Via do MeioEncontros e desencontros proverbiais em torno das noções de abertura e fechamento Ana Cristina Alves - 11 Dez 2024 Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau A filosofia comparativa pode usufruir de vasta colheita caso se dedique ao campo proverbial. Aqui se encontram pontos de vista que podem contribuir não apenas para a filosofia como para os estudos de imagologia e os de psicologia social, através da observação atenta das mentalidades. É interessante notar a semelhança de perceção tanto por parte dos portugueses como dos chineses relativamente ao modo como são aproveitados os talentos de ambas as terras. Muitos em Portugal queixam-se de serem mal aproveitados, de verem os seus filhos partirem rumo à emigração por falta de oportunidades no país, já que “santos de casa não fazem milagres” e, por isso, é bem melhor ser-se profeta em terra alheia, porque “nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4,21-30), sendo que a expressão remonta aos tempos bíblicos e à explicação oferecida por Jesus por não fazer milagres em Nazaré. Coincidentemente, os chineses possuem uma expressão proverbial de 4 caracteres e longa história, um chengyu, (成语chéngyǔ), que remete para os Anais da Primavera e do Outono (春秋), um dos cinco clássicos da filosofia confucionista, especificamente ao mais conhecido dos seus comentários, Comentário de Zuo e ao 26º ano do Duque de Xiang《左传 襄公二十六年》(Zuǒ chuán xiānggōng èrshíliù nián), no qual se diz literalmente que “Os talentos de Chu são criados neste reino, mas aproveitados por um outro reino, o de Jin” ( 楚材晋用chǔ cái jìn yòng). Fica a ideia de que os oficiais de Jin não são tão talentosos como os de Chu, mas talvez sejam mais espertos, porque pelo menos são capazes de tirar partido dos de fora. Coloca-se aqui uma questão interessante, em termos de certas categorias espaciais com as quais estruturamos o nosso pensamento e nos posicionamos no mundo, são estas as de “dentro” e “fora”, bem como as correlativas de “proximidade” e “distância”, que conduzem às noções de “abertura” e “fechamento”. Parece mais fácil compreender e aceitar, no que respeita ao talento, o que é exterior, está mais longe e, de algum modo, interpela e incomoda menos. Mas se estes pares conceptuais funcionam bem quando aplicados a seres especiais, talentos, profetas, gente fora de série, a verdade é que sofrem uma grande alteração de sentido se a coletividade passar a ser perspetivada como norma ou padrão. Aí há uma tendência para proteger os “de dentro” contra os “de fora”, que são muitas vezes encarados como perigosos e disruptivos, na cultura e civilização chinesas, a atender à abundância de provérbios relativos aos “de fora”. Já nos Ritos de Zhou 《周礼》, obra datada de meados do século II a.C, se chama a atenção para a necessidade de questionar sobre os perigos para o país, as migrações e o governante no poder, mas especialmente para o cuidado com “as migrações e necessidades de planeamento” (询迁询谋xún qiān xún móu), nem todas as mexidas e movimentações relativas ao “dentro” ao status quo, ou ordem estabelecida, são boas, mas podem ser proveitosas se no relacionamento do “dentro” com o “fora”, os primeiros não se deixarem contaminar pelos segundos e retirarem o melhor partido destes. E aqui mais uma vez portugueses e chineses concordam, em termos proverbiais, no que se refere a lisonjear ou enganar os estrangeiros em proveito próprio, por exemplo, nós portugueses e brasileiros ludibriando os nossos mais antigos aliados na Europa, o que ficaria retido numa interpretação possível da expressão “para Inglês ver”, a propósito do comércio de escravos com o Brasil, por volta de 1830, já então proibido, com o nosso próprio consentimento, mas imediatamente contornado1, por estarem em jogo valores comerciais de grande peso; assim como os chineses da dinastia Qing na expressão retirada ao escritor Wu Jianren (吴趼人, 1866-1910), em História da Dor 《痛史》(tòng shǐ), que poderá ser traduzida pela paráfrase “lisonjear os estrangeiros para proveito próprio” (媚外求荣mèi wài qiú róng), significando numa tradução literal “lisonja para a glória”. Na opinião de alguma desta sabedoria proverbial, em que não há fronteiras claras entre o senso comum e o saber propriamente dito, segundo muitos portugueses e chineses dos tempos antigos (e talvez alguns atuais) os “de fora” são bons para ser fintados, ludibriados ou então claramente mantidos à distância, porque quando os deixamos penetrar no espaço interno, ou até íntimo, as coisas podem correr mal, como se indica no dito “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento” ou, de um modo menos particularizante e mais sistemático e generalista nos provérbios chineses, nos quais se condena, relativamente à dinastia Qing, ela própria alienígena, a bajulação sistemática dos estrangeiros, por exemplo, através de um dito célebre de um grande escritor chinês Mao Dun (茅盾, 1896-1981) em Aprender com Luxun 《向鲁迅学习》(Xiàng Lǔxùn Xuéxí) : “venerar e bajular o estrangeiro ( 崇洋媚外chóng yáng mèi wài). Neste se condena claramente a bajulação ao outro e a xenofilia, que caracterizou alguns momentos importantes da história cultural chinesa na sequência das Guerras do Ópio (1839-42; 1856-1860), ou da implantação da primeira república chinesa (1912- 1949), a que corresponderia o mesmo tipo de tendência em Portugal, nomeadamente até meados do século XX em relação à cultura francesa. Assim, a literatura estava pejada de francesismos, (como hoje o está de anglicismos) e as meninas educadas deviam todas saber “tocar piano e falar francês”. As tendências de adesão camaleónica aos “de fora” são comuns aos dois povos e prendem-se com momentos históricos específicos, nos quais existe mais proximidade a determinado país por razões dinásticas, em tempos de monarquia, ou políticas, em tempos de república. Não são menos evidentes as tendências de fechamento ao outro étnico, que pode ocorrer no interior do espaço nacional, diversificando-se de acordo com as paisagens étnicas e geográficas. Quem não recorda expressões no nosso país como “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, ou “abaixo do Douro, tudo mouro”? Neste sentido, recorde-se a respeito dos chineses mais um aforismo de Mao Dun, incorporado na sapiência proverbial, a propósito da cidade de Xangai, que significa, numa tradução pelo sentido, “em redor é tudo estrangeiro” 十里洋场 (shí lǐ yáng chǎng), mas ao pé da letra se traduz por “dez milhas de mercado estrangeiro”. Este pode ser aplicado em sentido positivo como referindo-se a um mercado próspero, mas também negativo, aludindo a uma cidade repleta de gente “de fora”, como era Xangai para muitos chineses que a viam como uma colónia capitalista. É preciso remontar à “invasão dos estrangeiros”, na sequência das duas Guerras do Ópio para entender a aceção negativa, a que foi empregue por Mao Dun. O auge da xenofobia sucede no mundo proverbial quando o estrangeiro é identificado como o inimigo, o que se converte numa apologia do fechamento, memorizada e repetida em frases rítmicas e rimadas ao longo de gerações, pense-se no mundo proverbial português em “mantenha os amigos por perto e os inimigos quanto mais longe, melhor”, cuja correspondência em chinês poderá ser, numa tradução literal, “os inimigos devem manter-se afastados das fronteiras do país” 御敌于国门之外 (yù dí yú guó mén zhī wài), tornando-se o mais distantes e estranhos possível, como sugere este dito da época dos Reinos combatentes, sendo um aforismo atribuído a Mâncio (孟子), retirado do capítulo Wan Zhang 《孟子·万章》da obra homónima, mesmo que o afastamento possa ser apenas de um dos reinos chinês para o outro, como era o caso à época em que o filósofo e/ou os seus discípulos escreveram. Quando o pensamento fechado impera, torna-se notório, por um lado, o enaltecimento das políticas nacionalistas, com o consequente afastamento dos países estrangeiros e de todas as redes intelectuais e político-comerciais “de fora”, por outro, o louvor daqueles que revelam amor à pátria até ao sacrifício extremo, como bem denotam as expressões portuguesa e chinesa, de sentido idêntico, “sacrificar-se pela pátria” (徇国忘己 xùn guó wàng jǐ). Este dito chinês surge no Livro dos Song, Biografia de Xiehui (389-426)《宋书·谢晦传》(“Sòng shū·xièhuìchuán”), encontrando eco na expressão do poeta Bai Juyi (白居易, 772-846) da dinastia Tang em “sacrificar o corpo pelo país” (徇国忘身 xùn guó wàng shēn). Há ainda um outro provérbio chinês que de um modo não tão radical, pois não exige o sacrifício extremo, afasta, no entanto, os laços com o exterior, sendo atribuído a Hu Qi da dinastia Song (宋·胡锜), “Cultiva o interior, resiste ao exterior” (内修外攘 nèi xiū wai rǎng), numa interpretação possível “olha para dentro, não olhes para fora”. Para terminar com uma nota de esperança no diálogo e na comunicação civilizacionais, oposta e complementar à tendência de fechamento existe outra de abertura para a qual também se encontram ditos quer em português quer em chinês. Assim, em Portugal empregamos expressões que denotam a vontade de entendimento do outro e a aceitação de práticas culturais e costumes diferentes: “em Roma sê romano” e “à terra onde fores ter, faz como vires fazer”. Já na China há aforismos relativos a figuras políticas distintas dos tempos republicanos, a Liang Qichao (梁启超, 1873-1929 ), um importante intelectual chinês dos tempos modernos, muito ligado à defesa de uma China mais aberta e comunicativa, como era proposto pelo Movimento da Nova Cultura (1915-1925) ao qual aderiu. Posto isto, não surpreende o seguinte dito, coletivamente apropriado, “portas abertas” (门户开放mén hù kāi fàng), já que só com uma política de abertura de portas para o mundo pode o país prosperar, no entender daquele que foi ministro da justiça da República Chinesa, como explicaria em Breve História da Evolução dos Meios de Subsistência 《生计学说沿革小史》 (“shēngjì xuéshuō yángé xiǎoshǐ”) , pela exposição, contacto e absorção de novas ideias, recebidas do Ocidente, como as da promoção de um pensamento diferente da tradição confucionista, com as características do individualismo, da crítica, da independência e da autonomia para as mulheres. Uma outra expressão que ficou incrustada no pensamento contemporâneo chinês surgiu já no contexto da segunda república chinesa, estabelecida em 1949 pelo partido comunista chinês, e numa segunda onda de pensamento, passada a primeira vaga dos furores revolucionários. Os novos ventos pediam então “reforma e abertura” (改革开放Gǎigé kāifàng), após o fechamento revolucionário que culminaria no Maoísmo (毛主义Máozhǔyì). Esta expressão viria a ser empregue por Deng Xiaoping (邓小平), a 18 de dezembro 1978, na terceira sessão plenária do décimo primeiro Comité Central do PCC. Após o período caótico da Revolução cultural (1966-1976), era preciso pensar noutros termos, serenar os ânimos e abrir a China ao exterior, de modo a que os estrangeiros fossem vistos não como estranhos, ou no pior dos cenários, inimigos, mas sendo suscetíveis de dialogar e contribuir para o desenvolvimento e prosperidade da China, através da compreensão de modos de vida distintos e, sobretudo, da organização económica e científica de que dispunham. “Abertura” e “fechamento” ligados a “distância” e “proximidade”, “fora” e “dentro”, definidos à maneira das fronteiras, podem apresentar-se como muros, portas fechadas ou abertas, mudando consoante os tempos, a educação das gentes e a mentalidade de quem ocupa o poder. Referências Bibliográficas Cai Xiqin 蔡希勤 (Trad.).(1999). 《孟子》北京:华语教学出版社. Gushiju .(2024). “关于外国人的成语 (12个)” (Provérbios sobre estrangeiros) 《 古诗句网 ©2024 京ICP备22222222号-1》 https://ww.gushiju.net/chengyu/k/%E5%A4%96%E5%9B%BD%E4%BA%BA, acedido a 19 de novembro de 2024. 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