Gaivota

Quem assistiu ao início do Conclave reparou certamente na gaivota que se deteve junto à chaminé onde por essa hora o fumo devia estar já visível diante dos expectantes olhares de milhares de pessoas e meios de comunicação, mas perante uma tão inesperada presença este momento tornou-se um sinal quase profético. Todos nos lembramos do raio que caiu no Vaticano a quando da abdicação de Bento XVI e a estranha impressão causada, um homem que veio então do fim do mundo depois do sucedido sentar-se-ia na cadeira de Pedro como uma gaivota, todo de branco, pairando por cima das púrpuras papais com sapatos argentinos um pouco gastos relembrando as sandálias do pescador.

Os sinais andam por todo o lado, umas vezes enfáticos e grosseiros como foi o caso da imagem de Trump como Papa, essa funesta profanação que pode ser até subliminar e de efeito nauseante enquanto medida para todas as coisas, chamando, quem sabe, a atenção para assuntos concretamente fabricados para uma resolução final: mas se o compararmos a este que vem de suceder, o da gaivota, saberemos ver as diferenças, compor o discurso, olhar para o essencial. Os paramentos carregados de soberba nunca vestiram ninguém e ainda deixaram nus os seus vestimentários, mas um acaso pode vestir-nos para sempre com algo que não conhecíamos, que neste curtíssimo espaço de tempo lográmos “vestes” essências com asas no promontório da herança temporal.

Yeats fala-nos das aves brancas crendo que todos os poetas amam as aves, falam com elas e as interpretam (cada um certamente à sua maneira) que sempre essa natureza etérea é de seu agrado fazendo parte de uma maravilhosa consciência que teima em não baixar por medo às grades, e foi isso que ali estava, aquela gaivota solitária vinda do recanto mais bonito da alma: / já nos cansa o meteoro, a sua chama, e ainda não se apagou, e não desapareceu; E a luz da estrela azul, suspensa no crepúsculo à beira do céu/… «In-As aves Brancas»

Há coisas inesperadas, e isso é bom – acontecimentos súbitos- que a vida não será esse verdadeiro grande deslumbre onde todas as coisas comunicam de maneira diversa sendo os que mantêm a sua essência os mais contemplados? A continuidade é uma asa, uma recta para a eternidade, um ritmo, uma cruz ou um labor, e o que quer que olhemos será pelos olhos dessa alma que nos formou no caminho, só que a a visão das coisas agora se insinua num mundo muito cego que não tem o dom dos verdadeiros invisuais.

Ninguém é insubstituível e todos temos faltas, mas há as gaivotas, as chaminés, os raios, a pedra e as núpcias criadoras que neste Maio moram. Os tempos estão agrestes mas ainda não sentimos o que pode significar tal expressão, que o sentimento não é probatório de coisa nenhuma até que venha alguma outra de mais lata que o resgate e transcenda. Francisco deixou o seu papa móvel branquíssimo para a Palestina fazer dele um pronto-socorro, e isso é Gaivota.

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