VozesLao Tsé. O livro das 5000 palavras. Porto: Porto Editora, 2025 Duarte Drumond Braga - 23 Jul 202523 Jul 2025 A sinologia portuguesa nunca começou; melhor: está sempre para começar. Ou não sai nunca do seu começo. Já dizia Pessoa: somos povo de iniciadores – frutos e flores, outros os colhem. Não é porém maldição irremissível. Coisas muito boas têm saído recentemente de Macau (Mêncio, Confúcio, poesia da dinastia Tang). Espera-se que um dia saiam cá pela Grão Falar, a editora gémea da Livros do Meio, ativa naquela cidade chinesa. Vem isto a propósito da novel tradução do Tao Te Ching, ou King, de Lao Zi, ou Tse, com o inusitado título O livro das 5000 palavras. Não é a primeira vez que sai da pena do tradutor Joaquim Palma, que já havia feito versão versificada, próxima desta, mas com o título canónico: Tao Te Ching. O livro do caminho e da sabedoria (Presença, 2010). Há várias versões de língua portuguesa a partir do chinês que entre si competem, todas dignas de menção e consideração, desde os trabalhos daquele que se considera, para mal dos nossos pecados, o nosso único sinólogo, até uma versão brasileira muito digna de nota, provavelmente a melhor edição em língua portuguesa, o notável Dao De Jing (Unesp, 2016), com tradução interlinear e comentário verso a verso, por Giorgio Sinedino. Este grosso volume evidencia um conhecimento da língua chinesa e das culturas que se lhe agregam que em Portugal infelizmente quase ninguém tem. Manuel Silva Mendes, que em Macau trocara o anarquismo pelo taoísmo, essa forma mais subtil de anarquia, foi um intelectual finissecular contemporâneo de Camilo Pessanha que se fizera estudioso da China, da arte chinesa e das suas religiões. Da sua lavra temos textos pioneiros sobre budismo e taoísmo como o Excertos de filosofia taoísta (1931), que inclui traduções de Lao Zi e de Chuang Tze. Aí escreve ele a advertência seguinte: “Quem escrever sobre o taoísmo tem de tomar um destes dois caminhos: ou apresentá-lo seco, como um osso esburgado, à maneira de Lao Tse, subtil até quasi à incompreensão como Chuang Tse, em ambos os casos com a certeza de que raríssimas serão as pessoas que, começando a leitura, a levem até ao fim: ou então expô-lo amenizadamente em forma mais compreensível do que se lê nestes dois autores” (p. 276). Ora isto que o grande escritor diz pode com propriedade ser aplicado às próprias traduções do livro do Tao, umas mais secas, outras mais húmidas, para aplicar noções do próprio livro: “Os homens são frágeis e moles. E morrem rígidos e duros. As árvores começam por ser frágeis e flexíveis e morrem ressequidas e quebradiças. Assim, o que é duro e rígido acompanha a morte. O que é frágil e flexível acompanha a vida” (O livro das 5000 palavras, p. 100). Ora, o livro em apreço é de facto uma tradução “mole” no sentido de ser flexível e moldável como a água. A impressão que ela deixa na nossa mente é a de uma fluida continuidade entre os textos, como anéis que se fossem repetindo de uma pedra atirada a um lago. Por contraste, a tradução de Joaquim Guerra, jesuíta português missionário residente em Hong Kong nos anos 80, seria um bom exemplo de uma tradução seca, dura, mas também no sentido do epigrama, da concisão, da unidade doutrinal. É uma tradução afirmativa, aguda, mas também cheia de arestas. Todas as outras traduções para o português se podem conter algures nesta escala. Como bom construto textual que é em língua portuguesa –o meu total desconhecimento do chinês impede-me de me pronunciar sobre questões linguísticas e tradutórias propriamente ditas –, muda a nossa perceção do texto, construída historicamente no curso de várias leituras das várias versões dos vários livros do caminho e da virtude que são, que sejam possíveis. É uma nova e sedutora linguagem que sabe manter o mistério de um texto simultaneamente ético, moral, poético, filosófico. Joaquim Palma, o tradutor que já conhecíamos de várias versões de poesia japonesa aparecidas no mercado português, consegue como que açucarar, sem abastardar em autoajuda, o mistério essencial do Tao. Olhamos, por exemplo, para a forma como resolve os 2 últimos versos ou versículos do primeiro texto: “Estas 2 verdades brotam de uma única origem; ambas têm nomes diferentes. As 2 nascem de uma escuridão profunda. O desconhecido mistura-se com mais desconhecido. E abre-se a porta para todos os mistérios” (p. 7). Compare-se com a versão adusta do padre Guerra: “Os 2 surgem ao mesmo tempo, com nomes diferentes; e ambos se chamam misteriosos. Quanto mais se perscrutam, mais misteriosos se tornam: aí desembocam os mistérios todos” (Prática da perfeição, Macau 1987, p. 123). Menos religiosa, pois esta versão tem estranhas intromissões de Deus, de um Deus criador, mas mais metafísica é a versão assumidamente apropriativa de Agostinho da Silva: certamente não traduzida diretamente do chinês, mas de qualquer maneira curiosa: “O ser e o não ser são de um fundo só, e só os nomes, um do outro os distinguem. E no fundo, no fundo, escuridão lhe chamamos. E quando a escuridão mais escura a tornamos, é que abrimos as portas, estrada, aos espantos totais” (p. 19). Os espantos de uns são os mistérios de outros. Nesta linha mais filosófica, veja-se como o já citado Silva Mendes complicou, tal como Agostinho, em tratado metafísico, as mesmas linhas: “Não era que havia, não havia que pode ser viada, que essa não é a via eterna, mas havia pela qual o vir a ser veio a ser em ato simultâneo e com o eterno com o não ser, o mistério da origem, a plenitude em coeterna e absoluta vacuidade, o mistério dos mistérios!” (p. 280). É toda uma re e hiperconceptualização que dessora o Tao, remetido ao osso do conceito. E finalmente a de Graça Abreu, equilibrada e elegante: “Ser e não ser brotam da mesma fonte, com nomes diferentes. Isto parece obscuro, obscuridade entre obscuridade, mas é o patamar para todas as maravilhas” (Vega 2021, quinta edição, Tao Te Ching. Livro da vida e virtude, p. 29). Para terminar este pequeno percurso, podemos sacar exemplo de um outro contexto cultural, uma tradução norte-americana que, com pouco ou nada a ver com o texto, funciona magnificamente como poema beatnik de auto-ajuda: “Talk if you can talk about it it ain’t Tao if it has a name it’s just another thing Tao doesn’t have a name names are for ordinary things stop wanting stuff it keeps you from seeing what’s real when you want stuff all you see are things those two sentences mean the same thing figured them out and you’ve got it made.” O prefácio de Joaquim Palma, o tradutor, enferma de um certo romantismo. Entende que o Tao Te Ching é uma essência. Na verdade, e como o próprio Tao contraditoriamente afirma, é mais um compósito, algo que conseguiu chegar até aos nossos dias, naturalmente corrompido, acrescentado, amputado, como as tiras de couro postas ao dorso dos cavalos anões que atravessavam as pradarias da China e da Mongólia interior. A viagem de um texto é a da sua corrupção: “Esta abordagem parece-nos ser aquela que nos pode levar mais perto da sua essência, evitando-se ao máximo os ruídos, ornamentações e os desvios, tendências que vemos muito presentes na escrita erudita ocidental” (p. 109). É um mau princípio justificar deste modo a retirada de notas e de outro aparato, que padece do seguinte erro: os textos não são essências, não é possível regressar a uma sua pureza original, sem acrescentos, simplesmente porque isso não existe. Os textos não são essências, são antes o tal ruído do qual o tradutor se queixa. A única coisa que sobrevive é a escrita fragmentária, cortada, interpelada, invadida por outros. Quanto às versões ocidentais, as tais cheias de ruído analítico, são afinal que o criador deste texto, como aliás o próprio parece sugerir: “A escrita formatada das 81 secções segundo o estilo de verso e estrofe foi uma invenção ocidental do século 20″ (p. 108). Escolher retirar o ruído para se gerar um silêncio que é artificial é um engano. Eu prefiro o ruído, a nota, o comentário, afinal mais honestos, e que participam de uma forma mais explícita das histórias do texto, de qualquer texto. Neste sentido, até prefiro a versão maldita do padre Guerra, que tem sido vituperada por ter batizado às pressas o pobre Lao. Afinal é quase a única feita por um português que apresenta notas críticas, que debate, que increpa com astúcia os seus rivais. E por isso, a meu ver, é que mais se aproxima ainda hoje de uma edição científica. E se o leitor se incomoda com a estranha presença de um Deus cristão por entre os versículos do livro do caminho e da virtude, tem bom remédio para isso. Basta, em modo errata, riscar Deus por Tao. E não creia o leitor nas aleivosas sugestões de Graça de Abreu, que sugere que o padre Guerra se limitou a copiar a versão de um jesuíta espanhol seu amigo. Em conclusão, esta é uma bela versão de um livro tão plural, tão diferente entre si nas suas várias versões. É uma versão feminina: uma das novidades deste livro é esta entrada em cena do feminino que recebe e dilui, que é flexível e aberto (p. 100). Assim, como belo texto português, consegue mudar a nossa perceção talvez já ossificada do livro, – e muda-a em português.