PerspectivasO Despertar Estratégico da Alemanha (I) Jorge Rodrigues Simão - 13 Nov 2025 “I fear German inaction more than German power.” Radosław Sikorski, Berlin, November 2011 Berlim rearma-se, não por uma causa europeia abstracta, mas antes de tudo por si. A “mudança de época” foi preparada ao longo de vários anos e conseguiu convencer a população. Os Estados Unidos encorajam, mas até certo ponto. A crise com a França é notória. Rumo à superação do sentimento de culpa há algum tempo, nas principais chancelarias europeias (e não só), voltou a ecoar uma velha pergunta de para onde vai a Alemanha? A história nunca se repete e raramente rima. No entanto, a questão alemã parece destinada a redefinir ciclicamente os equilíbrios do Velho Continente. Muito mais do que um simples reequipamento das Forças Armadas da Alemanha (Bundeswehr), Berlim atravessa uma revolução estratégica preparada há mais de uma década e acelerada drasticamente com o início da “operação especial” russa na Ucrânia. Independentemente do desfecho, esta viragem redesenhará de forma definitiva a maneira como a República Federal se representa a si e ao seu papel no mundo. Não há retorno possível. O coração pulsante da revolução alemã é o rearmamento. Para compreender a futura configuração estratégica do país, não basta enumerar os fundos colossais destinados às Forças Armadas Alemãs nos últimos meses, os planos de aquisição ou as declarações enfáticas do Chanceler Friedrich Merz desde 6 de Maio de 2025 e de outros ministros federais. Os números, por mais relevantes que sejam, representam apenas a superfície. A questão é cultural antes de ser material. A Alemanha identificou na força militar o factor decisivo da sua renovação. Hoje, nos corredores do poder e nas principais instituições berlinenses, admite-se com invulgar franqueza que os pilares sobre os quais os alemães construíram a sua prosperidade durante mais de trinta anos deixaram de existir. Espalha-se uma nova interpretação que é a verdadeira alternativa ao declínio, ou seja, de redefinir a relação com o instrumento militar. Não há terceira via. Inevitavelmente, esta dinâmica não afecta apenas as Forças Armadas Alemãs, mas também a forma como a população concebe o sistema económico, a política externa e até a ética, a cultura e a auto- consciência nacional. Chega mesmo a tocar na culpa herdada em relação ao passado pela longa sombra de Auschwitz, que para os alemães assume contornos quase metafísicos. Um processo destinado a criar uma nova Alemanha e a transformar profundamente a Europa. Uma cultura estratégica não se inventa de um dia para o outro. Num mundo em que as normas partilhadas cedem lugar às relações de força cruas, os alemães descobrem-se desorientados e sem referências. Certamente, o velho “Modell Deutschland” (é um conceito político e económico que descreve o modelo de desenvolvimento da Alemanha Ocidental durante o pós-guerra, especialmente entre as décadas de 1970 e 1980) chegou ao fim e aquele modelo fundado na ideia, cada vez mais enraizada após a queda do Muro, de que a República Federal poderia construir uma primazia económica sem se dotar dos meios para a defender pela força. Berlim não decidiu espontaneamente abandonar a sua visão “pós-heróica”, pois era uma moldura confortável, quase ideal, sustentada por dois pilares; o de delegar a segurança aos Estados Unidos e, paralelamente, desenvolver relações comerciais e energéticas com os seus dois rivais estratégicos, China e Rússia. Actualmente, o último que a Alemanha deseja é liderar a Europa ou assustar os países vizinhos. É um dos poucos pontos em que os partidos tradicionais e as forças nos extremos do espectro político estão de acordo. Aqui tocamos num dos muitos paradoxos do “ponto de inflexão histórico”; a mudança de época proclamada três dias após o início da invasão russa pelo então Chanceler Olaf Scholz, num dos seus raros momentos de firmeza. Mais do que qualquer outra coisa, o que obrigou Berlim a sair da sombra com um projecto de rearmamento sem precedentes foi a pressão constante de vários aliados ocidentais, que durante anos lhe censuraram uma atitude de “aproveitadora” e exigiram um compromisso proporcional à sua dimensão. Emblemático foi, por exemplo, o discurso proferido em Berlim em Novembro de 2011 por Radosław Sikorski, actual Ministro dos Negócios Estrangeiros e Vice-Primeiro-Ministro da Polónia, que definiu a Alemanha como a “nação indispensável” na Europa e declarou temer “mais a sua inércia do que o seu poder”. Palavras que ecoaram nos anos seguintes nos avisos de Barack Obama e nas invectivas bem mais contundentes de Donald Trump, que durante o seu primeiro mandato apontou os alemães como “delinquentes” e “prisioneiros dos russos” esta última referência como sendo o alvo mais eficaz da sua retórica. (Continua)