Grande Plano MancheteJogo | Como o bacará e o empresário Yip Hon ajudaram a cimentar a STDM Andreia Sofia Silva - 26 Mai 2025 Jorge Godinho, jurista e especialista na história do jogo de Macau, publicou um artigo que destaca o legado de Stanley Ho e como o bacará e o empresário Yip Hon foram essenciais na construção do império da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau. Completaram-se ontem cinco anos da morte do rei do jogo de Macau Acaba de ser publicado, na revista “Gaming Law Review”, um artigo de análise do académico Jorge Godinho que retrata as peças essenciais que ajudaram a construir o império da STDM – Sociedade de Turismo e Diversões de Macau e o legado que Stanley Ho deixou nas indústrias do jogo e entretenimento do território. Os fundadores dos STDM foram Yip Hon, Teddy Yip, Henry Fok e Stanley Ho. Em “The place of Stanley Ho (1921-2020) in Macau casino gaming history” [O lugar de Stanley Ho (1921-2020) na história do jogo de casino em Macau], conclui-se que dado o parco conhecimento e domínio do funcionamento dos jogos de fortuna e azar por parte do magnata de Hong Kong, acabou por ser Yip Hon o grande estratega da STDM nessa área. E que, nos primeiros anos, o bacará foi o jogo que deu fortuna aos bolsos dos gestores da STDM. “Yip Hon esteve por detrás das principais mudanças de 1975-1976: a viragem para o bacará e a utilização de uma rede de promotores de jogo. Stanley Ho era um empresário muito inteligente, com um olhar extremamente atento às oportunidades de negócio. Foi decisivo ao aproveitar a oportunidade oferecida pelas reformas e pelo concurso público de 1961-1962 e ao criar a STDM. No entanto, isso não é necessariamente o mesmo que ter experiência no jogo em geral e no bacará em particular”, escreveu Jorge Godinho na conclusão. O professor visitante na Universidade de Macau e docente no ISMAT – Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes cita um diálogo entre Stanley Ho e a jornalista do canal CNN, Lorraine Hahn, numa entrevista de 2004, em que este assume o seu fraco conhecimento dos meandros do funcionamento do jogo. “Não percebo nada de jogos de azar, continuo a não jogar. Consegui esta concessão porque foi um desafio para mim, pois não consigo perceber por que razão Hong Kong era tão próspera e Macau era uma cidade moribunda, a apenas 40 milhas de distância. Por isso, mais uma vez, adoro desafios, apresentei uma proposta e ganhei a concessão. (…) Como é que eu sou? Bem, sou muito normal; a única diferença é que não jogo”, assumiu Stanley Ho, acrescentando que apenas se interessava por desporto. “Bem, gosto desse nome [rei do jogo], mas para ser muito franco não mereço esse ‘rei do casino’, não jogo, como posso ser o rei do casino?”, questionou Stanley Ho em resposta à jornalista. O artigo de Jorge Godinho destaca que “nos primeiros anos, e durante o período em que se deu a grande viragem para o bacará, a força motriz do jogo na STDM foi Yip Hon (1904-1997), o verdadeiro perito do jogo na STDM”, cuja importância foi reconhecida pelo próprio Stanley Ho. “Devido ao tempo que passei em Macau, conhecia toda a gente de lá e, em 1961, quando houve um concurso para a concessão do jogo, juntei-me a alguns amigos e fizemos uma proposta para o casino – e ganhámos o franchise. Eu estava a trabalhar com o Sr. Henry Fok, o meu cunhado Teddy Yip e Yip Hon, que era um jogador profissional. Precisava de alguém que conhecesse esse lado do negócio”, disse o magnata, citado no artigo. Yip Hon era “o único accionista da STDM especialista em jogo”, e, nos primeiros anos de vida da empresa, o bacará gradualmente assumiu mais importância, ganhando destaque face a jogos como o blackjack e roleta, “tanto no mercado de massas como no segmento das grandes apostas”. Dados citados por Jorge Godinho, da Direcção dos Serviços de Inspecção e Coordenação de Jogos, à data com o nome Inspecção dos Contratos de Jogos, mostram uma “evidente” ascensão do bacará, que era o maior jogo em 1977, com 37 por cento de quota de mercado, e 65 por cento de quota em 1984. “Por outro lado, todos os outros jogos diminuíram o seu peso relativo”, acrescenta o autor do artigo. Dividir o bolo O monopólio da STDM em Macau durou exactamente 40 anos e três meses – de 1 de Janeiro de 1962 a 31 de Março de 2002, quando as autoridades decidiram liberalizar o mercado, trazendo para o território concessionárias norte-americanas. No artigo é referida a posição pública de Stanley Ho relativamente à chegada de novas operadoras e ao estilo de empresa que trouxe novidades ao que se passava em Macau, com mais eventos de cariz internacional. “Eles querem imitar Las Vegas, criar grandes espaços centrados no entretenimento familiar. Isso é bom para Macau. Quanto aos nossos clientes habituais, eles vêm para jogar assim que entram no casino. Não têm tempo para ver outras coisas”, referiu o magnata. Da STDM nasceu a Sociedade de Jogos de Macau (SJM) que concorreu ao concurso público para a atribuição de novas concessões e que ganhou uma, mas para Jorge Godinho poderá ter havido uma má análise da futura concorrência, o que afectou, em parte, o posicionamento da operadora. “A SJM pode ter esquecido o seu próprio passado e pode ter repetido alguns dos erros cometidos pela Tai Heng no concurso público de 1961, a começar pelo excesso de confiança. A SJM poderá ter entendido que, como lhe seria sempre atribuída uma das concessões, não valeria a pena assumir compromissos ‘excessivos’. Esta abordagem revelou-se incorrecta”, lê-se. O estudo remete a 1961, quando a anterior concessionária à STDM, a Tai Heng Ltd, encarou esse concurso “de forma demasiado optimista e poderá ter subestimado a concorrência potencial num processo de concurso em que a decisão se baseia essencialmente numa base muito simples e directa: o montante da renda oferecida”. “A Tai Heng pode ter esperado que não houvesse concorrência, dado o montante do investimento necessário”, defendeu Jorge Godinho. Concurso aquém Em 2001, Macau tinha deixado para trás há bem pouco tempo a administração portuguesa e era já RAEM. As análises em relação ao futuro do jogo já sem monopólio eram, portanto, prudentes. “Embora em 2001 se acreditasse que havia potencial para crescer e transformar o mercado através da introdução da concorrência, na altura as expectativas não eram muito elevadas. Num movimento algo conservador, cuidadoso ou incremental, foi tomada a decisão de ter (apenas) três concessões. De facto, em 2001, ninguém poderia ter previsto o enorme desenvolvimento que, de facto, ocorreu nos anos seguintes.” Estava “ainda muito fresca” a criminalidade marcada pelas seitas no final dos anos 90 e “os decisores eram muito prudentes”. “Havia dúvidas sobre se as grandes empresas internacionais estariam presentes no concurso público de 2001. Havia também a percepção de que seriam necessários muitos anos para que os novos operadores gerassem efectivamente algum tipo de concorrência significativa para o antigo monopólio da STDM.” Segundo Jorge Godinho, “com o benefício da retrospectiva, é bastante claro que estas percepções não estavam de acordo com o que aconteceu”, pois “os anos que se seguiram a 2001 foram caracterizados por um crescimento histórico e por transformações qualitativas”. Jorge Godinho recorda que, embora fosse “amplamente esperado que uma das concessões fosse atribuída à SJM”, a verdade é que a empresa “foi classificada em terceiro lugar – o que não é uma posição excelente”. “Talvez porque os projectos de investimento pré-concessionados não eram vistos como os melhores para o que se pretendia ser um futuro dominado pelo turismo de massas em Macau e com uma diversificação crescente. A SJM terá estimado que a nova concorrência não lhe retiraria demasiada quota de mercado, especialmente no sector VIP”, acrescentou. O lugar de hoje Aquando do desenvolvimento dos primeiros projectos de grande envergadura no Cotai, Jorge Godinho destaca como a “força motriz foi a Venetian, liderada por Sheldon Adelson”, que trouxe para o território o maior casino do mundo, o Venetian. Tratou-se de “uma aposta fortíssima em Macau, que deu bons resultados”, frisou o autor do estudo, que destaca que a SJM depressa perdeu terreno no mercado. “O papel principal nestes projectos [no Cotai] não foi desempenhado pela SJM. A perda de quota de mercado da SJM começou em 2004 e foi relativamente rápida. Em 2009, a SJM continuava a liderar, com 31 por cento de quota, mas a liderança do mercado perdeu-se em 2014 e nunca mais voltou. A SJM enfrentou uma concorrência séria tanto no mercado de massas como no mercado VIP, e nos investimentos em novas propriedades”, refere Godinho. O estudo traz ainda dados sobre o actual posicionamento da SJM após os anos duros da pandemia, e já no contexto de atribuição de novas licenças de jogo, num total de seis. “A SJM foi o último operador a abrir um grande resort integrado na zona do Cotai”, lê-se, referindo-se de seguida que, a partir do terceiro trimestre de 2023, a quota de mercado por GGR [Gross Gaming Revenue – receitas brutas de jogo] foi de 26,9 por cento para a Venetian, 18 por cento para a Galaxy, 14,6 por cento para a MGM, 14,5 por cento para a Melco, 13,4 por cento para a Wynn e 12,1 por cento para a SJM. Assim, o que se verificou, nos últimos anos, foi “a perda inevitável de importância da SJM” tendo em conta “a intensa competição desde o fim do monopólio em 2001”. “Actualmente, a SJM encontra-se na última posição. A SJM Resorts é o principal operador de casinos em Macau apenas numa métrica específica: o número de casinos (13). Este facto deve-se sobretudo à sua longa história e ao legado dos ‘casinos-satélite’. O concurso público de 2022 para seis concessões constitui a base do actual ciclo de concessões de dez anos (2023-2032). No concurso de 2022, a SJM foi classificada na sexta posição – a última entre os operadores históricos”, remata Jorge Godinho.