VozesA cama quente Duarte Drumond Braga - 27 Mai 202527 Mai 2025 O texto O que é o Neo abjecionismo foi publicado pela primeira vez em 1967, em Textos Locais e, mais tarde, em 1971, em Exercícios de Estilo. Mas já em 1963 tinha sido lido por Mário Cesariny na Casa da Imprensa. O que é mais importante não é tanto Luiz Pacheco deixar claro, nessa performance-confissão, que pediu sem devolver – que pediu sabendo que não ia devolver –, mas que tentou ser livre sozinho e não conseguiu. Precisou do outro, nem que fosse para lhe pedir esmola. Na verdade, o que estava em causa na mão que pede esmola é justamente a necessidade de haver um outro. Penso que a escrita de Luiz Pacheco se dirige muito a esse outro, é como essa cama já suada por outrem onde temos que nos deitar. E como ser livre sendo pobre?, eis a questão. Ele diz que consegue, que é mesmo “intensamente livre, livre até ser libertino, que é uma forma real e corporal de liberdade; livre até à abjeção, que é o resultado de querer ser livre em português”. E que nos interessa isso, a nós e aos nossos belos salários de Macau, que ainda teimam em resistir? Em 2025, Portugal prepara-se para pedir a Luiz Pacheco que, em troca, nos dê sem que tenhamos que lhe devolver. Se eu fosse um mau cronista diria que este nato a 7 de maio de 1925 foi o enfant terrible das letras portuguesas, um homem que escolheu viver nas margens da sociedade, ou outra parvoíce assim qualquer. O projeto “Luiz Pacheco Passeia por Todo o Papel”, delineado a propósito do seu centenário, promete fazer jus ao homenageado, sem cair em semelhantes clichês. Não haverá públicos peditórios ou muito gente a dormir na mesma cama (as famosas camas quentes de Macau?), como no inesquecível Comunidade. Não nos interessa se Pacheco seria ou não contra este aparato académico, que na verdade vai muito além do académico, pois possui forte dimensão de intervenção cultural, coisas que juntas se acham raramente, e ainda por cima por todo o território nacional. Como diria o próprio: “um cadáver nunca terá razão, mesmo que a tivesse tido antes”. Nos só conseguimos olhar com os olhos dos vivos, com os olhos dos presentes. Nunca conseguiremos olhar com os olhos dos mortos. O projeto “Luiz Pacheco Passeia por Todo o Papel” é o eixo central destas comemorações, reunindo instituições académicas e culturais num esforço coordenado para tornar mais presente e Luiz Pacheco. Organizado pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o programa estende-se até 2026. A Comissão Organizadora, coordenada por Rui Sousa, preparou um programa que pretende abranger as múltiplas facetas da vida e obra do autor, editor e crítico. Através da editora Contraponto, fundada em 1950, Luiz Pacheco foi responsável pela publicação de nomes que se tornaram essenciais nas letras portuguesas, como Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Natália Correia, Herberto Helder e Vergílio Ferreira. Como autor, Pacheco criou uma obra que possui dimensão autobiográfica e crítica, em textos como “O Libertino Passeia por Braga”, “Comunidade”, “Os Namorados” e “O Teodolito”. Ter que ser escritor, crítico, revisor, editor, até censor, tudo ao mesmo tempo, não é uma graça dada pelo talento, é o percurso obrigatório de um Ulisses que atravessa o bas-fond do fascismo, agora pelos vistos reaparecente. As comemorações incluem congressos internacionais (dois!), exposições, performances teatrais e ainda a publicação das suas obras completas. Cidades como Lisboa, Setúbal, Palmela e Braga – lugares por onde o libertino passeou – serão palco de eventos diversos. O ponto alto das celebrações será o “Congresso Internacional Luiz Pacheco”, nos dias 22 e 23 de outubro em Setúbal e Palmela, que será acompanhada pela inauguração de uma exposição a partir do espólio do autor, em posse do filho Paulo Pacheco, o Paulocas de Comunidade, no dia 23, e por uma leitura encenada de textos, em Setúbal, a 24. A partir de 2026, Luiz Pacheco passeará também além fronteiras, com uma exposição itinerante que, depois de ter passado pelas cidades do seu mapa íntimo, estará também em diferentes países, do Brasil e da Colômbia a Itália, Espanha e Polónia. Na Sertã, no início de julho, a Maratona de leituras ser-lhe-á dedicada. E na Casa da Liberdade Mário Cesariny e Perve Galeria, em Lisboa, está, até final do ano, uma exposição dos seus materiais éditos e inéditos. Também com o apoio do Instituto Politécnico de Santarém, estará patente uma exposição na biblioteca Brancaamp Freire. O texto “O que é o neo-abjecionismo” – a ele voltamos por ser a chave duma obra – procura, precisamente pela ideia de liberdade, transformar em escolha radical certas circunstâncias, antes de mais uma circunstância de 48 anos, é certo, e que toda a gente sabe qual é. Não é fácil. Só se consegue quem tem uma feia cara de gente. E o libertino, não vem passear pelo Fai Chi Kei?