Confúcio na cultura portuguesa – 4

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

III

Em Portugal, o Visconde de Villa-Moura (1877-1935), publica na revista “A Águia”, propriedade e órgão da Renascença Portuguesa1, no Nº 99\100, de Março-Abril de 1920, o conto ‘O Boneco’2. A revista “A Águia” era uma importante publicação mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social, dirigida por António Carneiro e Álvaro Pinto. Ora, esse conto, ‘O Boneco’ é, nada mais, nada menos do que Confúcio.

O Visconde de Villa-Moura, de seu nome completo, Bento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo, nobilitado pelo Rei D. Carlos em 1900 com o título de Visconde, era formado em Direito pela Universidade de Coimbra, grande proprietário rural em Baião, no Douro, e autor de uma obra literária muito extensa e variada3 , esteticamente acondicionada no decadentismo e politicamente muito próximo do integralismo lusitano. João Alves4 , um dos seus primeiros estudiosos, defende que “António Nobre e Vila-Moura foram os criadores do decadentismo em Portugal”.

Por sua vez, António Cândido Franco refere que a “sua obra, quando exalta o erotismo e pugna pelo amor livre, apresenta afinidade com a de Teixeira Gomes e procura as suas fontes gradas em Fialho, no Fialho das perversões rebeldes, a quem de resto dedicou um livro-estudo, Fialho de Almeida (1917), e em Camilo, o Camilo do amor pecaminoso e dos amantes penitentes, a quem também dedicou vários trabalhos, entre eles, Camilo Inédito (1913) e Fany Owen e Camilo (1917)”5. Bem diferente é a crítica de Óscar Lopes6 que não esconde o seu ferrete ideológico, comunista, quando aponta as questões “esteticistas e fascistas” ou o “sentido monarco-fascista e católico integrista” que julga ter encontrado em alguns dos seus livros. Amigo e correspondente de Fernando Pessoa, a obra do Visconde de Villa-Moura está por descobrir, por estudar, quiçá por reeditar.

O conto de Villa-Moura, ‘O Boneco’, foi dedicado a António Cândido7, a águia do Marão, como lhe chamou Camilo Castelo Branco, e apresenta-nos a história de António Marcos, um burguês muito rico e misógino, que vivia com uma velha criada, Teresa, completamente isolado da mundanidade e que “estudava uma interpretação individualista do platonismo, que alterava num sentido mais aristocrático8”.

Em casa “mandava o espírito de Platão, de Aristóteles, de Séneca, de criaturas, em que a Teresa nem por fumos sonhava, e …. um boneco, um autêntico e precioso boneco, a figura de Confúcio, em fina porcelana9”. Com um remoque subtil aos colecionadores e a outros amantes da chinoiserie dizia que “a figura de Confúcio, que Marcos havia trazido de Saxe, e não directamente da China, era uma maravilha. Por ele tinha seguido pelo Elba até ao Báltico, para policiar o seu acondicionamento e jornada10”.

Afinal ‘O Boneco’, Confúcio, era um relógio falante : “o Dr. Kong falava, não já para expor aos seus três mil discípulos a súmula do Ta-hio, mas sobre a pressão dum botão disfarçado em flor à fímbria da túnica, para cantar, numa voz metálica, a característica e impressionante voz dos surdos, aquela legenda do fatídico relógio de Colónia : Todas as horas ferem, a derradeira mata !…11”. Percebe-se que o autor manifestava algum incómodo por se perorar com muita frequência sobre Confúcio e seus ensinamentos, sem ler as suas obras e os comentários dos seus discípulos, porque as repetições se assemelhavam a transgressões no limite das deturpações.

O relógio estava colocado numa estante e “arrumavam-se a seus pés, suas principais obras, o Ta-hio (Grande Estudo), o Tchung-yung (Fixidez do Meio) e o Lung-yu (Diálogos Morais) – flores exóticas da Filosofia, e que ali figuravam como outros tantos símbolos da alma recta e compungida do iluminado12”. Um dia, já muito doente, e sentindo a morte a aproximar-se, António Marcos chama a criada e manda queimar num braseiro todo o seu grande sistema filosófico, “uma interpretação individualista do platonismo, que alterava num sentido mais aristocrático”13, escrito em cadernos durante anos a fio, suspirando, “foi um passatempo!14”. A “Teresa, que andava como sonâmbula naquela tragédia da mais extravagante alquimia, em breve ateou fogo à papelada, que brilhava sobre os restos negros a espiguilha misteriosa e vermelha, logo morrente, da filosofia de António Marcos, e lhe levara uma vida a grafar”15.

Entrega à criada um documento assinado por si, conferindo-lhe a posse de ‘O Boneco’ : “por ele é teu o Chinês da sala grande ! É o melhor traste da casa! Nunca o vendas! E se algum dia sentires miséria, antes o partas! Chover-te-á dos seus cacos a abundância! 16”. Dito isto, morreu. Então, a velha Teresa, atormentada pela morte do patrão e apatetada pela insólita herança que lhe coube, “entrou na sala grande quase a correr, e sem dar conta da multidão de figuras, que , aquela hora, envoltas do fumo, pareciam igualmente partir, dirigiu-se ofegante, nervosamente agarrada à figura fria do Dr. Kong, para a camara torva do Morto.

Mas antes que chegasse junto do defunto, perto do qual pensara em pousá-lo, ao passar pela cruz de pau negro que, fronteira ao leito, se espalhava, a toda a altura da parede, embaraçou-se nas réguas do velho sinal, pelo que o pesado fardo lhe deslizou dos braços, desfazendo-se no chão, em cacos, por entre a chuva dos mais finos tinidos, à mistura do grito civilizado, amarelo, dalgumas centenas de esterlinas, que António Marcos havia confiado de suas entranhas para prover ao futuro da maquinal companheira de sempre17”.

O humor camiliano está presente neste desfecho inesperado, onde uma pequena fortuna em libras de ouro, guardada nas entranhas de ‘O Boneco’, parece pulverizar os remorsos da velha ética confuciana.

Esta exumação da dimensão sapiencial dos ensinamentos confucianos está em linha com uma modernidade pendurada num sistema de conceitos que mais tarde se irão alimentar de Marx, Nietzsche e Freud , na ressaca da erosão dos valores e dos poderes após o termo da primeira grande guerra.

IV

O Confúcio de Manuel da Silva Mendes e o Confúcio do Visconde de Villa-Moura, continuam a ser um e um só.

Silva Mendes valoriza a inquietação do pensador e a sinceridade dos combates que travou para colocar em prática as suas ideias, o ser contra o ter. Este idealismo , profundamente ligado a um devir emocional, constrói uma ética e uma moral de pensamento e acção, dentro de uma realidade inexoravelmente maior do que o alcance da individualidade. A liberdade é a grandiosa energia, a substância da vida em comunidade autêntica. Nas derivações históricas do confucionismo, a liberdade parece transformar-se numa espécie de exílio moral ou numa nota de rodapé da história dos povos.

O Visconde de Villa-Moura, preocupado com o excesso amplificante da razão confuciana, introduz um jogo irónico no pathos do seu auditório, misturando o vil metal, o ouro, com a angústia e a solidão existenciais, porque, reflecte de si para si, “nas letras, como afinal em tudo, os ignorantes têm em menos estima o feitio do que o peso. São para o Pensamento, para a Ideia, o que o ourives estúpido é para o oiro lavrado. Fiam da balança o que ninguém pode fiar deles, do seu juízo, naturalmente muito reduzido em poder de selecção, em critério de escolha18”.

Depois de ter lido O Mandarim, de Eça de Queiroz, encontrou na desconstrução de um símbolo da moda intelectual, Confúcio, o caminho para uma abordagem polissémica da consciência infeliz , de Hegel e de quase todo o idealismo alemão. É nesse referencial de melancolia que afirma19, “Eu leio Nietzsche como os estudantes de piano tocam escalas – por exercício”, terminando o conto sem devolver à velha criada o sentido da responsabilidade pela sua nova identidade. E é nesta incisão nietzcheana que se pode inscrever o seu erotismo misógino quando afirma, “amai o amor, não ameis exclusivamente alguém !”20 em contraponto com essa descrição com tantas estranhas referências : “a boca do Filósofo, de expressão fixa, fria como a boca da rocha, somente aberta ao fio branco e gelante da mais cristalina doutrina, jamais havia inspirado, em sua vida consciente, o perfume dum beijo ; ignorando, de igual sorte, a alma dos lírios, chagas olorosas da crosta terrena, mudável ao sabor das estações, tal qual a pele das cobras, que em seus infinitos ninhos, aquela abriga !”21.

Contudo, teremos de esperar vinte e três anos, por Agostinho da Silva que publica em 1943, uma breve e singela biografia, O Sábio Confúcio22, isto é, um Confúcio popular e acessível a todos , com uma cuidadosa aproximação a uma diferente espiritualidade.

Era o regresso do Confúcio do povo, com ideias simples e eufóricas no indefinível sagrado\profano das argumentações, disponível para ser aprisionado pela retórica negra do poder político.

ANEXO

Carta da Associação de Confúcio23

Aos Exmos. Srs. Directores em Ch’io-chao e Ch’un-chao

De há muito que a montanha da Barra (Má-chu-kók) era tida como um lugar célebre.

Os literatos compunham nela as suas odes e gravavam nas suas pedras, sem nunca isso lhes ser proibido por pessoa alguma.

Por exemplo, Sai-u, em Chit-kóng, Pak-fá-chao, em Uai-chao, e em todos os distritos, prefeituras e províncias que tenham lugares por pouco célebres que sejam, jamais se proibiu que pessoas fossem passear e disfrutar das paisagens desses lugares e gravar poesias nas suas pedras.

Isto são manifestações próprias de indivíduos de raça culta que, quando lhes vem inspiração, compõem as suas estrofes, deixando assim vestígios da sua passagem para os vindouros, e nunca ninguém lhes pôs qualquer embaraço.

Daqui se vê que em todo o mundo se procede do mesmo modo, mesmo nas regiões as mais afastadas.

Os sentimentos dos homens têm sido mesquinhos nestes últimos tempos mais próximos, resultando disso a depressão da doutrina mundial.

Se não procurarmos expandir a doutrina de Confúcio, não poderemos efectuar a regeneração da humanidade. É isso o que nos preocupa constantemente.

No ano cíclico Iam-sôt, a sede da Associação de Confúcio em Pekim, no intuito de expandir a doutrina de Confúcio, dirigiu uma carta à filial de Macau, convidando-a a que propagasse a mesma doutrina e gravasse uma lápide para esse fim, a fim de servir de recordação.

Em vista disso, reunimo-nos em sessão (cópia de cuja acta vai junta) e, considerando que a montanha da Barra (Má-chu-kók) é um dos sítios aprazíveis de Macau e onde existem blocos e pedra imponentes, cheios de inscrições poéticas, resolvemos, no ano passado, contratar operários para, num desses blocos, gravar as letras Ch’eong-meng-k’óng-kao (que a doutrina de Confúcio se torne resplandescente), esculpindo-se também neles, para servir de recordação, os motivos que nos levaram a fazer isso e os nomes dos promotores.

Esses trabalhos ficaram concluídos em dois meses.

O nosso fim único e exclusivo era ter um meio que fizesse constantemente lembrar a todos as doutrinas de Confúcio, tal qual o tambor e o sino servem para chamar a atenção dos seres viventes.

Além disso, Confúcio é o mestre arquissecular dos chineses, e o seu nome, mesmo na Europa, é venerado grandemente pelos literatos de fama.

Quando resolvemos mandar fazer a referida inscrição, não nos passou pela mente que havia de aparecer alguém que a fosse borrar. Não sabemos se esse acto foi feito com a vossa aprovação. No entanto, certos como estamos da vossa inteligência e cultura, não acreditamos, de maneira alguma que V. Exas. tivessem ordenado tal acto.

A crença nas religiões é do livre arbítrio de cada qual, conforme está decretado na constituição do País.

Não existe entre nós inimizade alguma.

Além disso, nenhuma outra religião hostiliza as doutrinas de Confúcio.

Ponhamos de parte o passado. Somos todos chineses e não devemos expor-nos ao ridículo dos estrangeiros.

O dia 18 do corrente é o 2402º aniversário do falecimento de Confúcio.

Com o fim de regularizar o nosso procedimento futuro, tencionamos restaurar a inscrição feita na pedra (da montanha da Barra) a fim de que a doutrina de Confúcio brilhe como o sol e a lua e possa incutir uma pequena parcela de rectidão no coração dos homens.

Sabendo perfeitamente que V. Exas. têm sempre muito a peito tudo o que se passa no mundo e que são modelos dos seus concidadãos, pedimos-lhes que nos auxiliem a proteger essa pedra, prestando assim culto à doutrina de Confúcio.

É-nos escusado chamar a atenção de V. Exas. , pessoas inteligentes e cultas, para o facto de que a nossa associação é uma corporação pública, constituída por todos os chineses aqui estabelecidos, e não uma corporação particular, formada apenas por dois ou três indivíduos.

É quanto temos a comunicar a V. Exas., rogando-lhes o favor duma resposta.

Desejamos-lhes saúde.

Acompanha esta uma cópia da acta da sessão.

Notas e referências:

(a.a.) Ch’oi-men-hin e Chiong-san-nông.

(selo) Filial da Associação de Confúcio de Macau.

9 da 4ª lua do ano 2475º do nascimento de Confúcio.

Idêntica carta foi enviada a cada uma das prefeituras de Ch’io-chao-Cheong-chao e Ch’un-chao.

Macau, Repartição do Expediente Sínico, 13 de Novembro de 1924.

Sobre a Renascença Portuguesa, ver Alfredo Ribeiro dos Santos, A Renascença Portuguesa : Um Movimento Cultural Portuense, prefácio de José Augusto Seabra, edição da Fundação Eng. António de Almeida, 1990, 285 pp. ; Paulo Samuel, A Renascença Portuguesa. Um Perfil Documental, ed. Fundação Eng. António de Almeida, 1990, 397 pp. .

Todas as referências a este conto remetem para a publicação na Revista ‘A Águia’.

Por exemplo : A Moral na Religião e na Arte, 1906 ; A Vida Mental Portuguesa : psicologia e arte, 1909 ; Vida Literária e Política, 1911 ; Nova Sapho, 1912 ; Doentes da Beleza, 1913 ; Camilo Inédito, 1913 ; Boémios, 1914 ; António Nobre : seu génio e sua obra, 1915 ; Fialho de Almeida, 1916 ; Grandes de Portugal, 1916 ; As Cinzas de Camilo, 1917 ; Pão Vermelho : sombras da grande guerra, 1924 ; Cristo de Alcácer, 1924 ; Irmã das Árvores, 1924 ; Entre Mortos, 1928 ; O Pintor António Carneiro, 1931 ; Novos Mitos, 1934.

“Vila-Moura e o Decadentismo Português”, in PRISMA, Revista Trimestral de Filosofia, Ciência e Arte, [direcção de Aarão de Lacerda], Nº 4, 1937, pp. 202-207.

“Visconde de Vila-Moura” , in Fernando Cabral Martins, coordenação, Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Editorial Caminho, 2008, pp. 896-897.

Entre Fialho e Nemésio. Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea, Vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 417-420.

António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922), natural de Amarante, formado em direito pela Universidade de Coimbra, grande orador, ministro, par do reino e presidente do parlamento. Integrou o célebre grupo dos ‘Vencidos da Vida’, com Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, entre outros. As suas obras principais são as seguintes : Princípios e Questões de Filosofia Política, 1878 ; Orações Fúnebres, 1880 ; Discursos e Conferências, 1890 ; Discursos Parlamentares, 1894.

A Águia, Nº 99\100, Abril e Maio de 1920, p, 79.

Idem, p. 82.

Idem, p. 83.

Idem, p. 84.

Idem, p. 84.

Idem, p. 79.

Idem, p. 87.

Idem, p. 87.

Idem, p. 87.

Idem, p. 88.

Vida Literária e Política, Porto, Magalhães & Moniz Editores, 1911, pp. 97-98.

“Flores de Vidro”, in Contemporânea, Revista Mensal, Ano III, Nº 10, Março de 1924, p. 11.

A Águia, Nº 99 e 100, Março e Abril de 1920, p. 80

Idem, p. 80.

Porto, Oficina de S. José, 1943, 29 pp.

Publicada pelo Padre Manuel Teixeira no Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau [do qual era Director e Editor], Ano e Volume LXXVII, Janeiro-Fevereiro de 1979, Nº 888\889, pp. 106-108. O governador Gabriel Maurício Teixeira fez publicar no Boletim Oficial da Colónia de Macau, de 8 de Janeiro de 1942, a Portaria Nº 3327, a aprovação dos novos “Estatutos da Associação Confuciana de Macau”, completamente reformulados em relação aos anteriores, que eram de 1909.

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