Cartéis

Nem só de cocaína vivem os cartéis, já se sabia, mas cá está a inflação mais ou menos globalizada para nos lembrar esse poder, opaco e invisível, marginal às democracias e predador de recursos e direitos, que agora ataca toda a gente, de uma maneira ou de outra, sem deixar margem para se fugir a um processo continuado e persistente de saque e pilhagem à escala planetária. Estes cartéis actuam em mercados legais e livres, regulados por leis e governos mais ou menos visíveis e supostamente também pelas mãos invisíveis dos mercados, como apregoam teóricos e vendilhões do alegado liberalismo económico contemporâneo.

Não há liberalismo nenhum e muito menos mão invisível de qualquer mercado, sabemos todos. Também não há concorrência justa, e muito menos perfeita, num sistema económico em que grande parte da regulação se faz através de acordos gigantescos entre as grandes corporações internacionais e os governos com mais poder nas sociedades globais em que nos tocou viver. Pior ainda: trata-se frequentemente de uma regulação partilhada entre o poder não eleito de grandes corporações, de bancos centrais independentes de governos, e de instituições internacionais que também carecem de legitimação directa, como é o caso da nefasta e decadente Comissão Europeia.

Evoca continuamente “sustentabilidade”, “inteligência” ou “solidariedade”, o discurso que emana destas pardas eminências que representam o poder dos cartéis contemporâneos, seja no domínio dos mercados internacionais, seja no controle das instituições que supostamente os regulam. Mas também tresanda a bafio, à velha estratégia de perpetuação do poder com base em palavras ocas e desprovidas do seu sentido original, o discurso que se vai propagando a partir destes elegantes meandros do poder.

E, no entanto, aí está a inflação, em todo o seu esplendor, a assinalar uma transferência massiva de riqueza de todos nós para os cartéis dominantes dessa farsa liberal que controla os mercados globais. É verdade que muita gente pelo mundo fora fez poupanças – até significativas – quando manteve o nível de rendimentos mas diminuiu significativamente o consumo, durante o longo período de reclusão imposta pelas restrições inerentes à pandemia de covid-19. Em certa medida, a actual disponibilidade dessas pessoas para um consumo superior ao que seria habitual – seja em viagens, produtos ou outros serviços – também contribui para explicar o aumento dos preços.

Além deste inusitado aumento da procura, há certamente um real aumento de custos de produção relacionados com o consumo de energia, que directa ou indirectamente acabam por afectar a maior parte dos produtos e serviços. Mas neste caso já saímos dos terrenos do vírus e da sua propagação, para entramos nos pantanosos tabuleiros dos jogos de poder dos cartéis, corporações e governos, nas suas manobras de disputa de poderes político e económico: se é a guerra na Ucrânia que está na origem de grande parte dos aumentos no custo de distribuição da energia, também é verdade que todas as opções alternativas que se possam vir a configurar dependem mais dos interesses e poderes das grandes companhias envolvidas do que de quem consume e há-de pagar as contas. Na realidade, a própria evolução do conflito e dos posicionamentos militares e geo-estratégicos que se foram configurando nos últimos anos no leste europeu são também sintomáticos da importância desses poderes que não controlamos.

Seja como for, os resultados são esclarecedores: os aumentos dos preços da energia estão eventualmente a cobrir custos de produção e distribuição acrescidos, mas estão também a proporcionar às empresas que controlam o sector níveis de lucro muito acima da exorbitância a que já nos tinham habituado – e nenhum patrão ou accionista maior destas companhias globais sofreu a mínima consequência desse tal aumento custos (antes pelo contrário).

Igualmente esclarecedores são os resultados que se vão observando noutros sectores, mais obviamente dependentes dos recursos energéticos que hoje pagamos com crescente preocupação. A aviação é um exemplo relevante, relacionado com consumos não essenciais, com o turismo internacional a beneficiar do acréscimo significativo de procura que resulta dos tempos de reclusão forçada e de interrupção súbita dos hábitos de viagem que muita gente foi adquirindo. Com as tais poupanças que se foram acumulando, muitas famílias, mais ou menos abastadas, procuram com a urgência possível voltar a viajar, dispostas a pagar o que se lhes for pedido, que os tempos são de excepção. Lucram então essas companhias que em tempos de covid despediram milhares de pessoas, o que se vai reflectindo, também, na pobre qualidade dos serviços que prestam. Entre subsídios governamentais para suportar a “crise”, redução de custos com despedimentos massivos, e subidas gigantescas de preços para uma procura disposta a pagar, o cartel da aviação é dos que mais beneficia (tal como o da energia) das presentes condições do “mercado” – ou, melhor dizendo, das condições políticas que se foram criando no planeta.

Mais dramático e problemático é o sector alimentar: aí não se trata da procura adicional de uma camada da população com uma vida abastada – ou pelo menos confortável: neste caso trata-se de alimentar – ou deixar de o fazer – todas as pessoas que habitam o planeta. Também neste cartel as grandes empresas globais vão beneficiando com lucros acrescidos das subidas de preços a que estão permitidas pelo controle dos mercados que lhes é possível. Também aqui a concorrência é limitada, quando se olha para os mercados globais e para a escassa soberania alimentar de grande parte das populações. Neste caso, os cartéis que nos dominam não impõem restrições à viagem recreativa: impõem a fome.

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