A outra face VozesDa inveja e suas marionetas Carlos Morais José - 24 Nov 202224 Nov 2022 DR A inveja não é uma especificidade de Macau mas, seja lá como for, aqui inveja-se de forma extremamente específica. Nisso ao menos somos democratas: não se inveja este ou aquele, por ser rico ou formoso, invejam-se todos sem excepções nem motivos palpáveis. O pior é que nem sequer existe muita gente que valha a pena invejar. Isto é mais uma terra de Salieris deseperados à procura de um Mozart qualquer que lhes dê um sentido para a vida. Sem exageros, de vez em quando até pode ter graça percebermos que somos invejados. Faz-nos sentir importantes despertar um sentimento noutro ser humano qualquer. Ainda que seja um sentimento baixo. Só que o que é demais também chateia. Acaba por cheirar mal e tolher os movimentos. Em Macau a divisa parece ser: «quem inveja sempre alcança», na qual a palavra inveja pode ser substituída por outras muito próximas como «intriga», «difama», «escarnece» e outras que deixo à memória dos leitores. Um dos derivados universais mais interessantes da inveja é o mau-olhado. Quem o garante não sou eu. É o insuspeito filósofo Francis Bacon que cita a mais insuspeita ainda Bíblia: «parece estar incluído, no acto de inveja, uma ejaculação, ou irradiação do olho.» Se em Macau acreditássemos piamente nesta afirmação teríamos de estar sempre a dizer ao vizinho: «Olhe lá, desculpe, e se fosse ejacular para outro lado?!». Normalmente, os que têm são invejados pelos que não têm. É a ordem natural das coisas e até se compreendem as razões dos invejosos. Sobretudo, quando deparamos com situações de flagrante injustiça social. Às vezes, organizam-se e nasce a luta de classes. O que é estranho é que na comunidade portuguesa de Macau, onde todos têm mais ou menos o que querem (na maior parte dos casos, mais do que alguma vez tiveram), subsista tanta inveja. Na verdade, é uma praga parecida com a humidade: viscosa e irritante. A pequenez da terra e das cabecinhas também ajuda a este estado de coisas. Mas a verdade é que aqui não há hipóteses: se fazes é porque fazes, se não fazes é porque não fazes, tudo ganha uma dimensão anormal. Se dás de comer às pessoas és invejado, se não dás és invejado na mesma porque ficas com tudo para ti. Invejam-te porque sais e invejam-te porque ficas em casa. Invejam-te o carro, a mulher e os sorrisos do chefe. E porque são fantasias e não têm nada para fazer, nem mais nada em que pensar, invejam sobretudo o que imaginam que tens. Livre-se alguém de não publicar nas jornais as suas actividades quotidianas: é imediatamente julgado por actos atrozes que todas as noites comete em segredo. Não é que os chineses sejam melhores. Não são. Simplesmente, têm as coisas organizadas de outra maneira. Vivem desde há muito num mundo onde as diferenças de estatuto são tão visivelmente marcadas que a inveja na vertical rapidamente se transforma em admiração. O valor do outro nem sequer é objecto de discussão, portanto a inveja está perfeitamente regulamentada. Trata-se de um controlo de sentimentos com milénios de cuidadosos aperfeiçoamentos. Nesta comunidade, a inveja existe muitíssimo mais na horizontal e aí cuidado que são ferozes. Na verdade, os invejosos são infelizes. Vê-se pela sua cor verde. Têm insónias a pensar nos outros, na felicidade dos outros, no que os outros têm ou são, sem conseguirem parar para pensar em si próprios e terem a distinta humildade de reconhecer o valor alheio. Eu sei que é duro, na maior parte dos casos impossível. São anos e anos de ressabiamentos, de ódios engolidos a pensar nas patacas e numa vingança longínqua que se pressente inalcançável. É um atestado de mediocridade que ninguém gosta de passar a si próprio e que, lá num cantinho escondido, todos acabam por rubricar. Como tudo na vida, a inveja não é má em si própria. É como os ciúmes: não podem ser por tudo e por nada, nem levados a exageros persecutórios. São, no entanto, imprescindíveis numa relação bem-sucedida. De facto, controlado e bem utilizado, o impulso inicial de inveja pode, nos casos em que valha a pena, transformar-se em admiração e ser muito útil ao potencial invejoso. Afinal, a inveja também é uma forma arrevesada de amar. Nota Texto escrito em 1991. Ao que me diz quem frequenta esta sociedade, de uma actualidade surpreendente.