Dos brasões e dos impérios

Coitado do império romano, um império de mil anos, que foi sempre colonizado mentalmente. Dir-se-ia até que foram marionetes, primeiro dos gregos, depois do Cristianismo – ‘tadinhos!

O que nos ensina, este exemplo? Que a História não é linear, não é um mecanismo que conduza ao estipulado pela caução determinista. A História extravia-se irremediavelmente em becos, desperta energias que diferem em relação ao seu eixo e restitui, nos gérmenes das mentalidades que desperta, o que estava na sombra e agora irradia com uma tremenda força de contágio em direcções não previstas.

Daí que, di-lo Benjamin, caiba ao historiador suspender todo e qualquer preconceito se quiser contar a história tal qual ela é, i. é, no engendramento do que bifurca de si mesmo. E adianta na segunda das suas Teses sobre a História: “o cronista que narra profusamente os acontecimentos, sem distinguir grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez aconteceu possa ser dado por perdido para a História.”

Pior, em Benjamin, a utopia não é mais pensada como a crença no acontecimento inexorável de um Ideal localizado no termo mítico da história, antes ressurge – através da categoria de Redenção – como “a modalidade do seu acontecimento possível a cada instante de tempo”. E neste resgate acrescenta-se dignidade aos vencidos, que apenas de forma temporária e contingente, se encontram desse lado da barricada.

A História, portanto, reconfigura-se a partir das particularidades, do que nela jazia subterrâneo e marginal ao sistema em vigor. Pelo contrário, a História mostra-nos como tudo tende para o gradual e fosforescente domínio dos vencidos no plano das mentalidades. Para o bem e para o mal. Pelo que, na dúvida, na colisão das narrativas, é sempre melhor negociar cedências mútuas do que “vencer”.
Até na “indústria cultural” é assim: o rap, expressão das periferias foi assimilado, e, convertido em hip-hop, tornou-se dominante, até à náusea.

A Alemanha fascista ergueu-se sobre as ruínas dum tecido social vencido, humilhado e esquecido; a atracção pelo modelo estalinista nos países comunistas mais não foi que a violência maniqueia do ressentimento com que os vencidos trocaram de posições. A Primavera Árabe não foi pervertida, simplesmente acordou o monstro adormecido, que com um atitude sobranceira se havia negligenciado, etc., etc.

Aquilo que o Freud explicava caridosamente quando dava como uma das leis do inconsciente a sua impossibilidade de esquecer, tudo se retém na caixa negra do inconsciente para ser baralhado e voltar à superfície lá mais para diante. Com os povos e a História é o mesmo. Tudo o que se censura volta, o que foi desdenhado e empurrado para a periferia voltará sem remédio.

Acho por isso delirante a polémica em torno de “abafar” ou não os brasões, no Jardim da Praça do Império. O acto de retirar os 32 brasões do Jardim do Império é tão irrelevante para a dignificação da memória das comunidades afro-descendentes como desnecessário. Afinal, o que representam os brasões? Legumes, pequenos arbustos e flores das diferentes e antigas províncias do “Império”. Porquê vedar às crianças a oportunidade de perceberem que as papaias, a pêra abacate, as mangas, a goiaba, que vêem à venda nos hipermercados, são originárias dos países africanos de que inventámos os mapas – para depois lembrar que os “benefícios” do colonialismo geravam a infelicidade dos povos autóctones.

Já retirar os brasões perpetua o erro de recalcar o que supostamente – no novo império do “politicamente correcto” – é vergonhoso. A História faz-se também das suas vergonhas e crimes e não convém ocultá-los.
Só se adquire uma dimensão crítica quando ficam expostas as contradições do sistema e isso possibilita o recuo que nos distancia da carga ideológica de que os seus vários signos eram portadores.

Como escreveu Sena no poema Chartres ou as pazes com a Europa: «Europa, minha terra, aqui te encontro/ e à nossa humanidade assim translúcida/ e tão de pedra nos pilares sombrios.» A “humanidade” nalguma Europa é ainda (apesar de tudo, confirma-o a condenação de Sarkozy) translúcida porque expõe os seus pilares sombrios, não os esconde com um tapume.

Diga-se: a actual cultura ocidental aceita que a sua academia ou artes contrariem ou forjem narrativas paralelas à da sua “história oficial”, num ventilado sistema de correcção conceptual e de fugas, em sendo os argumentos convincentes. Esta liberdade não é global. Onde se oxigenam os ensaístas pós-coloniais, dos diversos quadrantes e raças, e que minam, tantas vezes com acerto e pertinência, a credibililidade das narrativas europeias; em cujo território, apesar de dissonantes, são tratados com respeito, beneficiando até de um mínimo conforto material para poderem zurzir com habilidade e apoio institucional na civilização ocidental? Na Europa (ou nos EUA).

E adianto já: é assim que deve ser. A saúde democrática demanda a presença de antídotos.
Não podemos é aceitar isto por um lado e querermos apagar, como revisionistas, o lado negro da História.
Nas sociedades conservadoras ou autoritárias os liames que cimentam uma sociedade são mais diacrónicos do que sincrónicos: emerge de um desligamento forçado com o presente a força dos símbolos fundadores.

Hoje, na era pós-colonial e da democracia electrónica, diferentes narrativas e tempos históricos digladiam-se e no tecido do quotidiano notamos a presença de vários tipos de presentes, correspondentes a uma heterogenia na composição do(s) passado(s). Neste panorama, o cultivo da memória e o seu debate são cruciais e não devem ser objecto de demagogia.

Como o fará o Chega, que ergueu a bandeira de partido que preserva “todos os símbolos históricos da nação portuguesa”, os quais vai distorcer e idolatrar. É importante que um pai afro-descendente a passear no jardim, possa comentar aos seus filhos, “Era com estes engodos simbólicos que os filhos da puta endrominavam os soldados que iam para a guerra oprimir-nos”, e que eu possa apontar aos meus, “As nações fazem-se numa soma de erros e barbaridades que convém não serem escondidos para podermos estancar a irracionalidade.”

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