EditorialA lucidez implacável Carlos Morais José - 23 Jul 2015 [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]urante a nossa vida, a de todos nós, existem momentos que implicam decisões, quantas vezes irreversíveis. É nesses momentos que duvidamos, disto e daquilo, de nós e dos outros, num justificado temor pelo que se nos apresenta obscuro mas incontornável. Pode ser uma viagem, um amor, um trabalho e até um emprego. Algo de radicalmente diferente que se ergue no horizonte e para o qual caminhamos como num sonho, qual pássaro para a boca de uma serpente. Surge-nos então a ideia de destino, de inevitabilidade: um pensamento fatal, inoportuno à razão mas agradável ao nosso pobre coração. “É assim, não pode ser de outra maneira. Não o podia evitar”, dizemos então, mais consolados, mais perdoados, perante nós mesmos. Mas, lá no fundo, nesse fundo maldito onde tantas águas negras subtilmente se agitam, nesse abismo inconstante que impudicamente nos habita, permanece o rugir da descrença, a certeza da responsabilidade e da escolha. “Nada está escrito… que não possa ser reescrito”, imprecam os grandes malditos, que se erigem em modelos a seguir. Como sobreviver e aceitar não ser isto para ser aquilo? Como não ser tudo ao mesmo tempo? Trabalhador e viajante, marido e amante, pai e amigo, operário e escritor. Como não ser isto tudo e de uma só vez, num só e imenso fôlego? E ser ainda mais, à medida das nossas impossibilidades. Surge então a lucidez, prima da razão, irmã do bom senso, madrasta da grande vida. Para nos dizer da sua lavra. Para nos encerrar os desejos num cofre pesado e atirá-lo ao mar. Para conter nos limites do curral. A lucidez implacável, essa luz sem piedade que nos dá o mundo e rouba os sonhos, que nos faz sérios e nos oculta o que é realmente sério para a vida.