Via do MeioPoesia chinesa e psicanálise – Lacan em Pequim Hoje Macau - 9 Ago 2024 Por M. Ângela Andrade O que há de peculiar na forma na poesia chinesa, que leva Demiéville a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alusão à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imitam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais. Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entanto, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.” Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articula as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, durante a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua teoria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa. Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, principalmente as do seminário XVIII. No presente trabalho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (….) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia… seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever…” A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filosóficos, particularmente daoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bastante assimiladas na cultura chinesa. Nguyen indica ainda os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força destas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e política da China. O artigo em questão destaca três grandes poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Escolhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei. Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio No coração do monte, um som de sino; vindo de onde? À tarde, sobre o lago deserto, meditando, Alguém aprisiona o dragão venenoso. Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à interferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são: 1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferência: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tantas outras indicações desta interferência da ressonância.” 2. A relação com o real. Essa segunda interferência assenta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge como realidade derradeira, sinónimo de Dao. Já a psicanálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmologia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração daoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).” 3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favorece a maleabilidade de espírito. Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, evanescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa. O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético. Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de Lacan chinês. Diz ele, “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao formular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim. Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a partir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afeto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.”