Manchete ReportagemFilho único | Medida positiva e tardia influenciará mentalidades, dizem especialistas Filipa Araújo - 9 Nov 2015 “[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] um assunto muito discutível”, começam por defender alguns académicos, economistas e deputados de Macau quando questionados, pelo HM, sobre o fim, oficializado na semana passada, da política do filho único na China Continental. Depois de 35 anos – implementada em 1980 – a lei que proibia as famílias chinesas de terem mais do que um filho deixou de existir. O Governo Central da China decidiu permitir que os pais em vez de um, possam ter dois filhos. Os problemas demográficos – o constante aumento da taxa de envelhecimento da população – são os argumentos que servem de base para a mudança. Note-se que até ao momento a lei continha algumas excepções, como é o caso das famílias das cidades rurais que poderiam ter mais do que uma criança, caso o primeiro filho fosse uma rapariga, ou caso um dos membros do casal não tivesse filhos. “Há muito que isto devia ter acontecido”, afirmou Melody Lu, docente de Sociologia da Universidade de Macau. A proibição para a docente não fazia sentido, até porque o Governo nunca conseguiu controlar o nascimento de crianças nas zonas rurais do país. “Para percebermos as consequências reais desta mudança por parte do Governo Central precisamos de 20 ou 30 anos. Mas é preciso perceber que esta mudança vem influenciar directamente a relação e a visão que a China e todos nós temos da família e das relações parentais”, defendeu, frisando que esta terá um “impacto a longo prazo”. Para a docente a medida avançada, a curto prazo, pouco se fará sentir nos centros rurais do interior da China. “Desde os anos 80 que estas famílias destas áreas já tinham mais do que um filho. Nas zonas urbanas os dados mostram-nos que as pessoas querem menos filhos, as razões passam por questões monetárias, é caro ter filhos. Portanto há duas zonas e uma medida a implementar de forma diferente para cada uma”, argumenta. Melody Lu não tem qualquer dúvida quando afirma que esta medida surge de forma atrasada, “muito atrasada”. “O Governo Central começou a perceber as consequências do envelhecimento da população, mas já é tarde. A China foi alertada para este problema demográfico há dez anos. Esperaram até agora para tomar uma decisão. As decisões não se tomam depois das coisas acontecerem”, assina. Apesar de Macau nunca ter assumido esta política e de forma livre as famílias poderem ter o número de filhos que quiserem as consequências podem não ter sido sentidas de forma directa, tal como a mudança do conceito de família. A concordar está Teresa Vong, também docente do mesmo estabelecimento de ensino, que defende uma mudança radical no conceito demográfico chinês que poderá influenciar sempre as regiões vizinhas. “Foi feito um estudo que indica que apenas 30% da população residente na China quer ter mais que um filho, se assim for, isso não terá qualquer efeito nem Macau. Ainda assim é preciso perceber a mudança que esta alteração vem trazer. As famílias vão crescer, vão tornar-se cada vez mais numerosas. Acredito que a nova geração, a que neste momento está na casa dos 20, irá querer ter mais do que um filho. As minhas alunas sei que sim, que querem dois e três filhos. Há claramente uma tendência tanto na China como em Macau, e agora a ser estimulada, para ter mais filhos”, explicou. Falamos daqui a 20 anos Um aumento no agregado familiar trará mudanças obrigatórias, defende a docente. “Acho que os Governos terão que assumir que as novas gerações vão querer ter mais filhos e se isto acontecer as administrações terão de estar preparadas para receber esse aumento”, defende. Questões como a educação, saúde a habitação poderão ser verdadeiros “problemas” caso os Governos não estejam preparados. “É preciso que garantir as condições para as novas gerações”, diz. A não ter um impacto directo no território a curto prazo, e com diferentes mentalidades em Macau e na China, serão precisos pelo menos dez anos para perceber as tendências demográficas e da sociedade. Para já, a única certeza é que a geração jovem de Macau quer, “e isso é claro”, ter muitos filhos. Caracterizando-a como uma política desactualizada, Miguel de Senna Fernandes, advogado, explica que esta lei nasceu para controlar uma crise demográfica sentida na altura, mas que há muito que não faz sentido. “A China é a China, pode decidir isto, e claro, durante décadas controlou esta questão dos filhos únicos. Agora irá surgir uma nova tendência, um novo comportamento”, conta ao HM. Uma questão política O Governo de Macau, diz o advogado, terá que reforçar o seu controlo da demografia. A questão da reunificação dos pais [residentes no território] com os filhos que ficaram no continente, sem permissão de entrada, “é um problema que a RAEM terá que resolver”, e claro, estar mais atenta no futuro. “Não tenho qualquer dúvida que daqui a 15 ou 20 anos esta questão aumentará. O Governo da RAEM terá que resolver isto. Não sei de que forma poderá ser resolvido, mas isto terá que ser feito de uma forma gradual. Não podemos, claro, emitir um decreto que permita a entrada de todos, porque assim teremos sérios problemas cuja resolução será muito mais difícil, muito mais morosa”, argumenta. O problema demográfico de Macau, actual e no futuro, irá, defende, assumir níveis mais delicados aos quais o Governo terá que estar muito atento e agir com muito cuidado. “O que está em causa, claro que queremos que as famílias estejam juntas, nem se coloca essa questão, mas não podemos olhar esta tendência isoladamente”, diz. Macau é altamente populoso e com mais terrenos e mais famílias “rebentará pelas costuras”. A refutar a ideia do advogado está o deputado José Pereira Coutinho. “Não acho que esta nova política tenha um impacto directo nos novos emigrantes que chegam a Macau. Não me parece que vá alterar muito aquilo que já tem vindo acontecer. Não me parece. Neste momento, com a política de emigração da China, de permitir os vistos singulares, acho que são 100 por mês, de permitir a vinda de famílias à Macau”, anota o deputado, reforçando a baixa percentagem. Também Teresa Vong considera uma taxa muito baixa para se perceber se irá trazer, ou não, mudanças para o território, mas ainda assim é preciso esperar para perceber. “Os Governos devem estar com atenção e perceber os resultados”, nota. Pelos cofres nossos As justificações para a decisão por parte do Governo Central são muito claras para Miguel de Senna Fernandes. “Não há dúvidas que esta decisão está directamente relacionada com a distribuição de riqueza e com a distribuição de recursos”, diz. O controlo do número de filhos que cada família pode ter traz, para Miguel de Senna Fernandes, “implicações enormes na sociedade”. “É preciso ver que quando a China adoptou a política de um único filho estava numa situação de isolamento, era uma situação de um país completamente fechado à economia mundial. Era preciso controlar a distribuição de riqueza que, claro, estava directamente relacionada com o número de pessoas”, esclarece. Nos tempos actuais a China “é um país completamente diferente”. “O facto de existir uma abertura para mais um filho está directamente relacionada com a vontade de expansão da China. Talvez por uma razão política populacional e demográfica”, reforça. A mudança na sociedade é inegável, diz, começando pelo comportamento das próprias famílias. “Com a política de um único filho houve muitas famílias que escolhiam os filhos dependendo do sexo, existiam situações macabras, desumanas, relatos impressionantes. Tudo isto porque a população queria ultrapassar esta lei. Agora as coisas são diferentes, e as pessoas vão reagir de forma diferente”, remata. O economista José Sales Marques acredita que “hoje a China sente-se mais preparada para assumir esta política demográfica porque há um envelhecimento da população, por que a nível social a política do filho único tem, do ponto de vista do crescimento e formação das crianças, até a nível das famílias, um impacto que não é positivo”. Bastante criticada, a China descalça agora uma bota que lhe trouxe muitos dedos apontados, sejam internacionais ou internos. “Sempre foi uma política muito criticada, mas acredito que neste momento a posição da China relativamente à questão demográfica está a mudar porque o país precisa, por um lado resolver a bem a questão do envelhecimento da população, e por outro, a China tem uma política mais geral do ponto de vista do crescimento da população urbana e da necessidade de fazer crescer o consumo interno”, argumenta. George Wei, também docente da Universidade de Macau, caracteriza a mudança como “algo muito positivo”, que permitirá combater a tendência do envelhecimento da população. “Mas ainda existe outro problema. A China tem uma falha na força trabalhadora, a classe reformada é bastante elevada e só a classe trabalhadora a poderá sustentar, logo terá que ser reforçada”, remata. Para já a notícia é recebida de forma positiva, mas “é preciso sempre ter cautela com as consequências”.