A Substância (de que se fazem os filmes)

A Substância provoca asco aos espectadores. Tornar o terror de um tema tão corriqueiro como a objectificação feminina é tão adequado como cómico. A realizadora, Coralie Fargeat, traz uma versão que nos faz sentir na pele a zanga, a loucura, a indignação de uma Hollywood que descarta mulheres como se fossem farrapos usados, para facilmente encontrar outros. As imagens perturbadoras dão azo um desconforto visceral. Ainda assim, o filme pode servir de tratamento simbólico da infeção e do pus que nos habita. Como se expor à doença fosse parte de uma resolução coletiva que denuncia o que há de errado na forma como nos encaramos, e de como lidamos com o mundo.

Sem querer revelar demasiado, o enredo é simples: uma atriz de 60 anos, interpretada pela Demi Moore, está a perder trabalho porque já não tem a juventude de outrora. Ela é aliciada para experimentar um medicamento do mercado negro para criar uma versão mais nova e perfeita de ela própria com uma condição: cada versão deve viver durante sete dias seguidos, de cada vez. Claro que tudo corre mal. Corpos deformados de forma quase alienígena despertam uma repulsa tal, que não me admira que, ainda que com vislumbre da perfeição de Sue, interpretada por Margaret Qualley, alguém tenha regurgitado a sua refeição.

As próteses foram as rainhas para tornar o nojo a emoção mais proeminente do filme. Por isso, não recomendo o visionamento do filme pelos espectadores mais impressionáveis. Para quem se interessar por motivos menos nobres – dado que a nudez foi usada como ferramenta para despir as personagens da vulnerabilidade necessária à narrativa – importa referir que até as próteses foram utilizadas na recriação da “perfeição” (e.g., para criar seios perfeitamente simétricos, do tamanho certo). O foco nos extremos no filme é tal que nos deixa a navegar as muitas gradações de cinzento: na nossa imaginação.

Há quem vá mais longe e classifique o filme como um exemplo de body terror feminista, pela crítica incisiva ao sistema que alimenta a obsessão pela perfeição, levando muitas pessoas a submeterem-se a cirurgias plásticas ou a tratamentos que colocam em risco o bem-estar, e até a vida. Li algures que o filme consegue retratar o vício, e não consigo discordar. O vício da perfeição ou o vício da auto-crítica. A compulsividade que nasce do desconforto de se habitar a própria pele é retratada de forma tão honesta que ecoa a experiência de muitas mulheres que, diante do espelho, avaliam incessantemente aquela estria, aquele pedaço de celulite, aquele cabelo branco ou aquela ruga. Podem não agir com o horror que o filme retrata, mas os mundos internos destas mulheres bem que são habitados pelos muitos monstros que o filme mostrou.

Demi Moore recebeu um globo de ouro pela sua interpretação e o seu discurso de agradecimento foi surpreendentemente emotivo. Tocou em todas as questões que o filme levanta ao refletir acerca dos seus 45 anos de carreira. Falou na “data de validade” das mulheres e na procura de indicadores de beleza, sucesso e inteligência que nunca mais acabam. Ao receber o guião e ao abraçar a loucura que ele representa, recebeu, pela primeira vez, reconhecimento profissional. Não foi preciso ir muito longe para encontrar A Substância de que se fazem os filmes – e a urgência de continuá-los permanece.

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