Via do MeioContos tradicionais chineses recontados por Lin Yutang Hoje Macau - 24 Jul 2025 O Homem que vendia fantasmas (Do “Soushenchi”, século IV) Quando Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda rapaz estava passeando certa noite quando encontrou-se com uma fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era uma fantasma. – “Quem és tu?” perguntou por sua vez a fantasma. Tingpo mentiu e respondeu – “Eu também sou um fantasma.” A fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo informou – “Estou a caminho para a cidade de Wanshih.” – “Também vou para lá,” afirmou a aparição. Assim puseram-se a caminhar juntos. Após uma milha, se tanto, a fantasma disse que era estupidez estarem andando ambos quando um podia carregar o outro, por turnos. – “óptima idéia,” achou Tingpo. A fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse – “Tu és pesado demais para um fantasma. Tens certeza de que és mesmo um fantasma ?” Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, por sua vez, pôs-se a carregar a fantasma, mas ela era tão leve que tinha a impressão de não estar a carregar nada. Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou à companheira qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. – “Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana”, foi a resposta. Lá foram andando, andando, até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que a fantasma fosse adiante e observou que ela não fazia barulho algum ao nadar, mas quando ele entrou n’água, o fantasma ouviu o estalar na água e pediu-lhe uma explicação. Tingpo explicou novamente – “Não se surpreenda, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar uma corrente.” No momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar a fantasma nas costas apertando-a fortemente. A fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para apear-se, porém Tingpo apertou-a com mais força ainda. Ao chegar às ruas da cidade, soltou-o e a fantasma se transformou num bode. Tingpo cuspiu no animal para que ele não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentos sapecas e foi para casa. Eis a razão do ditado de Shih Tsung: “Tingpo vendeu um fantasma por mil e quinhentos sapecas.” É Maravilhoso ficar bêbado (Do “Soushenchi”, século IV) Ti Xi era um nativo de Chungshan e sabia fazer “vinho de mil dias”, capaz de manter um homem embriagado durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Xuan Shih que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte ele foi ver Ti Xi e pediu-lhe um trago; este último respondeu – “Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo.” – “Quero prová-lo assim mesmo”, disse Xuan. Ti Xi não pôde dizer “não” e deu- lhe um copo. – “é delicioso,” observou Xuan, “quero outro copo.” – “Deve ir para casa agora,” replicou Ti Xi. “Volte outro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias.” Xuan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família jamais desconfiou de nada: chorou-o e enterrou-o. Após três anos, Ti Hsi disse para consigo mesmo – “Xuan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo.” Quando chegou à casa de Xuan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse – “Morreu há muito. Até já tiramos o luto.” Ti Xi ficou aflito e disse – “O quê! Foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo.” Deu, então, ordens para que a família de Xuan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem “morto” abrir os olhos, bocejar e dizer – “Oh! como é delicioso ficar bêbado!” Depois perguntou a Ti Xi – “Que vinho é esse que tu fazes? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?” As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos ficaram bêbados por três meses. É bom não ter cabeça (Do “Luyichi”, século IX) No tempo de Han Wuti (140-87 A. C.), Chia Yung de Qangwu servia como magistrado em Yüchang. Um dia saiu para dar combate a bandidos. Foi ferido e teve a cabeça decepada. Mesmo assim, o corpo montou a cavalo e voltou ao campo. Os soldados, e o povo que ali estava, ficaram admirados e Yung falou pelo peito – “Fui derrotado pelos bandidos e eles cortaram-me a cabeça. Digam-me francamente se é melhor ter cabeça ou ficar sem cabeça ?” Os homens lamentaram-no e disseram – “É melhor ter cabeça.” E Yung replicou – “Não penso assim. Andar sem cabeça também é bom.” Como a língua sobreviveu aos dentes (Liu Hsiang) Zhang Zhuang estava doente e Lao Zi veio visitá-lo. Este disse a Zhang Zhuang: – Estás muito doente. Não tens nada que dizer ao teu discípulo? – Ainda que não me pergutasses, eu ia dizer-te – replicou Zhang – sabes porque uma pessoa não deve descer do carro quando chega à aldeia? – Não significa este costume que as pessoas não devem esquecer sua terra de origem?- replicou Lao Zi. – Ah, sim… Mas deixe-me perguntar outra coisa; sabes porque uma pessoa deve correr ao passar debaixo de uma árvore alta? -Significa que se deve respeitar os mais velhos, disse Lao Zi. – Ah, sim…então Zhang Zhuang escancarou a boca e mostrou sua língua para Lao Zi, pedindo que ele olhasse bem lá dentro, dizendo: o que você vê agora? – A sua língua, mestre – disse Lao Zi. – Os meus dentes estão aí? – perguntou o velho. – Não – replicou Lao Zi. – E sabes porquê? – perguntou Zhang Zhuang? – Não durou a língua mais tempo por ser flexível? E não caíram os dentes por serem mais duros? – retorquiu Lao Zi. -Ah, sim… disse Zhang Zhuang – acabas de aprender o Tao. Não tenho mais nada te ensinar. A Coruja e a Codorniz (Liu Hsiang) Uma coruja em viagem encontrou com uma codorniz, e esta perguntou: “para onde vais, coruja”? A coruja respondeu: “vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclamam muito do meu piar”. Disse-lhe então a Codorniz: “aceite uma sugestão: muda o teu pio ou vão te odiar onde quier que vás”. O cego e o sol (De Su Dongpo) Era uma vez um cego de nascença. Nunca tinha visto o sol e perguntava às pessoas como era. Alguém lhe disse: “é como uma bandeja de latão”, e quando o cego, um dia, deu com uma bandeja pendurada, ouviu o som de metal e guardou-o como recordação do sol. Um dia, porém, tocaram sinos de bronze e o cego pensou que era o sol. Até que alguém lhe disse: “a luz do sol, na verdade, é como uma vela”. Um dia, o cego apalpou uma vela e pensou que esta era a forma do sol. Assim, um dia encontrou um pedaço de bambu no chão e pensou tratar-se do sol. O Sol é muito diferente do sino ou do bambu, mas o cego não pode ver isso porque nunca viu o sol. O Tao é mais difícil de ver do que o sol e por isso os homens são como o cego. Ainda que façam comparações, exemplos e tratados, o Tao será como o sol para o cego, parecido com uma bandeja, com um sino ou um bambu. Sempre imaginaremos uma coisa, esquecendo outra. Assim, os homens afastam-se cada vez mais da verdade, dando-lhe aparências através de nomes. Todos estes enganos são tentativas de compreender o Tao.