarguradas. Depois de morto de Parker ficou só o que de bom dele recebemos. É uma espécie menor, mas talvez a mais segura, de imortalidade.

 

4 Jan 2019

Progresso e crença

[dropcap]À[/dropcap]s nove e meia da noite do dia 14 de Novembro de 1853 a Rainha D. Maria II entrou em trabalhos do seu décimo primeiro parto. Correu tudo mal – das vascas da morte a esta propriamente dita foi o trânsito de uma madrugada.

Já antes Maria tivera parições duríssimas e três dos seus nascituros vieram mortos ao mundo. Segundo algumas crónicas, num caso pelo menos houve que degolar o bebé in utero para que a mãe sobrevivesse. Por volta das duas da manhã o Teixeira, 1.º cirurgião privativo da Real Câmara, ainda augurava esperanças, mas três horas depois pediu que entrassem os restantes quatro colegas, que salvaguardavam o pudor da monarca aguardando respeitosamente à porta da sua alcova, a fina-flor da ciência médica nacional, para deliberarem o que fazer. Foi consensual diagnosticarem a situação como aflitiva e de imediato deram início à operação. Rasgado o ventre da Rainha extraíram-lhe D. Eugénio a tempo de o baptizarem antes de expirar. Ainda foram convocados mais dois médicos, entre os quais o ilustre Magalhães Coutinho, mas a causa estava perdida. Sem recursos que valessem à moribunda, que se mantinha meio consciente, os clínicos ministraram-lhe clorofórmio para lhe mitigar o sofrimento e hão-de ter procedido a uma ou outra flebotomia, o que à margem do jargão da arte se chama de sangria, em tentativas para lhe purificar o sangue e estimular a reacção do organismo. Combalida mas lúcida, D. Maria confessou-se e recebeu a extrema-unção do Patriarca, despediu-se dos íntimos e foi-se esvaindo até ao seu passamento às onze da manhã. Tinha trinta e quatro anos.

As catástrofes sanitárias que assolaram a Coroa portuguesa não se ficaram por aqui. Dois anos depois da morte da Rainha consorte D. Estefânia, vítima de difteria, em 1861 e no período de um mês, o tifo haveria de dizimar o rei D. Pedro V, com 24 anos, e os príncipes D. Fernando e D. João, ambos adolescentes. Sobreviveu o irmão Luís que ganhou horror ao infecto Paço das Necessidades onde consta nunca mais ter posto os pés.

Se for levado em conta que esta mortandade se abatia sobre quem habitava palácios, vivia rodeado de cuidados, comia e bebia do melhor e do mais impoluto e era zelado pela mais avançada medicina da época, com maior acuidade se percebe a urgência e o realismo que Dickens investiu no seu “Hard times” de 1854 e Victor Hugo em “Les Misérables” de 1862. Há, porém, outro aspecto que importa trazer à colação: esta mortandade ocorreu há coisa de 150 anos, uma bagatela na passagem do homo sapiens sapiens pelo planeta, que já dura há 200.000 anos. O séc. XX abundou em desastres e patifarias provocadas pelo ser humano, mas também em progressos assombrosos. Só a má-fé ou um espírito obtuso não ficará extasiado com o facto de a medicina ter evoluído mais em tão curto tempo do que em todos os anteriores 189.850 anos. Hoje só por grave incompetência não teria sido estancada a hemorragia que vitimou D. Maria e as epidemias de tifo, se não foram erradicadas, estão controladas. De cada vez que fazemos o gesto simples e casual de tomar um antibiótico, há 150 anos enfrentaríamos a morte.

Estamos no entanto a assistir actualmente a um fenómeno perturbante senão mesmo embaraçoso. Os habitantes das regiões mais pobres e ermas do planeta onde a medicina não chegou ou é rudimentar, ambicionam, com maior ou pior sorte, o bem-estar e a qualidade de vida que ela proporcionou aos cidadãos dos países mais desenvolvidos. Por experiência própria, ninguém melhor do que eles entende as vantagens da aspirina ao chá de ervas a que têm de recorrer. Em contrapartida, uma parte dos principais beneficiários deste miraculosos progressos, a despeito de todas as confirmações históricas e estatísticas, deu desconsiderar a medicina e a ciência preferindo-lhes terapias – pseudo-terapias – cuja eficácia é sustentada por um atabalhoado e pedestre jargão cabalístico mas, aparentemente, muito convincente porque parece “tradicional”, “natural” e “autêntico”.

Dos vários motivos que levam tanta gente a tamanho obscurantismo, dois serão preponderantes.

40 anos de insistência numa cultura da suspeição estão a produzir o seu efeito. Dela emerge uma forma de niilismo que vez de reparar que nunca as sociedades foram tão abertas e escrutinadas como hoje, imagina o mundo governado por um círculo secreto e fechado a conspirar no escuro contra mim. De tudo se duvida, portanto, porque sobre tudo se presumem más e obscuras intenções.

Outra causa será a espécie de solidão e desalento existencial que carece dos consolos especulativos da metafísica e das verdades seguras, embora inexplicáveis, de um transcendente. Conhecer não basta, é preciso acreditar. Mas em nome de uma pretensa pureza este misticismo tem que ser exótico e original, esotérico e meândrico, porque das formas organizadas, domésticas e tradicionais, ou seja, das igrejas, desconfia-se que façam parte da conspiração.

Só desdenha aquilo que tem, quem o toma como adquirido. A isto pode dar-se o nome de “alienação”. Talvez um pouco de consciência histórica e, literalmente, de razão, mesmo que em doses homeopáticas fizesse bem aos insatisfeitos da boa fortuna.

28 Dez 2018

As Conquistas de Roma

[dropcap]A[/dropcap] Netflix é o Uber do cinema. E um filme como o tão badalado “Roma” é o primeiro passo desta revolução, a qual, como sempre acontece, vai causar enorme destruição antes de triunfantemente se afirmar.

“Aconteceu no Oeste” é uma caubóiada com todos os matadores, moscas e balas. Estreado em 1969, bem depois da missa do 7º dia pelo western, sob a batuta de uma banda sonora palpável o filme é uma voluta absolutamente ornamental, todo ele forma e feitio, que aos apocalípticos pareceu uma espoliação quase paródica e amaneirada do género e aos integrados uma divertida homenagem a ele. Sergio Leone queria fazer – e fez – prova de que o cinema tinha qualidades inalcançáveis à TV e enquadramento após enquadramento até os espectadores do primeiro balcão tinham de rodar a cabeça para ver um dos duelistas quase no Marquês de Pombal e o outro com os pés já nos Restauradores, na ponta oposta do ecrã.

Quando no clarear da década de 80 o vídeo se propalou por esses lares afora, era o cinema que ele metia dentro de casa. Com o vídeo o pessoal libertava-se da cadência imposta pela distribuição cinematográfica – se viste, viste, se não viste, azar… – e dos critérios de exibição das TVs. Havia tanta coisa que se queria rever ou se havia perdido aquando da sua estreia e agora estava domesticamente ao alcance do comum dos mortais.

Sucedeu então que “Aconteceu no Oeste” voltou à baila. Como enfiar aquele Rossio visual na Betesga do televisor? Assim se fez uso de uma técnica apelidada de “pan e scan” que basicamente rodava o olhar, como um movimento de câmara, dentro do que fora um enquadramento original imóvel. Isto era grande aleivosia, pois alterava a forma, a linguagem e, a limite, a tensão dramática das cenas. Famosa ficou uma exibição televisiva de “Aconteceu no Oeste” que não lhe tendo sido aplicado este método de abastardamento visual, na cena do duelo só se via, se tanto, a ponta do nariz dos actores, com a imagem centrada no cenário que Leone pusera ao meio entre eles. Ou seja, não se via nada do que se passava.

Tornando-se o vídeo e a expansão da televisão essenciais à carreira dos filmes, cuja esperança de vida comercial praticamente triplicou, bem depressa produtores e cineastas perceberam a conveniência de enquadrar as imagens ao centro. Por mais independente, artístico ou de autor que seja a fita, é no miolo da imagem que nela tudo acontece. Não há nada de novo nesta conformação da forma, ou seja, da “arte”, à difusão, quer dizer, às “conveniências” – já McLuhan havia ajuizado que “o meio é a mensagem” sem que alguma vez fosse desmentido.

E dos finais da década de 80 em diante assim ficaram as coisas que a Netflix veio agora bulir.

Anunciar “Roma” com as parangonas que aos filmes pertencem por direito adquirido e neste caso com Leão de Ouro em Veneza e tudo, e estreá-lo na internet, é desfaçatez tão grande e ousada como apontar uma pistola à cabeça da indústria de distribuição cinematográfica. É todo uma fileira industrial que está posta em causa, cidadela incólume desde os anos 50, mesmo com os ferozes assaltos da televisão, contra os quais nunca falhou em dar resposta. Televisão essa que a Netflix já pôs em frangalhos bem à vista de toda a gente e que anda à procura do seu futuro sem saber se o encontra.

Que tenha sido “Roma” a arma de arremesso é coisa de espantar. Porque diabo a Netflix elegeu um filme a preto e branco, passado nos anos 70, no seio de um lar na Cidade do México? Haveria obra menos provável para ir à conquista dos públicos?

Na verdade é um golpe de génio. As salas de cinema oferecem um espetáculo desolador a quem tiver mais do que 16 anos e já não tem paciência para os pulos e correrias dos ridículos heróis da Marvel, sempre vestidos de leggins e a discorrerem inanidades.

Ou seja, hoje as classes médias urbanas só saem de casa para ir jantar fora. Já antes, vai fazer agora 20 anos, um canal como a HBO lhes afagara o córtex e o gosto com uma série improvável e bastante incomum como “os Sopranos.” Ora aí estava algo que um canal aberto não ousaria transmitir e que não se dirige nem aos miúdos nem aos básicos. De modo que a Netflix, há-de ter feito o trabalhinho de casa e posto o marketing a peneirar estudos e estatísticas de modo a concluir que meter dentro de casa filmes diferentes, menos aparvalhados, com algum sentido, talvez devolvesse o interesse pelo cinema de cartaz.

Há ainda um aspecto nada despiciendo a destacar em “Roma.” De um ponto de vista estético é absolutamente televisivo, embora haja quem ache que a textura e os pormenores que enriquecem a imagem sejam mais bem apreciados no grande ecrã. O que a exuberância visual de um filme feito para ver em casa prova é precisamente o contrário: o triunfo do digital – ver um filme em ecrã HD, ali na sala de estar, é quase tão bom como ir a o cinema.

21 Dez 2018

Um coito que não seja carnal

[dropcap]O[/dropcap]livares, Conde-Duque e grande entre os Grandes de Espanha, todos na corte viam e sabiam o porquê de andar ele de monco caído, de vez em quando suspendendo-se da atenção devida às causas da coroa, que eram assoberbantes e pertinazes além de aturadas, a requererem porfiadamente olho-vivo e mão de ferro sob pena de a caranguejola filipina vir abaixo e os seus inimigos virem ao de cimo. (Como deveras acabou por vir, mas isso foi mais tarde para o que ora interessa.) O que apoquentava Olivares era o caso de a sua idónea e cordeira esposa, embora proviesse de uma estripe de sangue comprovadamente anil e sadio, não lhe fornecer descendente para lhe perpetuar o nome, por mais que no tálamo oficiassem a Príapo.

A ciência destes assuntos à época era indiscutivelmente a teológica. Pelo que Olivares pediu remédio ao frade Villaescusa, ingente doutrinário e de piedade tão severa quanto o escrúpulo, portanto capacíssimo para achar solução à desdita. O beato antes de gastar por inteiro os 50 minutos da praxe da terapia conjugal já concluíra o diagnóstico. Desfazendo-se em louvores à castidade de D. Inês – o valido do Filipe tinha fama de ser figadal e ao cenobita não lhe apetecia torrar na pira da Inquisição – sempre foi dizendo que a Deus vexava muito ela anuir com insofrido e venal regozijo ao sisudo coito matrimonial assim convertido em fornicação animalesca. De modo que o Altíssimo relutava em deferir o livre curso da natureza, obviamente à Sua omnipotência sujeita.

Deu-se então que uma inspiração divina, disse ele, acometesse Villaescusa. O insigne matrimónio haveria de copular no coro da igreja de San Plácido, assistido pelas monjas, de modo a que sobre a união resplendesse a máxima santidade. Aspirava que assim abençoado do exercício procriativo se erradicasse o corpóreo e o mundano e fosse todo ele místico. Estavam destarte os cônjuges nisso, com toda a probidade e cerimónia, e a insidiosa matéria carnal lá descobriu atalho para alardear as suas incontinências. Pejou-se por conseguinte e imensamente o friso de freiras, e o Cristo na cruz pregado há-de ter ruborizado, com os roncos de Olivares a fazerem contraponto aos mugidos de Inês, ambos aos arrancos em cima o altar, e Villaescusa bradou aos céus em desespero – como pode ser que nem no imo do que é mais sagrado os humanos se eximam de pecar?

Esta cena picaresca saiu da imaginação de Gonzalo Torrente Ballester e é lida na novela “Crónica del rey pasmado” (1989), ou vista no filme quase homónimo (“El rey pasmado”, 1991) que o realizador Imanol Uribe deduziu do livro.

E à conta da paródia pinta-se na figura de Villaescusa o retrato escarrado do idealista ou, esticando a corda, do utópico.

Como se reconhece um idealista? É aquele que entende estar a natureza humana inçada de máculas e defeitos. E mais assevera que tentar resolvê-los com melhoramentos e rectificações é panaceia que não embarga recidivas. Há portanto, proclama ele, que extirpar a humanidade dos empecilhos ou inibições que a impedem de atingir a boa aventurança. O idealista é um radical, não crê que o aperfeiçoamento conduza à perfeição.

O idealista é um que já sabe para onde tudo se encaminha ou deve encaminhar. Nem sempre sublimando-se como um iluminado, o idealista é sempre um convicto. Norteado pela lei moral que tem acima dele e não dentro de si – nos tempos que correm os céus estão perpetuamente nublados e não se vêm as estrelas – o idealista tem juízo claro sobre donde provêm dos males do mundo.

Contudo, sucede sempre que as coisas não cabem, têm arestas, criam atritos, enfim recalcitram à evidente pureza, à impecável generosidade, à manifesta beleza dos valores do idealista. Pior ainda: há uns que persistem em não partilhar a visão, os horizontes e o progresso do idealista. Tomando-os por atacado como cínicos, destes ele esmiuçará a opinião de que ou são burros, perdão, ignorantes e carecem de ser instruídos, perdão, educados, que é a maneira de lhes serem inculcados os critérios certos; ou são malévolos, estão de má-fé e merecem castigo, o qual, no mínimo, será a exclusão e o esquecimento.

Ao fim e ao cabo o idealista é um déspota em embrião, à espera de oportunidade para, como o piedoso e caritativo Villaescusa, moldar o mundo à sua forma.

17 Dez 2018

De cavalo para burro

[dropcap]Q[/dropcap]uando no outro dia acabei de ver “Broken Lance” (“A lança quebrada”) na TV reforçou-se-me a convicção de que dar atenção aos filmes pela assinatura do realizador, segundo o vigente e peremptório dogma do “cinéma d’auteur”, traz menos benefícios do que prejuízos a quem quiser ver o cinema sem os óculos escuros dos estereótipos.

Quase ignoto, pode-se considerar “Broken Lance” como um anódino produto saído em 1954 da linha de montagem de Hollywood. Edward Dmytryk, o seu realizador, nunca se fez digno do pendão e caldeira dos “auteurs.” E se David Thomson, sumo pontífice da história do cinema, o despacha como um que de tanto lhes puxar o lustro as suas fitas redundavam embaciadas e pomposas, também Pauline Kael a insurgente da crítica clássica, além de não ligar pevas ao filme, nunca isenta Dmytryk da sua mordacidade nas escassas referências que lhe faz em 5001 noites de cinema.

Estaríamos conversados não fosse “Broken Lance” uma caubóiada lauta e suculenta como um bacalhau com todos. Ora aqui está um belo exemplo de que para percebermos como as coisas resultam convém perceber como são feitas. No período exuberante de Hollywood as obras tanto poderiam surdir da ambição de um produtor em haurir a popularidade de um elenco, como despontar de um argumentista que trouxesse um guião promissor. Normalmente estas e outras mil intenções, em concordando, transitavam para a produção. De modo que realizadores com influência e arbítrio para convencerem os produtores a investirem nos seus projectos eram apenas um punhado, aqueles que tinham o “nome acima do título” – e mesmo estes, as guerras que tiveram para conseguirem, quando conseguiam, meter a unha na montagem final…

Há filmes bons e filmes maus e é aqui que tudo vem ter antes e depois de qualquer “ideia de cinema.” E se amiúde um filão de filmes notáveis confere com o nome de um autor, raro é que um determinado autor rubrique sempre filmes relevantes. Ora observar o todo pelos seus particulares e a partir das excepções, dar-nos-á dele o melhor, mas bastante peixe graúdo passa pela malha larga dessa rede.

Os eloquentes méritos de “Broken Lance”, que a ele nos prendem, promanam em primeiro lugar do cativante argumento. Veio ele de Philip Yordan, que apesar de vender histórias avulsas, mormente a companhias de 2.ª, o seu estro era sobejamente respeitado pelos pares. Que tenha ganho um Oscar depois de três vezes nomeado, valerá talvez menos hoje do que ter escrito o idolatrado “Johnny Guitar”. “Broken Lance” é um filme com ”mensagem” e está cosido de referências cultas – gato de rabo de fora é a alusão a Rei Lear e seus herdeiros.

Mas à boa maneira clássica isto é exposto sem levantar a voz; quem quiser ou puder, vê, e quem não vir não se perde no enredo. Por esta altura já o western não elidia a sua maior inclinação para o trágico do que para o épico. Fanada a suposta superioridade moral da conquista do Oeste o foco assestava agora nos dilemas e nos conflitos impiedosos que aquela terra sem barreiras acicatava. Portanto o argumento de “Broken lance” não poupa esforços para nos inquietar.

Merecedor de apreço paralelo ao da história é o elenco. Spencer Tracy, ciente do seu Outono, investe na personagem a altivez e a fúria que ela exige, mas também a convicção e o denodo que a tornam respeitável, traços de só um actor sazonado seria capaz. Com ele contrasta um Robert Wagner a filar o osso da sua crescente celebridade e um Robert Wydmark que por esta altura nunca deixava por mãos alheias os seus créditos como vilão.

Com balas deste calibre no revólver Edward Dmytryk tem o tento de não as desperdiçar. Ou seja, não estraga com temperos de “autor” os óptimos ingredientes que lhe deram. E nesta discrição manifesta-se a sua competência.

Artefacto de confecção industrial, comparado com os filmes de hoje “Broken Lance” dá-nos boa medida do quanto cinema se desvigorou. Todo o cinema. Quer o de cariz industrial, tributário dos planos de marketing, quer o que se diz independente ou auto-intitula de cultural, inflamado de propósitos ou afectado de estilo, mas que só ocasionalmente se desonera da falta de polimento e da parcimónia do artesanato.

7 Dez 2018

Coitado do Zé

[dropcap]S[/dropcap]e eu quisesse podia ter tido um caso com Ângela Molina, ela é que não quis.

Foi D. Luis, Grande de Espanha e olho de goraz, quem fez de Ângela Molina a Ângela Molina que ainda hoje é. Há-de tê-la medido de cima a baixo com a licença que a idade autoriza, e, embora correndo a desabrida década de 70 a pintainha nem deve ter piado, a despeito dos seus 22 aninhos e de uma natural propensão para o atrevimento.

Este Luís, não haja equívocos, é o Buñuel, impenitente e originário surrealista, entomólogo dedicado à observação dessa espécie superior e arbitrária de insecto que é o humano, blasfemo para com a igreja, sacrílego para com as formas narrativas. Um “monstro” como em Espanha se diz dos toureiros de cartel, ou um “monstro” como à portuguesa resmunga quem se benze em face de um iconoclasta.

Convencido com o que viu, Buñuel elencou Molina para a metade temperamental e selénica da personagem Conchita, guardando para Carole Bouquet a personificação do seu hemisfério luminoso e plácido. Porque assim e não doutra maneira é que o realizador achou bem, Conchita enverga por conseguinte duas actrizes, fazendo-o sem explicações nem causas, só com o efeito de confundir o espectador mais submisso – ou seja, todos nós – à unicidade entre actor e personagem. Este foi o último e obscuro objecto de desejo que Buñuel filmaria, nos idos de 1977, não admira que quisesse lá saber das regras.

15 anos depois, já éramos todos crescidos e Buñuel defunto, incumbiram-me de pajear Ângela Molina ida e volta de Seteais a Lisboa, convidada pela Cinemateca a confirmar em público que a famosa Ângela Molina não era de facto estrela, mas esplêndida lua que empalidece as estrelas do céu. Ela não arribara ao acaso ou de veraneio ao Monte da Lua, mas viera porque aceitara o papel de cara-metade de Jorge, esse coitado (e coitados de nós, que mal se viu o filme do homónimo Silva Melo, vítima das funestas bolandas da distribuição do cinema português.) Felizmente a memória atraiçoa, de modo que esqueci quem no percurso de regresso ao hotel propôs passarmos juntos parte do dia seguinte em que ela estaria de folga. (Eu? Não me reconheço assim temerário. Ela? A que propósito convidaria aquele galito entufado?)

Toda essa auspiciosa tarde de Sábado nunca saímos da suite do hotel e pouco conversámos, discorrendo-a em livre intimidade. Angela Molina folheava revistas, mesmo as que estampavam mais texto do que fotografias, fumava com desprendimento charros do calibre de círios e sem se distrair com a televisão a cintilar de som desligado, olhava longamente para o ar, abandonada no sofá de robe acetinado e estampado como de gueixa, num torpor de felino saciado. Acomodei-me, portanto, a contemplar os seus vagares, apreciando-lhe o corpo – tão próximo que se tentasse poderia tocá-lo – sem a impostura da discrição, pois percebi que estar atento e ser atencioso era a parte que me competia.

Porque o silêncio é austero ela queria que eu lhe fosse contando coisas interessantes sem serem controversas, de certo modo que a seduzisse, mas sem esforço ou tensão. Não era entretenimento que me pedia como se pede a um galante ou apaixonado, mas a oportunidade de por uma tarde se libertar da obrigação de ser Angela Molina, a vedeta a quem é devida deferência à qual ela se vê compelida a corresponder. Interroguei-me se não estaria a fazer de mim um marido putativo. Se acalentasse alguma expectativa ou mesmo ilusão de que algo de fantasioso pudesse suceder, um repente que eclodisse da ordem do palpitante e secreto, esta sensação de marasmo doméstico que ela de mim desfrutou foi-me desenganando.

Com uma certa regularidade Ângela Molina recaía na figura de Ângela Molina e desanuviava o desapego em que a tarde se consumia apoquentando o room service com caprichos ou minudências. Nada de excêntrico e trabalhoso, apenas para conferir que da porta da suite para fora ainda angariava estatuto de VIP.

Angela Molina era toda sexo, mas só de pele. Quando numa brevíssima sortida fomos às queijadas, que eu lhe havia elogiado como uma das delicadezas da vila, pôs um vestido leve com um decote que não mostrava nada e dizia tudo. Cabeças viraram-se nas ruas húmidas de Sintra à sua passagem, não porque a reconhecessem mas porque pressentiram que aquela mulher exibia algum significado indecifrável e queriam ver o resto.

Ângela Molina foi a única pessoa com quem deparei – ai de mim, falho de mundo… – que na vida só tinha de ser ela própria. Isto é uma propriedade e uma limitação e conforta-me imaginar que por uma tarde contribuí para aliviar fardo tão pesado.

Dei-me à veleidade de semanas depois telefonar um par de vezes para Madrid. Atendia a governanta. Lembrava-se lá Angela Molina daquele pedaço de nada.

30 Nov 2018

Brasil brasileiro

[dropcap]T[/dropcap]em causado estupefacção e não pouca ansiedade a nomeação de Ernesto Araújo para Ministro das Relações Exteriores do Governo de Bolsonaro do Brasil.

Ao longo dos anos Araújo não se coibiu de expedir pensamento sobre a ordem mundial contemporânea. Se é flagrante a coerência das suas opiniões, pode-se também dizer delas que parecem diminutas, crassas, formulaicas e mais apropriadas ao enredo de uma space ópera ou de uma banda desenhada da Marvel. Tragam-se à colação duas citações exemplares:

“Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão.”

Estriba-se tão magno desiderato no seguinte bosquejo histórico da globalização:

“Ao instalar-se a globalização dos anos 90, os programadores do sistema (não sei se eles existem enquanto indivíduos, ou se o sistema se autoprograma) refletiram e disseram: ‘Bom, já acabamos com a Nação. Será que precisamos ainda do Estado?’ Ali, a globalização econômica, que ansiava pelo fim de quaisquer barreiras, inclusive estatais, à livre alocação mundial de recursos, convergiu com o velho objetivo marxista de empurrar o mundo para o último estágio da ‘evolução’ da humanidade, o comunismo, definido como a sociedade sem Estado. Imagine there’s no countries: essa canção assombrosa de John Lennon tanto pode ser pode ser o hino da hiperglobalização econômica quanto o hino do marxismo em seu ‘sonho’ comunista.”

Deixando embasbacada boa parte dos analistas, há um aspecto nestas apreciações que não tem sido muito realçado e que talvez explique tamanha perplexidade: a lógica de Araújo é congenitamente brasileira, no sentido em que tão extravagantes argumentos só poderiam ter origem na extrema singularidade da economia e da mentalidade brasileira.

É possível contar o Brasil entre os países mais anti-liberais do planeta.

Em nome da independência e da protecção à economia nacional os cartéis oligárquicos que a conduzem sempre souberam proteger-se das turbulências do capitalismo internacional. À circulação fluida de capitais ou à atracção e captura de investimento externo, contrapuseram um sem número de barreiras alfandegárias e legislativas para que não fosse desacatada a repartição dos recursos nacionais entre os incumbentes nativos. O livre comércio, promotor da competição e consequentemente de disputa e alargamento do mercado interno, foi diligentemente refreado para bloquear o acesso à praça de novos concorrentes além dos que já a controlavam, todos concordando em verberar a influência deletéria do consumismo.

Entre conglomerados impolutamente nacionais e um vasto aparelho de empresas nacionalizadas, assim se reparte a produção de riqueza no Brasil a bem de um punhado de famílias extremamente milionárias e corruptoras e de uma corte de políticos corruptos. Este dispositivo remete mais para uma ordem feudal do que para a modernidade e perpetua-se porque decorre e reproduz um sentimento que no Brasil parece ser hegemónico: uma espécie de ultra-nacionalismo que talvez só tenha paralelo numa Arábia Saudita.

Na verdade uma explicação possível para a virulência da batalha entre Bolsonaro e o PT passa por verificar que não contrapuseram visões diferentes ou mesmo antagónicas do mundo (Trump=isolacionismo vs. Clinton=cosmopolitismo; Macron=UE vs. Le Pen=chauvinismo) mas ambos disputaram a primazia pela aversão ao globalismo, cada um prometendo que o seu Brasil seria mais impermeável a influxos externos do que o do outro. Se Bolsonaro jurou que acabaria com as nacionalizações para entregar o que falta à oligarquia, o PT deseja nacionalizar os monopólios tal como estão. De modo que conforme as inclinações tanto se acusa com orgulho patriótico o neo-colonialismo económico, como se combatem as teias do imperialismo capitalista – les beaux esprits se rencontrent…

Neste estrume ideológico nascem fantasias estranhas como as de Araújo. Se as suas lucubrações se nos afiguram esdrúxulas e baralhadas, no contexto brasileiro não serão de todo excêntricas. Ele não é lunático, apenas idiossincrático.

E tanto assim que se dá o caso de estarmos perante um insólito, e de certo modo burlesco, curto-circuito político, que é ver um nacionalista ultramontano a roubar e agitar a bandeira, até aqui ciosamente brandida pela esquerda altermundialista, do combate à globalização. Trata-se apenas de uma transferência da culpa pelas suas supostas. Afinal estas já não são obra da cupidez e da crueza dos desalmados banqueiros da Goldman Sachs mas das conspirações de pérfidos agentes do marxismo-leninismo mundial – quem sabe se não andarão conluiados…

23 Nov 2018

Contém cenas eventualmente chocantes

[dropcap]E[/dropcap]ste filme deve ser bom, alvitrou com notória expectativa o cavalheiro ao meu lado. Aprontávamo-nos para ver “Irei como um cavalo louco” de Arrabal.

Como percebeu que os meus 16 anos partilhavam igual antecipação, o velho – assim viria depois a depreciá-lo – desbobinou glosas e avaliações sobre as fitas que desfrutara recentemente e pelas quais cotejava a crença que tinha neste. Já vi o “Emmanuelle”, muito bom, belos cenários, mulheres de gabarito. E o ”Último tango em Paris” assim pró esquisito, mas tem lá aquela cena da manteiga que é de estalo e a miúda deixa-se levar… Há-de ter evocado mais um ou outro com maior percentagem de humidade relativa, cujos suores frios não ficaram para a história.

Terei corado de horror – desencavara um pequeno-burguês reaccionário, alienado e pervertido, que consumia cinema sem temática e linha cultural, muito menos revolvente ou revolucionário, só para cevar os seus baixos instintos.

Arrabal iria vingar-me. Ao intervalo o gaiteiro levantou-se de pulo, muito arremelgado. “Mas que grande porcaria. Você está a perceber isto? Já não há quem nos proteja de barretes destes, é o que é.” E saiu. E com ele boa parte da sala, resmungando igual vexame.

Mencionar que “Irei como um cavalo louco” era uma crítica à sociedade de consumo, à perfídia do capitalismo, aos costumes burgueses, não o distinguirá em nada dos demais desse tempo. Revelar que as personagens deambulavam à reata da psicanálise tal como o enredo desatinava à vara larga do improviso também nada esclarece. Se na década anterior os filmes ainda presumiam ter princípio, meio e fim, mesmo que não por essa ordem segundo a chalaça de Jean-Luc Godard, nos anos 70 jogava-se às malvas enquanto retrógrada a narrativa linear. À época a transgressão era norma canónica e dela terá persistido, ainda hoje, um certo preconceito que subentende na manifesta inépcia subtis sintomas de génio.

Eu viera ali ter encomendado a uma rigorosa dieta de filmes estrambólicos – isso das artes cinematográficas e suas metafísicas, era doutrina que ainda não se havia popularizado. Baldava-me com justa causa às aulas para ir ver mirabolâncias na linhagem de “Week end” de Godard, “Teorema” de Pasolini, “O Silêncio” de Bergman, ou outra qualquer complicação deliciosamente inalcançável à minha verdura intelectual.

Fernando Arrabal tinha créditos firmados nas formas do happening, do tardo-surrealismo, na sátira e no absurdo como denúncia. Ou seja, dava-me garantias de que não iria entender nada do filme, o que era grande virtude. Da sessão terei saído satisfeito, mas hoje confio tratar-se de obra fruste e desengonçada. Se tão poucos recordam “Irei como um cavalo Louco” e quase nenhuns o marcam como influente, alguma insignificância lhe pode ser assacada.

A bem da honestidade convém referir que fundadas razões de queixa assistiam ao homenzinho. Ele fora ludibriado pelos cartazes que nas vitrinas do Satélite (incrustado no cinema Monumental – coisas já completamente demolidas e obliteradas…) faziam reclame ao filme, todos alardeando cenas de nudez e fluidos orgânicos.

Numa feliz coincidência astral os naturais distúrbios da minha adolescência foram contemporâneos do incandescente ano de 1975, muito mal fornecido de sensatez. Ora isto provocou uma reacção em cadeia. Numa idade propícia a esticar a corda para além das regiões limítrofes do senso-comum, a explorar e experimentar coisas invulgares, esgrouviadas, chocantes, eis que também a sociedade portuguesa se precipitou num delírio colectivo, ávida de absorver num trago tudo de que fora privada durante décadas. Por conseguinte, gozei de um insólito e singular privilégio que foi o de ser impelido, pela força das circunstâncias, a desdenhar o equador da conformação, a extrapolar os meridianos do gosto, a bolinar de viés aos ventos dominantes.

Festa e desacato formam casal e só idealistas e dogmáticos (também estas parentes próximos) exigem que se divorciem. Porque foi sôfrega, esta liberdade irrompeu na forma da radicalidade. E como arrefeceu com demasiada rapidez ficou uma substância amorfa no espírito dos saudosos desses tempos bíblicos. Mas muito haverá a ganhar se forem feitas orelhas moucas aos suspiros de quem se arraigou a nostalgias anacrónicas. Pois de tão exuberante período redime-se bastante proveito: uma vontade de transcender o pensar e o “viver habitualmente”; uma predisposição para superar os lugares-comuns que nos são dados como evidentes; e, o que costuma ser deveras incómodo para quem estiver por perto, um irreprimível desejo de contrariar.

Hoje deploro a petulância do rapazola que sentiu asco e sobranceria intelectual em face do pobre sujeito que ao cinema só pedira algum refrigério para a sua virilidade. Na verdade não estava ele mais baralhado do que eu.

16 Nov 2018

Roteiro de uma novela

[dropcap]P[/dropcap]or uma manhã de 1948 estava Marta no mercado a sopesar a frescura das toranjas quando do fundo do corredor esbravejou uma voz masculina: “Mentiras, Martas, mentiras! Acredita que eu nunca tive sífilis!” Era Arnold – septuagenário, cabeça de Pierrot, calva lunar – quem assim ralhava de maneira tão destemperada. A Marta dirigia o escândalo, causando-lhe grande embaraço e estupefacção nos outros clientes. Mas ao contrário destes, intrigados com o desacato, seria doido?, estaria bêbado?, Marta percebeu tudo. Arnold referia-se a Adrian, personagem central do último romance de Thomas, que nalguns traços é verdade que poderia ser um avatar de Arnold. Desencadeado o drama passemos às apresentações.

Marta, de nome completo Marta Feuchtwanger, era mulher e musa de Lion, mentor de Brecht e escritor a quem os arbítrios da história não entronizaram no Panteão da literatura à medida do prestígio que gozava na época.

Arnold era Schoenberg, o Pedro fundador da música ainda hoje chamada de contemporânea, demiurgo e sumo pontífice da atonalidade e do dodecafonismo. Como boa parte dos criadores, sobretudo os que geram doutrina e se crêem deturpados por epígonos, sentia-se invariavelmente incompreendido. Dissabor que amiúde exprimia com um proverbial mau feitio.

O romance que Schoenberg invectivara era “Doutor Fausto” da autoria de Thomas Mann, publicado no ano anterior. Glosando a lenda de Fausto, o livro narra os sucessos de um compositor, o tal Adrian Leverkühn, que num pacto com Mefistófeles contrai sífilis para que a loucura lhe potencie o génio. Assim é que inventa um novo sistema musical, o dodecafonismo – não haveria Arnold de se sentir insultado?

À data, Schoenberg e Mann, em virtude da obra já fabricada, vasta e basilar, eram duas torres que deitavam sombra imensa na cultura alemã do século. E se na geometria instável e variável das relações humanas, sobretudo entre cabeças de cartaz com cismas de prima-dona, ora se conciliavam, ora gelavam, o certo é que as suas relações iam para além de um mero “passou bem” e conviviam nas soirées dos Feuchtwanger, nem que fosse para se evitarem e formarem círculo em salas diferentes.

Estas tertúlias que o desvelo e a encantadora personalidade de Marta promoviam – “tem o perfil de uma princesa egípcia”, diria dela Thomas – celebrizaram-se por a elas acorrer o who’s who da intelectualidade germânica: além de Thomas o seu irmão Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Horkheimer, Theodore Adorno, Kurt Weill e a formidável Alma Mahler-Werfel, que à época já fora viúva do compositor Gustav Mahler, ex-amante de Walter Grupius e de novo viúva do escritor Franz Werfel. Introduzidos os protagonistas talvez seja o momento de desferir um golpe de teatro.

O cenário em que se deu a truculenta peripécia entre Arnold e Marta não era o de alguma cidade em escombros e miasmática na devastada Alemanha de 48. Aconteceu sim no refinado Brentwood County Market, num dos bairros mais gentrificados de Los Angeles. E todos os nomes atrás evocados, além de outros de menor, mas não menos certa fama, igualmente domiciliavam em Pacific Palissades, onde a vida espairecia ao rumor das palmeiras, temperada pela suave brisa do Pacífico e o prazenteiro sol da Califórnia.

É fácil depreender que esta fina-flor ali viera culminar não de vilegiatura, como se em estância de repouso e lazer numa montanha mágica, mas por obséquio do cabo Adolfo. Entre as incontáveis patifarias por ele perpetradas contra a humanidade em geral conta-se esta em particular de ter estropiado de maneira irreversível a cultura alemã em nome de uma pureza primordial, de uma autenticidade acrisolada, de um integrismo inabalável.

Como todas as novelas também esta há-de ter moralidade.

Ainda hoje quem traga no bolso cinco melréis de mel coado de snobismo olha por cima do ombro para Los Angeles como para um descampado cultural. Imagine-se em 1948. Hitler votava pela América o desapreço que lhe merecia um povo rafeiro e sem raízes, uma nação dominada por plutocratas e judeus. Do ponto de vista cultural sintetizava-a como “uma anedota estúpida”: “o que é a América senão concursos de beleza, milionários, música idiota e Hollywood?” Em resumo: “uma sinfonia de Beethoven tem mais cultura do que tudo o que a América produziu até hoje.” Convenhamos que esta opinião calava fundo não só na Alemanha nazi, como em muitos círculos intelectuais europeus. Também alguma intelligentzia nova iorquina a partilhava em relação ao que provinha da Califórnia.

O sulco deixado por estas luminárias germânicas nas universidades da Costa Oeste – e não tanto nos filmes, porque aí foram outros alemães que marcaram – foi indelével e contribuiu sobremaneira para dar à América uma primazia ainda hoje incólume. Por mais que cegos não a queiram ver.

9 Nov 2018

Com vista para as traseiras

[dropcap]Q[/dropcap]uanto mais vejo a sequência inicial do filme “Janela indiscreta” de Hitchcock, mais ela se me afigura macabra e deplorável.

Vamos dar com James Stewart de pijama transpirado e perna engessada, imobilizado numa cadeira, a dormitar. Entra de súbito o rosto radioso de Grace Kelly em crescendo para câmara, mas afinal era para os lábios de Stewart, oferecida a um beijo mais abrasador do que o Verão urbano. No dueto subsequente Grace executará o que deveriam ser invencíveis manobras de sedução, desde o voluptuoso vestido de colecção pronto a ser despido (ou nem seria preciso…) até a um suculento jantar de lagosta, encomendado ao extremamente elitista e boémio “Clube 21”, servido por criado de libré. Qualquer espectador que não seja feito de gelatina, é infalível que neste ponto já lhe inflamassem as gónadas, mesmo ignorando que dali a um ano Kelly adviria indisponível enquanto Princesa do Mónaco.

Pois Stewart nada. De todo refractário às astúcias da Vénus furta-se a elas com relutância de peixe velho em picar o engodo, empregando um sarcasmo pedante, de quem se reivindica impermeável a frivolidades. O enfado dele é exuberante, como se soubesse que estava a ser filmado, e atinge mesmo a desonestidade emocional, quando a instâncias da frustrada Grace justifica a sua incomodada indiferença como sendo uma passageira hesitação. Nunca falha ser amarelo o nosso riso vendo-a sair porta fora com um “adeus” vexado por tão inverosímeis negas. Toda a cena é indesculpável.

Ah e tal…, isso são vocês deslumbrados com a novidade e a expectativa da cena…, ou esqueceram que a rotina gera o marasmo e a excessiva solicitude a lassidão do caçador perante a presa capturada?

Seria plausível o argumento, não fossem as cãs de James Stewart denunciarem os seus 46 anos de idade. E já não era o James Stewart cândido e generoso, personificação da virtuosa mediania que víramos na década de 40. Ele viera ter a este aposento com vista para o saguão após uma sequência de filmes com Anthony Mann, realizador sumamente asseado e pragmático, que não só o meteu a cavalo e aos tiros nas bravias florestas do noroeste americano, como lhe transfigurou o carisma. Posta de lado a sua proverbial inocência, o James Stewart de agora não desdenhava a ira da vingança, haja dela necessidade para desagravar injustiças.

Vá lá, faça-se um exame de consciência: mas que homem de 46 anos solteiro e autónomo, inevitavelmente titular de um acervo de desilusões na vida e decerto advertido que os dados da sorte não rolam com a boa estrela de outrora, que varão maduro permaneceria impávido aos fervores de Grace Kelly, bem condizentes com a avidez dos seus 23 anos? Mas quem preferiria entreter-se a bisbilhotar a vulgaridade dos vizinhos do que a explorar até onde consentiria a paixão de Grace Kelly? – de Grace Kelly! Quem?

Em jovens, nas primeiras vezes que vimos esta cena, quando o tempo e as oportunidades ainda eram incomensuráveis, partilhámos com gozo e cumplicidade não tanto a petulância de James Stewart – atire pedras quem não resmungasse que dava deus nozes a quem não tinha dentes… – quanto a torpeza de Hitchcock em comprometer-nos com a intuição de que a recusa será mais libidinosa do que cedência. Mas hoje não consigo deixar de ver na misantropia da personagem de Stewart algo de mórbido e punitivo que o realizador nos quis instilar.

Hitchcock sabia bem o que fazia. A são e salvo nos bem-sucedidos 54 anos que então envergava, é deliberado que faça pouco da protérvia da juventude e desconforte o recato da meia-idade. As duas classes etárias – que é para aprenderem… – o mestre da manipulação ludibria com mão direita as intenções pecaminosos incitadas pela mão esquerda. A cena não é a comédia de uma paixão desmerecida e malograda, mas uma provação apontada à lascívia dos espectadores. E este ostensivo gosto em retirar prazer da negação do sexo poder-se-á crer que seja a versão hitchcockiana da “Noche Oscura” do místico João da Cruz – poema que nos convenceríamos ter sido escrito por um libertino se nos sofismassem acerca da sua espiritualidade. Enganou-nos muito bem enganados, o patife.

26 Out 2018

O monstro do id

[dropcap]M[/dropcap]onstros não têm faltado ao cinema, abundantes em forma e proveniência, quase sempre barulhentos e escamudos, mas todos alardeando um incorrigível mau-feitio, dedicados a escangalhar a vida à humanidade. Quase nunca dão explicações acerca dos motivos da sua grande arrelia e, na verdade, nem é preciso: basta serem monstruosos para ficarmos esclarecidos quanto ao mal que aí vem.

Deste vasto bestiário uma galeria de celebridades incrustou-se no imaginário popular contemporâneo como ícones das nossas piores e recônditas inseguranças. Contudo uma das criaturas malévolas mais tenebrosas, e sobretudo surpreendentes, está hoje infelizmente um tanto esquecida. Talvez uma certa particularidade do “monstro do Id” dificulte recordá-lo: era invisível.

Pode-se especular que essa invisibilidade foi um belo truque da MGM, relutante em gastar demasiado dinheiro nos efeitos especiais. Para mais, sendo evidente a incipiência e a inverosimilhança da figuração dos monstros naqueles anos 50 – a tecnologia coeva não dava para mais – a MGM não desejava que a inaptidão dos recursos técnicos contrariasse a chancela de qualidade que imprimia em todas as obras saídas dos seus estúdios.

Do “monstro do Id” temos direito a ver por instantes tão só uma silhueta eléctrica, já perto do final de “Planeta proibido” o filme de 1954 em que ele (não) aparece. É por volta desse momento que a verdade nos é revelada. O bicho-papão descontrolado, implacável e autónomo que tinha vindo a dizimar a tripulação da nave espacial é fruto dos terrores inconscientes do Dr. Morbius, o guardião do planeta e pai da virginal Altaira por quem os garbosos astronautas ficaram pelo beiço. Incapaz de reprimir a sua involuntária e insubmissa criação Morbius acabará por entender que só morrendo o avatar será eliminado.

A ideia de um monstro criado e nutrido pelos nossos piores sentimentos, doutro modo ciosamente coibidos pelo ferrolho do sub-consciente, é um adorável achado. Mas sumamente arguto é preconizar que tarde de mais consigamos perceber sermos nós próprios a fonte de alimentação da energia maléfica, de tão iludidos que estamos pelo narcisismo da nossa consciência. Retardar esta descoberta inflige no espectador um sentimento de culpa – sem darmos conta todos calamos um “monstro do Id” à espera de algum proveito se recorta e guarda dos filmes que sirva para nos orientarmos.

Dispensada a sarja freudiana, que não passa de má literatura, que eloquente metonímia é este “monstro do Id” se o empregarmos na compreensão de certas aventesmas políticas a emergirem por todo o lado. A última delas esse desalumiado, e tudo indica que também desalmado, capitão Bolsonaro.

A democracia liberal atravessa um mau momento.

Cresce e já não se retrai o pressentimento de ser ela incapaz de corresponder aos anseios dos cidadãos, acumulando promessas falhadas, disfunções orgânicas e, sobretudo uma inquietante incapacidade para dar respostas a problemas sentidos e cada vez mais prementes. Inquietante porque os protagonistas da democracia liberal, aquelas que a governam, aparentam uma completa alienação em face deste maus augúrios.

Acomodaram-se às rotinas administrativas, aos processos e soluções do costume, por mais ineficazes e estéreis que se tenham demonstrado e afadigam-se em malabarismos eleitorais para captarem um voto crescentemente céptico e funcional (há quantos sufrágios andamos a votar “útil”?)

Se os políticos nem sequer percebem que há um problema, como poderiam resolvê-lo?

E não percebem porque estão formatados para desperceber. Paulatinamente vão divergindo as competências necessárias à querela política das competências da governação. O Estado foi governamentalizado, ou seja, foi sequestrado e instrumentalizado pelos profissionais da política que fazem carreira nos partidos para através dos governos ocuparem o aparelho estatal. Nesta circularidade – como ratos na roda – procedem como uma corporação que, conforme ao género, cuida desveladamente das suas conveniências como parte interessada.

Agora Bolsonaro, mas antes Trump, Le Pen e demais réplicas, são cabeças de uma mesma Hidra, gerada e cevada, larvar e latente no interior da democracia liberal, que irrompem como repelentes monstros do seu Id. Ansiosamente se deseja que a ela não caiba sorte igual à do Dr. Morbius que foi a de ter que morrer para os matar.

19 Out 2018

Mede-se melhor uma árvore caída

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]emos no filme “Padrinho” que D. Vito Corleone, estando a brincar com o neto, sucumbe a uma síncope e expira de borco mas tranquilamente entre os tomates da horta.

É um golpe de génio do argumento. Corleone não poderia bater as botas num leito de morte onde o escrúpulo e o arrependimento arriscam aparecer à última hora, profanando uma vida consagrada à criminalidade – os duros morrem calçados. Mas, por outro lado – na verdade o lado A desta cena – fazer de D. Vito um amorável avozinho que fenece de maneira leve e satisfeita, não só nos provoca inadequados sentimentos de simpatia por uma personagem que ninguém desmentirá ser impiedosa, inexorável e pérfida, como, nesse transe, nos baralha o sentido de justiça: é indesculpável que ele morra tão pacificamente pois manda a história do cinema, esticada desde o velhaco James Cagney dos anos 30 até ao híper-realista e cruento “Suburra” de 2015 que quem com ferro mata, com ferro morre, de modo que os patifes culminem na choça ou na cova.

Se o ofício do crime demonstra uma inflacionada tendência para acabar mal, porque continua a haver quem a ele se dedique? Porque são estúpidos, responderão os resolutos; ou inconscientes, dirão os crédulos; porque a sociedade não lhes deu alternativa, atalham os que resolvem os problemas encontrando culpados, mesmo que intangíveis. Ora o desenlace oferecido por “O Padrinho” subverte sotto voce esta convenção axiológica e põe na borda do prato explicações rudimentares. Faz pior: o passamento de D. Vito comove porque nos identificamos com ele, e identificamo-nos com ele porque sai reforçado nessa cena o nosso terrível viés cognitivo segundo o qual acreditamos que não nos vai acontecer aquilo que normalmente acontece aos outros. A investigação neurológica tem observado que o nosso cérebro está lamentavelmente estruturado para nos enganar, empurrando-nos a formarmos juízos distorcidos pelo preconceito e respaldados na ilusão de que aquilo que damos como certo em geral não se aplicará a nós em particular.

Desengane-se quem achar que isto é avaria de tolos. Tome-se por exemplo a classe dos quadros executivos (categoria que para este efeito exclui funcionários públicos e trabalhadores por conta própria.) Por todo esse hemisfério Norte, a Oeste dos Urais, eles são o sal das empresas, o lustro da classe média urbana. Empregos com automóvel e quilómetros de gasolina, cartão de crédito com plafond generoso para despesas de representação, ordenados que garantem empréstimo para uma boa casa e permitem colégio para os filhos. Belas e ambiciosas carreiras em perspectiva e uma ideia de que a massa de ar quente nunca faltará ao balão.

Até que na cabeça mosqueiam os primeiros orvalhos do Outono. Ou nos briefings começas a fazer figura de tubarão numa banheira de piranhas. Ou alguém lá de cima, atento às margens, nota que embora o retorno continue competitivo, o teu custo está acima da média. E quando dás por ela, antes dos 55 anos de idade…

Ninguém terá pena de ti. Não haverá reportagens e debates acerca desta espécie de genocídio social em curso, porque qualquer lamento envergonharia os dramas pungentes dos remediados que resvalaram para a pobreza e dos pobres em risco de miséria. Saíste bem, com indemnização e alcavalas, nenhuma hecatombe descarrilou para já o teu trem de vida, manterás a compostura e a esperança. Mas falta-te calcorrear uma década até à reforma e as provisões só te dão até meio da ponte. Descobres então que és demasiado velho para um mercado de emprego impressionável com o desconforto do “desemprego jovem”; demasiado experiente para não suscitares o receio de chefes inseguros; demasiado céptico e been there, done that para aderires a exercícios motivacionais. Os que não condescenderem um sorriso nas tuas costas abstrair-se-ão de ti como de um espectro.

Agora que és um dado estatístico talvez percebas que maior aviso terias se em vez de haveres imodestamente presumido que seria estrela tua um fim igual ao de D. Vito Corleone, tivesses tomado como advertência a inscrição à entrada da Capela do Ossos de Évora.

12 Out 2018

Não voltarás a Casablanca

[dropcap style≠‘circle’]Q[/dropcap]ue se saiba nenhum dos participantes na conferência de Casablanca de 1943, reunindo Roosevelt, Churchill, De Gaulle e respectivos áulicos, fez menção ao Rick’s Café, onde seria suposto desenfadarem de noite dos imbróglios e subtilezas diplomáticas que os Aliados entre si enredavam de dia. Tê-lo-iam as autoridades encerrado depois de averiguado o assassinato do major Strasser? Terão Rick e Renault cumprido a intenção de incorporarem as forças da França livre em Brazzaville tal como os ouvimos combinar?

Acerca disto resignemo-nos a uma perpétua ignorância. Certo e seguro é, contudo, que Rick e Ilsa nunca mais voltariam encontrar-se depois daquelas noites, em Dezembro de 41, de mortificante espera em Casablanca. Tal certeza tem inabalável base numa evidência. Se por acaso ou deliberação eles houvessem estado posteriormente juntos, fosse para caírem nos braços um do outro, ou para constatarem quão irremediável era a sua divergência, ou mesmo enquanto dois estranhos sem desejo de exumarem o passado; em qualquer das situações alguém teria filmado uma reunião tão querida e suspirada pelos milhões de corações românticos fendidos com o rasgo de virtude que separou Rick de Ilsa. E se não houve filme é indubitável não tenha havido reincidência.

Após um intervalo de 20 anos voltei a ser convidado para casamentos, agora a título de parente dos pais dos noivos. Não arrisco encalhar na periférica “Mesa 19” do filme (que é parvo, mas fere) porque me destinam assento no respeitável quadrante dos tios, daqueles que têm idade para desfrutarem do copo-d’água sem se engasgarem nas dúvidas existenciais próprias de quem sente o futuro a pedir-lhes contas. Em contrapartida é usual os comensais destas mesas tomarem a oportunidade como óptima para mansamente se embriagarem, sem culpa nem ostentação. Assim aproveitam bem o espírito da boda dando largas à melancolia e, nos casos mais melindrosos, ao remorso, interpelando o seu próprio e longínquo matrimónio. Onde estariam àquela hora se em vez do vínculo que os conduziu ali se tivessem decidido por alguma das alternativas em seu tempo preteridas? Nada disto é proferido, claro, porque a ocasião é de alegria e alegria se deve exibir; é só um pathos latente e sigiloso, para não envenenar a festa.

Afastei-me um pouco dos animados grupos que beberricavam sangria de frutos vermelhos (nome da moda de um xarope que rebuça vinho mau ou estraga vinho bom) à procura de um canto onde fumar. Ao lado do cinzeiro estacionava uma senhora encanecida e franzina, que evolava a classe indiscutível das avós insubmissas, das de gin em chávenas de chá, voz grave de timbre arranhado, clube de bridge, pele de muitos verões e cigarros finos de mentol.

Duas ou três larachas de circunstância não eram trocadas quando desferiu à queima-roupa: – Tu és o Zé Navarro? – O artigo definido suscita sempre um certo alarme, que fiz por apaziguar com a ironia de uma frase feita de filme americano:

– Quem pergunta por ele?
– Sou a Quica…

O passado equipara-se à má ficção, redigida por um escritor parcial e volúvel, incapaz de criar um nexo de causa e efeito naquilo que narra. Da Quica não me lembrava de nada a não ser da vivíssima memória que dela retivera: cenas fragmentadas, instantâneos soltos, expressões espontâneas, o contorno de uma silhueta esfumada, um par de cenários fixados pelo que neles aconteceu, roupa de inverno enrodilhada numa cadeira, um hálito.

E estas nebulosas reminiscências de modo nenhum se vinculavam à pessoa diante de mim.

– Reconheci-te pela voz.

Na expressão dela, que há-de ter reflectido o meu pasmo, transpareceu a mais nua e desprevenida sinceridade. Através do estrago que o tempo trabalhara nas feições do outro, ambos tínhamos acabado de aferir a justa medida do nosso descalabro físico desde aqueles impetuosos e desprevenidos dias de prazimento na década de 80.

Trocamos impressões durante um cigarro. Eram díspares e desfasadas as nossas entrecortadas recordações. O embaraço mútuo impediu de partilhar com aquela desconhecida a memória de peripécias e desenvolturas que decerto também ela guardava.

À saída do banquete procurei-a para me despedir, mas não a vi mais.

Ao contrário de Rick e Ilsa, a Quica e eu não fomos poupados ao desencanto com que a passagem do tempo conspurca o passado.

5 Out 2018