Grande Plano Manchete25 de Abril | A Revolução dos Cravos vista pela imprensa chinesa Andreia Sofia Silva - 25 Abr 2025 A queda do Estado Novo a 25 de Abril de 1974 foi noticiada pela imprensa de língua chinesa em Macau. Revelaram-se preocupações da comunidade, nomeadamente quanto à permanência do Governador Nobre de Carvalho em prol da estabilidade e bom ambiente de negócios, assim como o “status quo” de Macau no contexto da descolonização Os ecos da revolução do 25 de Abril de 1974 chegaram com atraso a Macau, mas isso não significou ausência de notícias nos dias seguintes, inclusivamente na imprensa chinesa local. O HM consultou algumas das notícias dos jornais chineses da época sobre este período, traduzidas para português por funcionários da Comissão de Censura à Imprensa (CCI), o organismo público que funcionou em Macau durante o regime ditatorial português. Este material está hoje à guarda do Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa. A sua leitura permite não só perceber alguns dos acontecimentos que se sucederam à revolução, mas também as percepções e preocupações que a comunidade chinesa teve face ao que se passou em Portugal. Os chineses queriam manter a estabilidade e a continuação dos negócios. E se o Governador Nobre de Carvalho, no poder desde 1966, passava a estar, para muitos, conotado com o regime fascista, e, por isso, tinha de sair, a verdade é que muitos desejavam a sua permanência para garantir a paz social. Conforme se lê no livro “Macau nos anos da revolução portuguesa 1974-1979”, de Garcia Leandro, ex-Governador português, “os chineses de Macau procuravam, acima de tudo, estabilidade para poder dar continuidade tranquila aos seus negócios, e não desejavam conflitos ou desentendimentos com Pequim ou com Cantão”. A Administração era “fraca, muito mal apoiada tecnicamente e com fama de ser facilmente corrompida”, pelo que havia, no território, “fortes razões para o MFA [Movimento das Forças Armadas] local e para o CDM [Centro Democrático de Macau] quererem mudanças, principalmente pela corrupção permanente e pela sensação de excessiva fraqueza da Administração portuguesa, que parecia nada decidir sem consulta prévia aos representantes chineses”. As explicações do MFA Logo a seguir ao 25 de Abril, Macau recebeu a visita de dois representantes do MFA, nomeadamente o Major Rebelo Gonçalves e o próprio Garcia Leandro, para explicar a revolução e objectivos do MFA para Portugal e as colónias, não apenas à população como aos jornalistas. Um dos encontros, com os jornalistas locais, foi descrito pelo jornal Tai Chung Pou a 6 de Maio de 1974. “Rebelo Gonçalves recebeu os repórteres e narrou-lhes pormenorizadamente o golpe de Estado. No dia (do acontecimento), a canção ‘Quem manda é o Povo’ serviu de sinal de acção”. O tradutor da CCI atribuiu à canção “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, escolhida para ser a segunda senha da revolução na rádio, o nome “Quem manda é o Povo”, numa referência ao verso da letra “O povo é quem mais ordena”. A notícia prosseguia, citando Rebelo Gonçalves: este disse “que o golpe de Estado foi desejo do povo, pelo que alcançou êxito no período de um só dia”. Apoio a Nobre de Carvalho Caído o regime em Lisboa, e exilado Marcelo Caetano, depressa se colocou a questão sobre a permanência do Governador à frente dos destinos de Macau. Porém, Nobre de Carvalho recebeu apoio popular para continuar, como descreve uma notícia do jornal Si Man de 4 de Outubro de 1974. “Portugal não tenciona modificar o ‘status quo’ de Macau, disse um delegado português a comerciantes chineses. O referido delegado manifesta-se contente com a campanha pela recondução do Governador, promovida por diversos sectores sociais. No entanto, o senhor general Nobre de Carvalho já pedira a exoneração do cargo de Governador por motivos de saúde.” Além disso, criou-se um grupo “para a recolha de assinaturas a favor da recondução do senhor general Nobre de Carvalho no cargo de Governador de Macau”, e que foram entregues a Garcia Leandro, ainda na qualidade de oficial do MFA. Este recebeu “duas caixas contendo livros-cadernos com assinaturas”. Foram transmitidos “pareceres de entidades dos círculos industrial e comercial, na esperança de o senhor Governador poder permanecer em Macau, o qual dadas as suas largas experiências e conhecimentos dos condicionalismos, possa vencer as dificuldades resultantes do declínio económico que ora se verifica em todo o mundo”. Mas se era desejo de muitos a continuidade de Nobre de Carvalho, a saída de muitos funcionários públicos passou a ser conotada com a mudança de regime. Como é referido numa notícia do jornal Si Man de 11 de Maio de 1974. “O chefe dos Serviços de Saúde e Assistência, dr. António Joaquim Paulino, regressará no dia 27 do corrente mês a Portugal Continental, o que segundo consta, está relacionado com a queda do Governo de Marcelo Caetano. As autoridades competentes recusaram-se a fazer comentários sobre a partida do dr. Paulino.” O jornal acrescentava ainda: “Contudo, uma notícia de fonte fidedigna informou: Crê-se que o regresso inopinado para Lisboa do dr. Paulino, cuja comissão de serviço nesta província ainda não terminou, está relacionada com o golpe de Estado ultimamente registado em Portugal (continental). Segundo se diz, o dr. Paulino tem sido um simpatizante entusiástico do deposto Governo de Marcelo Caetano.” Ainda no início de Maio, permaneciam ainda muitas perguntas sem resposta, e o jornal Si Man associava a partida de Vasco Rocha Vieira do território, à época Chefe do Estado-Maior do Comando Militar, com a ausência de explicações para a situação política. “Já se passou uma quinzena após a ocorrência do golpe de Estado em Portugal sem que fosse completamente esclarecida a situação política daquele país. Apesar de Macau ser pouco afectada pelo referido acontecimento, o Chefe do Estado-Maior das Tropas Portuguesas estacionadas em Macau, Major Rocha Vieira, afastou-se ontem silenciosamente desta província, facto que levou muita gente a conjecturar e suspeitar que a Junta de Salvação Nacional que tomou conta do Governo português já tivesse começado a actuar em Macau.” As explicações de Ho Yin O jornal Tai Chung Pou noticiou, a 22 de Maio de 1974, que “alguns portugueses declararam em Hong Kong que estavam descontentes com as medidas tomadas pelo Governador e com o Governo de Macau”, tendo seguido “para a metrópole a fim de pedirem a concessão de liberdade aos portugueses de Macau”. Ho Yin, empresário e figura marcante da comunidade chinesa local, que dialogava directamente com o Governador em representação das autoridades chinesas, deu explicações numa sessão com “repórteres estrangeiros, assim como os de Hong Kong e Macau” sobre os acontecimentos de Abril. Estes “visitaram o sr. Ho Yin, pedindo-lhe opinião”, descreve o Tai Chung Pou. E, mais uma vez, Ho Yin apaziguou os ânimos, referindo que Nobre de Carvalho tinha toda a legitimidade para continuar como Governador. “Desde o golpe de Estado português, registado a 25 de Abril, Macau, dadas as suas circunstâncias especiais, tem-se sentido, até à presente data, muito tranquila, não sofrendo qualquer alteração. O sr. Governador, General Nobre de Carvalho, que se encontra em Macau há mais de sete anos, tem profundo conhecimento dos condicionalismos desta cidade, tendo resolvido muitos assuntos através de conversações e envidado grandes esforços para esta cidade”, disse Ho Yin aos jornalistas, segundo o relato do jornal. No mesmo encontro, questionou-se a possibilidade de dissolução da Assembleia Legislativa, proposta do CDM. Mas Ho Yin afastou qualquer mudança política brusca. “Sabe-se que o Centro Democrático de Macau, constituído por alguns portugueses, pediu a dissolução da Assembleia Legislativa e da Vereação Municipal [Leal Senado], assim como a remodelação de alguns serviços públicos. Alguns habitantes julgaram que as asserções do referido Centro afectariam a ordem social, mas vieram a saber que as mesmas se tratavam apenas de opiniões de um reduzido número de portugueses, quando a cidade se encontra ainda tranquila, decorridos alguns dias.” O jornal acrescenta que Nobre de Carvalho explicou publicamente “que a AL não seria dissolvida, pelo que a população de Macau se tornou despreocupada e confiou na prosperidade desta cidade”. Além disso, “os turistas provenientes de Hong Kong, assim como do estrangeiro, também acham que Macau se encontra tranquila e não está de modo nenhum afectada”, lia-se no Tai Chung Pou. O jornal Seng Pou noticiou também este encontro entre Ho Yin e os jornalistas, em que o líder da comunidade chinesa comentou os benefícios de um regime democrático. “Dadas as suas circunstâncias peculiares e devido ao facto de os portugueses e chineses se respeitarem reciprocamente e viverem em paz desde há muito, Macau não sofreu nenhumas repercussões resultantes do referido golpe de Estado português”, disse Ho Yin, frisando que “quanto à liberdade da palavra, a mesma tem existido sempre em Macau”. Porém, o empresário apelava a alguma contenção nas críticas políticas feitas. “A democracia e a liberdade que ora se verificam em Portugal Continental são felicidades para o povo português. E os portugueses e chineses têm vivido no passado em paz, esperando-se que tal continue a suceder no futuro. No então, as críticas sobre pessoas particulares ou sobre repartições públicas devem ser fundadas, visto que qualquer ataque irreflectido faria sobrevir complicações à questão, além de afectar a tranquilidade e prosperidade desta.” Macau sem descolonização Uma das questões emanadas do 25 de Abril de 1974 foi o processo de descolonização, mais urgente na chamada África portuguesa onde decorria a Guerra Colonial desde 1961. Desde logo, as autoridades esclareceram que Macau ficaria de fora desse processo, até porque “a República Popular da China teve o cuidado de, em 1972, no Comité de Descolonização da ONU, deixar bem claro que o futuro destas duas possessões europeias [Macau e Hong Kong] não faria parte da agenda das actividades daquele organismo, sendo o assunto tratado bilateralmente”, lê-se no livro de Garcia Leandro. Na edição de 11 de Setembro de 1974, o jornal Tai Chung Pou escreveu que “o Chefe da Repartição do Gabinete do Governo de Macau, Tenente Coronel Henrique Manuel Lages Ribeiro, apontou que uma notícia emanada da agência noticiosa Reuters fora mal interpretada, e que Macau tem uma posição peculiar”, pois “a maneira de resolver o seu futuro é diferente em relação a outros territórios ultramarinos portugueses.” Citam-se palavras de Almeida Santos, à data ministro português da Coordenação Interterritorial, que referiu “que seria permitido a todos os territórios ultramarinos portugueses escolher a forma de independência como meio para solucionar o seu próprio problema, com a excepção de Macau que, sendo um território muito especial, requer uma maneira também especial para solucionar o seu problema”. Na tradução desta notícia, acrescenta-se também uma nota escrita pelo próprio redactor da peça: “Isto quer dizer que não existe o problema da independência em Macau”. As visitas de Rebelo Gonçalves e Garcia Leandro a Macau decorreram em “finais de Maio, princípios de Junho” de 1974. Almeida Santos esteve em Macau em Setembro desse ano e foi nessa fase que Garcia Leandro foi escolhido Governador de Macau, tomando posse a 13 de Novembro desse ano.