Outra vez os Piratas

Ana Cristina Alves – Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultura de Macau

Têm corrido rios de tinta sobre a fundação de Macau, assim como sobre a fundação de Lisboa. Esta última os académicos consideram mais prudente, depois de devidamente analisadas as etimologias, ficar a dever-se a fenícios ou tartéssios (Rocha, 2007), mas que a lenda remete poeticamente para Ulisses, desde Luís Vaz Camões até Fernando Pessoa. Assim se lê no início do Canto Oitavo de Os Lusíadas, que os primórdios de Portugal encontram as suas raízes míticas em Luso, filho e companheiro de Baco, e as de Lisboa em Ulisses (Camões, 1997, VIII.5):

Ulisses é que faz a santa casa

À deusa que lhe dá língua facunda;

Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,

Cá na Europa Lisboa ingente funda.

Nada mais a propósito do que os ilustres lusitanos descenderem de deuses, bem como os seus espaços geográficos terem sido fundados por heróis gregos de inigualável valor como Ulisses, cujo engenho guerreiro e arte de marear a todos excedia. Daí que alguns séculos volvidos Fernando Pessoa, no segundo poema épico que os portugueses mais valorizam, a Mensagem se refira a Ulisses apontando para a sua dimensão mitológica e para a realidade incontornável que esta sustenta, já que “o mito é o nada que é tudo” (Pessoa, 1986, 24):

 Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.

Os mitos e as lendas oferecem à realidade muitas vezes o melhor que esta tem, na sua qualidade de projeção revelam ideias e ideais, fornecendo um importante manancial onde se manifesta o inconsciente, mas também o consciente coletivo de um povo. Ulisses guerreiro e navegador é o patriarca encontrado à medida para fundar a capital de um país de indomáveis guerreiros que fez frente a poderosos impérios, como muçulmano, o romano e, mais tarde, o espanhol e que havia de descobrir o caminho marítimo para a Índia, aportando mais além na Ásia Extrema, sem nunca perder a sua faceta cavalheiresca.

Esta seria magistralmente louvada no Canto VI de Os Lusíadas no episódio dos doze de Inglaterra, entre os quais figurava Magriço. Eles saberiam defender a honra das suas damas à espada, revelando uma valentia imensa, narrada por Veloso (Camões, 1997, VI. 48):

Este, que socorrer-lhe não queria

 Por não causar discórdias intestinas,

 Lhe diz: Quando o direito pretendia

 Do Reino lá das terras Iberinas,

 Nos Lusitanos vi tanta ousadia,

 Tanto primor e partes tão divinas,

 Que eles sós poderiam, se não erro,

 Sustentar vossa parte a fogo e ferro.

Este cavalheirismo havia de ser uma constante no imaginário português, não apenas com damas, mas com todos aqueles que se vissem em apuros. Assim sucedeu em Inglaterra, assim haveria de suceder no Sul da China, quando os portugueses auxiliaram os chineses a limpar os mares de piratas e em recompensa lhes foi permitida uma existência sossegada em Macau.

De facto, mesmo que estando apenas perante um mito ou uma lenda, esta só por si já teria a sua razão de ser, pois revela uma determinada imagem coletiva que os portugueses têm de si mesmos e que muito contribui, em termos de valor existencial, para orientar a conduta da população: eles estão aí onde são precisos, no socorro aos mais desprotegidos, numa mão a espada, na outra o coração. Esta é imagem que uma vez mitificada, pode ser aquele “nada que é tudo”.

Relativamente à fundação de Macau, o estudioso (a), depara-se com uma interessante mistura entre o mito e a realidade: primeiro vem a realidade, depois surge a lenda, e esta última terá infinitamente mais peso, senão atente-se nas seguintes informações de pensadores e historiadores insuspeitos.

Luís Gonzaga Gomes , em Macau – Um Município com História (1997) no capítulo “Teses divergentes sobre a origem de Macau ”, defende que existem várias teses sobre a fundação de Macau enquanto espaço chinês governado por portugueses a partir de 1557, sendo que esta data não exclui que os portugueses já tivessem andado por aquelas paragens desde 1555, altura da carta de Fernão Mendes Pinto, onde pela primeira vez surge citado o nome de Macau relacionado com os portugueses.

Quanto às teses são três as mais credíveis:

“1) Macau foi doada aos portugueses; 2) esta doação foi feita em recompensa dos serviços prestados por portugueses na destruição de piratas; e 3) a ocorrência teve lugar no ano de 1577” (Gomes, 1997, 26) Mais adiante, depois de apresentar diversos pontos de vista, ligados a letrados notáveis, tanto portugueses, incluindo Álvaro Semedo, como chineses, defende que “Macau fora doada aos portugueses, pelo motivo já exposto, qual seja o de recompensar o feito valioso da destruição da pirataria nos mares do sul da China ” (Gomes, 1997, 37). Neste sentido, é mencionado por vários autores, e de forma tão deturpada quanto expetável, o nome do temível chefe dos piratas, que terá valido o famoso édito imperial ou chapa, ele é denominado Tchang Si Lao, ou Sam Chislao, ou Charempum, Litauquiem, ou Similao (Gomes, 1997, 37).

Tal constatação não exclui outras leituras mais comerciais da obtenção desta plataforma, que também foi comercial, na China, sendo inclusive avançado um preço para o pagamento do foro do chão em Da Ming Shi (大明史História da Dinastia Ming) citado por A.J. H. Charignon, de 20 mil taéis de direitos por Macau. (Gomes, 1997, 34).

Vai-se encontrar a coexistência de ambas as versões em Cronologia da História de Macau. Séculos XVI-XVII organizada pela historiadora Beatriz Basto da Silva (1992),que faz remontar um importante episódio de aniquilamento de certo e perigoso pirata Lam Chin a 1547, numa descrição do funcionário chinês Lam Hei-Yuen, que remata do seguinte modo “ e assim os piratas que tinham agido à vontade durante 20 anos foram vencidos num só dia. Isso mostra que os Fu-Lan-Chi3 não são piratas, mas pelo contrário protegem-nos contra eles, eles não fizeram nenhum mal ao nosso povo, mas até fizeram bem aos chineses” ( Yuen apud Silva, 1992, 33), sendo apresentado na mesma cronologia o ano de 1554 como aquele em que se dá o primeiro acordo verbal por Leonel Sousa, que legaliza a situação do pagamento de direitos comerciais e “os portugueses são autorizados a comerciar livremente na zona que viria a ser Macau”. (Silva, 1992, 39), datando de 1557 nesta cronologia o estabelecimento dos primeiros portugueses em Macau, data que concorda com a avançada por Luís Gonzaga Gomes, bem como no suicídio do pirata Chan-Si-Lau e na derrota dos piratas do Rio das Pérolas, além de Leonel Sousa “obter autorização para firmar o assentamento anterior dos portugueses em Macau (…) em princípio esta é a data aceite para a Fundação de Macau.” (Silva, 1992, 43).

Na realidade, verifica-se a coexistência das duas origens mais prováveis para a fundação de Macau na Cronologia de Beatriz Basto da Silva. Pergunta-se: teria sido o acordo verbal e o subsequente assentamento, com o pagamento do foro do chão, possível se não tivesse sido verificado o efetivo auxílio dos cavalheiros e guerreiros portugueses às autoridades chinesas, através da ajuda concreta aos comerciantes locais que se viam constantemente pressionados por corsários que então abundavam nos mares da China e do sul da China?

A limpeza do terreno marítimo, proporcionada por uma desenvolvida tecnologia, ao tempo a melhor do mundo, muito contribuiu para que ajuda se tivesse tornado concreta e real, merecendo aos poucos dum povo do extremo oeste da Europa a confiança de um outro do extremo leste da Ásia e só porque foi realmente útil no combate aos piratas a realidade se pôde tornar uma lenda, já que desde o início qualquer das leituras era válida, mas parcial. A fim de obter uma leitura correta e imparcial do que se passou, crê-se que é necessário conjugá-las, compreendendo o quão decisivo foi no bom relacionamento dos dois povos o combate aos piratas, sem eles, não teria havido Macau, enclave governado por estrangeiros em território chinês.

Referências Bibliográficas

Aresta, António, Celina Veiga de Oliveira. 2009. Macau, Uma História Cultural. Lisboa: Editorial Inquérito, Fundação Jorge Álvares.

Barros, Leonel. 2003. Memórias Náuticas – Macau. Macau: Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM).

Camões, Luís Vaz. 1997. Os Lusíadas. Introdução por Silvério Augusto Benedito. Notas de António Leitão. Braga: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses.

Gomes, Luís Gonzaga. 1997. Macau – Um Município com História. Organização, Prefácio e Notas de António Aresta e Celina Veiga de Oliveira. Macau: Leal Senado de Macau.

Pessoa, Fernando. 1986. Mensagem.使命啟示 Tradução de Jin Guo Ping (金國平). Macau: Instituto Cultural.

Rocha, Carlos. 2007. “Etimologia de Lisboa, outra vez”. In Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/etimologia-de-lisboa-outra-vez/19407, acedido a 30 de junho de 2025.

Silva, Beatriz Basto da. 1992. Cronologia da História de Macau. Séculos XVI-XVII: vol. 1. Macau: Direcção dos Serviços de Educação.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt

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