O outro país

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]os anos que antecederam a batida no fundo, ia a Portugal com muita regularidade. Houve uma altura em que a cada três meses apanhava um avião e Portugal deixava de ser, então, o país que lia nas notícias e ouvia ao telefone. Na comparação com aquilo que era no início do milénio, algum Portugal tornou-se esteticamente mais agradável, tecnologicamente mais evoluído, mais dinâmico na forma de estar. Algum Portugal parecia também mais feliz, apesar de já então se falar em crise.
Mas depois veio a batida no fundo, com aquele som oco da chegada ao fim do poço que secou. Por coincidência, as viagens a Portugal diminuíram e voltaram ao ritmo quase anual – mas a crise a sério chegou até aqui com as vidas de quem emigrou por não ter outra solução. E com as notícias e com as vozes do outro lado do telefone.
Nestes últimos anos, algum Portugal continuou esteticamente evoluído, mas mais triste e muito mais inseguro. O meu Portugal, aquele que mais me diz, esse ficou mais deserto, mais pobre de gente, com os velhos a desapareceram e os jovens também. É um Portugal em que a emigração se faz às dezenas de cada vez, um Portugal onde, quando chega a geada do Inverno, não se vê vivalma na rua. E os cemitérios se tornaram pequenos.
Algum Portugal, antes da batida no fundo, sofreu uma modificação difícil de explicar, que se sente ao nível da epiderme, e houve alturas em que achei que poderia estar no bom caminho, não seria a única a pensar assim, o país parecia-se mais com aquela Europa que prometeram aos da minha geração. Mas Portugal não se educou.
Importaram-se Bolonhas e fizeram-se mestres à força, putos com 22 anos que que coleccionam diplomas de gente grande e vivida, há mais miúdos com mais estudos e isso é um conveniente argumento político, mas Portugal não se educou. Apesar de esteticamente mais agradável e tecnologicamente mais evoluído, o país não se valorizou no que é importante. As crises favorecem sempre o umbiguismo e ajudam a enredos de novela. Portugal é um país em novelas constantes: as ficcionadas, as que dão de comer a argumentistas e a actores, e as reais, aquelas que não deviam ser novelas, que deviam ser apenas factos para digerir.
Como Portugal não se educou e a estética de pouco vale se não houver dois dedos de testa, o país vive sofregamente da novela do momento. São assim as televisões com maiores audiências, são assim os jornais mais vendidos, feitos para as pessoas que gostam de novelas por pessoas que também gostam de novelas – ou, pelo menos, se sujeitam aos secundários papéis que lhes são entregues.
Estive agora em Portugal e apanhei a novela dos refugiados, que veio interromper a saga das análises quase ininterruptas aos reforços dos plantéis para a nova temporada do campeonato de futebol. A novela televisiva dos refugiados começou por ser uma coisa que se passava lá na outra ponta da Europa para passar rapidamente a ser um drama nacional. Mas pelo meio houve Sócrates.
Sócrates saiu da cela que ocupou estes últimos meses – qualquer jornalista português que se preze sabe o número exacto de dias, eu não – e foi viver para casa da ex-mulher, detido mas em casa, com direito a mais do que um quadrado com grades. O momento foi vivido com muito entusiasmo, uma novela local tem sempre muito mais interesse do que aquelas que vêm de fora, mesmo que essas se apresentem com crianças mortas em praias. Sócrates saiu e numa rua sem qualquer interesse plantaram-se jornalistas como quem planta árvores, gente sem nada para dizer que não se coibiu da triste figura da entrevista ao rapaz da pizza que, afinal, nada tinha de tonto e não foi ao número 33 entregar uma extra-queijo.[quote_box_right]A novela televisiva dos refugiados começou por ser uma coisa que se passava lá na outra ponta da Europa para passar rapidamente a ser um drama nacional. Mas pelo meio houve Sócrates[/quote_box_right]
Mas, e ao contrário do que é hábito num país que vive de novelas, o drama dos refugiados não caiu no esquecimento do povo, apesar de momentaneamente atenuado com o regresso do antigo primeiro-ministro a Lisboa. Por curiosidade sociológica, não consigo deixar de ler, já aqui em Macau, os comentários que se multiplicam nas redes sociais sobre o que são ou deixam de ser os migrantes que fogem da Síria, sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer a pais com filhos ao colo, terroristas em potência para muitos daqueles que, apesar de terem uma escolaridade bonita e politicamente convincente, sofrem de uma profunda falta de educação. São todos especialistas em geopolítica.
Quem vive no mundo das novelas não se consegue preocupar com mais do que o episódio que acabou de ver, nutrindo natural curiosidade pelo que vai para o ar no dia seguinte. A condição de espectador é cómoda e comodista, não obriga a reflexão porque não se tem um papel no argumento, não se consegue mudar o rumo da história. O desfecho já foi pensado por outros que não aqueles que vivem no mundo das novelas. É assim na política e é assim na vida, nas coisas que aparecem à frente dos olhos de quem não quer perceber o que está a ver.
A Europa vive hoje uma crise difícil, depois de outra crise difícil de que ainda não se livrou. Importa reflectir como começou esta nova crise, quem tem um papel directo nela, como pode ser resolvida. O acolhimento de quem foge da morte não é fácil, a integração muito menos. Não é assunto para ser desvalorizado nem para ser tratado como ficção.
Aos portugueses em pânico por causa de potenciais terroristas com filhos ao colo resta desligarem a televisão, esquecerem a novela e lerem duas ou três coisas sobre os outros, os outros que vivem no mundo que não acaba na fronteira que já não existe com Espanha. A ignorância é atrevida e é dela que nascem os maiores medos.
Depois há também os outros, os que contribuem para o que é esteticamente agradável e tem contornos de evolução. Mas nada tem real interesse – afinal, as eleições estão aí e há uma nova novela a começar.

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