h | Artes, Letras e IdeiasDa injustiça António de Castro Caeiro - 21 Dez 2018 [dropcap]O[/dropcap]s gregos não têm palavra para injustiça. Não, porém, como a conhecemos em português, arraigada que está, no substantivo feminino latino iustitia, -ae. A palavra latina tem a raiz ius, -ris. É o direito no sentido em que vincula os homens à sociedade humana. Nesse sentido, “ius” não é apenas direito mas também dever. A palavra grega para justiça é dikê e a Dikaiosynê nomeia a Divindade patrocinadora da justiça entre os homens. Contudo, o étimo dik- é de uma raiz completamente diferente da raiz da palavra latina e, por conseguinte, diferente da raiz da palavra portuguesa. A raiz *dik-, *deik- é a do verbo deiknymi e quer dizer mostrar, revelar, fazer ver, provar, produzir prova, denunciar. O verbo dico em latim, traduzido por eu digo tem a mesma raiz. Eu digo quer dizer eu afirmo, eu exprimo uma opinião, etc.. Por outro lado, o sentido de dikê exprime os usos e os costumes, portanto, tem um sentido eminentemente moral. Quer também dizer, modo de ser, jeito e maneira. Em última instância, quer dizer justiça, no sentido de denunciar para levar à justiça. Uma das interpretações mais complexas, porque aparentemente contrariam a opinião popular e a visão comum das coisas é a de Platão. Pela voz de Sócrates, a justiça é sempre levar à justiça para, em processo, chegar a uma sentença, “transitada em julgado”, isto é, sem recurso possível a um tribunal de instância superior. A dikê é a justiça feita, depois de se ter processado alguém. Contudo, se a sentença pode ser dupla: condenação e absolvição, para Sócrates “fazer justiça” é “pagar a multa”. Pressupõe, portanto, condenação. Nunca absolvição. Apesar de Platão ter escrito uma defesa de Sócrates, a Apologia, o Sócrates de Platão interessa-se, sobretudo, pela acusação, pela Categoria. Assim, na formulação dikên didónai, à letra, dar justiça, fazer justiça, há uma compreensão tácita de que se trata do resultado processual condenatório de uma acusação. O desfecho não é o de absolvição. O desfecho é a condenação. O substantivo feminino de 3ª declinação condemnatio, -onis quer dizer, numa das suas acepções as: “indemnizações concedidas num processo civil”. A formulação de Sócrates quer dizer: reposição da justiça, depois de ter sido feita, ao condenar o arguido num processo de apuramento de responsabilidades. É certo. O Sócrates de Platão usa o tribunal, o julgamento, o juiz, o arguido e acusação como um laboratório filosófico, a partir do qual, de modo concreto, se pode fazer luz sobre o conceito filosófico de justiça. Cada ser humano tem uma relação com a justiça e com a injustiça, é justo e é injusto, sofre a injustiça e repõe a justiça, independentemente de ter sido processado ou ter processado alguém. Faz parte da facticidade da existência humana que desde sempre nos encontramos numa relação intrínseca com a justiça por via da relação constitutiva aos outros. E mais, o mais das vezes e primariamente, somos confrontados com as injustiças desta vida, o mais das vezes sofridas, nem tanto causadas por nós. Ora o que Sócrates precisamente procura dizer é que o ser humano se encontra por defeito, by default, numa relação injusta com os outros e, na verdade, também, numa relação de injustiça consigo próprio. O que urge fazer é assim perceber o teor de injustiça das nossas relações com os outros. Não somos injustos apenas quando somos injustos, dizemos coisas da boca para fora que não queríamos dizer, mas ferimos os outros, quando ferimos os outros, por os ignorarmos, os magoarmos. Enfim, sabemos como podemos ser injustos com os outros na circunstância mais anódina da vida, quando parece que não temos responsabilidade alguma. O mais enigmático é isto mesmo. De acordo com Sócrates, o simples facto de estarmos vivos pode ter consequências de sofrimento na vida dos outros. Simplesmente, ser pode ferir os outros. Todos os outros. É como se o contrato social se baseasse na compreensão radical e simples, ainda que de consequências complexas, nós somos intrinsecamente injustos uns aos outros. Na raiz da injustiça está uma ambição constitutiva que não é sequer a legítima aspiração ao que podemos ter e ser, mas a ganância completa, a pleonexia de que fala Túcidides como estando na base das guerras entre vizinhos e estados. Se cada ser humano é totalmente perpassado por ganância, ambição e aspiração, à luz destes motores traçam-se as nossas tendências e inclinações, os nossos amores, gostos, interesses: tudo o que nos diz respeito. Sócrates acha que não somos nunca incólumes à injustiça. Mas di-lo de uma forma que nos deixa perplexos. O melhor seria nunca fazermos uma experiência de injustiça. Mas se for inevitável, então que sejamos nós o objecto da injustiça e nunca os seus agentes. Mais vale sofrer a injustiça do que ser injusto (adikeisthai mallon ê adikein). Mas mais. Diz que se formos injustos devemos repor justiça/pagar a injustiça o mais depressa possível e não ficarmos imunes. Mais vale repor a justiça/pagar a injustiça do que não repor a justiça/não pagar a injustiça (dikên didónai mallon ê ouk). Estas teses: mais vale sofrer a injustiça do que ser injusto e mais vale pagar a injustiça do que não a pagar são teses que vão contra o senso comum. O senso comum tende a afirmar a natureza do mais forte e não o costume imputado ao humano, segundo o qual os usos e os costumes estão inscritos na compreensão do outro, possibilidade do perdão. Aqui, expomo-nos às injustiças e queremos a todo o custo evitar praticá-las. É melhor ser objecto de injustiça do que tornar os outros objectos das nossas injustiças. Se praticarmos inevitavelmente injustiças sobre outrem, se formos injustos com outrem, então, é melhor pagar a injustiça do que não a pagar. Ora naturalmente, tendemos a querer escapar imunes. Requer coragem acusar-se a si próprio do mal que se fez. Requer coragem aceitar o castigo que repõe a injustiça e transforma eventualmente a situação em que nos encontramos, de remorso e culpa, numa situação de arrependimento e remissão, para usar uma outra linguagem. Cálicles no diálogo Górgias diz que a tese de Sócrates põe a vida de pernas para o ar, inverte em absoluto o seu sentido. De acordo com Cálicles o homem é por natureza violento. A violência é natural. O mais forte vencerá sempre o mais fraco. A lei está ao serviço dos fracos, porque nunca conseguiriam impor-se numa sociedade naturalmente constituída. Sócrates diz, contudo, contrariando Cálicles, que nem sendo ele o único ateniense a votar por estas suas teses, contra todos os outros, ele está do lado da vida e da verdade (ousia kai alêtheia). Será a tese de Sócrates tão difícil de compreender. Mesmo que naturalmente tendamos a compreender que preferimos fazê-las do que no-las façam, preferimos dar e não levar? Mas as acções ficam com quem as pratica. Tudo o que eu faço, ao agir a respeito de outrem, não surte apenas efeito e não tem apenas resultado no outro. De cada vez que tratamos um outro injustamente, o outro sofre. Causamos-lhe dano. Prejudicamo-lo. Fazemos que sofra. É certo. Ser injusto é causar dano, prejudicar, deixar em desvantagem e em sofrimento o outro. Contudo, a acção injusta sobre outro tem um efeito de ricochete. Vira-se contra nós também. A descoberta de si próprio na antiguidade não é reflexiva no sentido teórico e cognitivo do termo. É a descoberta de que o que quer que façamos não sai de nós para ficar depositado no outro sem consequências para nós próprios. A descoberta de si é feita na amargura e tristeza que abre a disposição da injustiça. A desgraça, diz Sócrates, revela-se na amargura de termos sido injustos. A tristeza vem da compreensão efectiva de como o outro ficou pela nossa acção. A ira e a cobiça são os motivos que os antigos invocavam para sermos injustos com outros, não os vermos ou então apenas como objecto de vingança e de desejo. E como repomos a justiça, como pagamos a injustiça? Sócrates diz que a tendência habitual para nos desculparmos e fugirmos a toda a acusação é a nossa natureza, mas a lei obriga a um trabalho interior que nos deve levar o mais depressa possível junto das autoridades ou do tribunal e denunciar-nos a nós próprios. A acusação é o trabalho a fazer e o objecto da acusação nós próprios. Quando julgados devemos fugir de toda a absolvição e querer íntima e intrinsecamente a condenação. Se toda a vida que temos tiver de ser paga com a própria vida, então temos de nos acusar sempre e querer intrinsecamente um castigo, porque desde sempre de cada vez que damos conta de nós na relação com outro, somos o foco de injustiça, o fundamento abismal do sofrimento causado ao outro. O absurdo destas teses de Sócrates resultam num mundo às avessas, para usar a interpretação de Hegel do que é a filosofia. Porque, no fundo, continuamos a observar a lei do mais forte, a da desculpa por sermos como somos, a evitar a todo o custo arrostar com o injusto e abominável em nós.