Sexanálise VozesA Teoria da Vinculação e a nova “Astrologia” Tânia dos Santos - 26 Nov 2025 A teoria da vinculação, durante décadas confinada a artigos académicos e consultórios de psicologia, entrou pela cultura popular adentro. De um momento para o outro, encontramos pessoas a descrever-se como “ansiosas”, “evitantes” ou “desorganizadas” com a mesma facilidade com que declaram o seu signo astrológico. A linguagem clínica entrou no senso comum, os estilos de vinculação ganharam vida em memes e reels no TikTok, e a intimidade passou a ser comentada como quem lê um mapa astral. Eu sou assim, tu és assado. Há algo de irresistível nesta tendência. Em tempos de incerteza, a promessa de uma explicação clara para os nossos padrões emocionais tem um efeito quasi-terapêutico. A tipificação oferece um vocabulário: finalmente podemos expressar, em poucas palavras, porque é que nos sentimos agarrados demais numa relação ou desligados demais noutra. E, para muitos, há um genuíno alívio em reconhecer que certos comportamentos — a urgência de uma resposta, o impulso de desaparecer — não são aleatórias, mas estratégias aprendidas para sobreviver emocionalmente. No entanto, à medida que esta teoria se tornou mainstream, ganhou também um lado mais complicado. A velocidade das redes sociais simplificou conceitos complexos até quase perderem nuance. O que deveria ser uma lente tornou-se um rótulo; aquilo que poderia ajudar a compreender, começou a aprisionar. E é aqui que surge a frustração: a sensação de que a teoria da vinculação foi transformada numa espécie de determinismo emocional. É comum ouvir declarações como “sou evitante, é assim que sou”, ou “ele nunca vai conseguir dar-me o que preciso, porque é ansioso”. Cada uma delas revela, ao mesmo tempo, um desejo de entendimento e uma certa resignação. A tipificação, quando usada como sentença, dá conforto mas tira agência: facilita explicações, mas empobrece a complexidade da experiência humana. Mais grave ainda, pode servir para desculpar comportamentos ou para patologizar o outro. Contudo, a teoria da vinculação, quando aplicada com sensibilidade — especialmente em terapia de casal — torna-se uma ferramenta reveladora. Em vez de reduzir a pessoa ao seu padrão, permite olhar para o que esse padrão tenta proteger. Mostra que as nossas reações na vida adulta são ecos das primeiras experiências de cuidado; não são destinos, mas trilhos que podemos desviar, se os compreendermos. Pensemos no caso, tão frequente em terapia, do casal em que um parceiro procura contacto e o outro se retrai. À superfície, parece incompatibilidade. Mas, quando os dois começam a explorar a própria história, descobre-se que o que hoje se manifesta como “ansiedade” ou “evitamento” nasceu de contextos muito distintos. Há quem tenha crescido num ambiente onde o cuidado era inconsistente: ora presente, ora ausente. Essas pessoas aprendem a estar vigilantes, a interpretar qualquer silêncio como rejeição. Na relação adulta, aproximam-se mais quando têm medo de perder. Outras cresceram em famílias onde a autonomia era a única forma segura de existir. Aprenderam a não depender, a não pedir para não correr riscos. Na relação, afastam-se quando a intimidade se intensifica — não porque não sintam, mas porque sentir demais sempre foi perigoso. Quando estes dois mundos se encontram, formam um ciclo doloroso: quanto mais uma das partes procura ligação, mais a outra se retrai; e quanto mais esta se retrai, mais a primeira intensifica a procura. E é precisamente neste ponto que a tipificação se torna útil: iluminar padrões. Em terapia, quando um parceiro consegue dizer “não estou afastado porque não me importo, mas porque estou sobrecarregado”, algo muda. E quando o outro consegue reconhecer “não quero pressionar-te; só preciso de sentir que continuas aqui”, abre-se um espaço novo de vulnerabilidade. A teoria da vinculação permite, assim, transformar mal-entendidos em pontes. Dá linguagem aos silêncios, contexto às reações, humanidade aos desencontros. Mostra que ninguém é ansioso “porque sim”, nem evitante por essência: somos todos resultados de histórias complexas, moldados por aquilo que a vida nos ensinou sobre amor. O problema, portanto, não está na teoria, mas no modo como a cultura pop a simplifica. Quando reduzimos estilos de vinculação a caricaturas perdemos a oportunidade de ver a riqueza emocional que existe por trás dessas estratégias. E, talvez mais importante, esquecemo-nos de que a vinculação é maleável. No fim, talvez devamos olhar para esta tendência com o mesmo espírito com que lemos um bom horóscopo: um misto de curiosidade, leveza e sentido crítico. A teoria da vinculação pode ser um mapa precioso, desde que não confundamos o mapa com o território. As palavras, e as definições, só valem a pena se nos derem liberdade.