O huahuai

A existência de seres problemáticos — cujas características os excluem das espécies registadas e que apresentam a aparência de uma mistura, uma intersecção, uma singular junção de atributos de várias espécies — tem desde sempre intrigado a humanidade e dado aso a inúmeras teorias sobre as possíveis origens destes seres, amiúde classificados como “monstros”.
Poderá, por exemplo, a união entre espécies diferentes revelar-se, nalguma circunstância, frutífera? Eis uma pergunta que tem atormentado os sábios já que a experiência é frágil a responder, pois se dificilmente conseguiremos obter resultados do cruzamento de um cão com uma galinha; por outro lado, dificilmente se explica também a existência de criaturas híbridas: fenómenos amplamente registados, descritos por textos antigos ou modernos, e mesmo conservados em redomas de vidro, em laboratórios ou gabinetes de curiosidades. É prática generalizada, em quase todas as culturas, classificar o que não é símile, o inesperado, o inusitado, como aberração ou erro da Natureza, não perguntando se não será porventura o nosso olhar demasiado domesticado para aceitar o estranho como novidade ou progresso e ele em nós provocar, antes de mais, horror, medo e desejo de destruição.
Na montanha Yaoguang, por exemplo, existe um ser chamado huahuai que se confundiria com um homem, não fossem as enormes cerdas de javali, abundantes no seu corpo. Dele se conta habitar em grutas, onde adquiriu o hábito de hibernar. Ninguém refere em que parte da montanha vive o huahuai: se ocupa as grutas da vertente sul, onde abunda o jade, ou se prefere a encosta norte, onde vulgarmente desponta o ouro.
Nesta região é muito arreigada a crença segundo a qual quando um huahuai é avistado tal significa que em breve haverá um recrutamento dos homens e dos rapazes para servirem nas grandes obras do império ou participarem nalguma daquelas guerras que os senhores, de tempos a tempos, gostam de orquestrar. Não é, por isso, um animal muito querido dos camponeses.
O huahuai parece ser o resultado do cruzamento de ser humano com porco selvagem, mas há muito se sabe que essa escabrosa união é, inevitavelmente, infértil. Persiste assim o mistério. Poderá o huahuai ser um descendente daquela tribo de homens transformados em porcos pelo Deus do Corão? Ou poderemos admitir, noutro registo menos mítico, a existência de várias linhas na evolução das espécies, não limitando ao símio a origem do homem, mas alargando a possibilidade de evolução a outras espécies e admitir que, tal como o símio, também se poderão um dia tornar humanas? Curiosamente, é o que parece propor Mao Zedong, também ele leitor do Clássico das Montanhas e dos Mares: “Não poderão os cavalos, as vacas e as ovelhas evoluir? Só os macacos poderão evoluir? E poderá ser, além disso, que de todos os macacos só uma espécie possa evoluir e todas as outras sejam incapazes de o fazer? Daqui a um milhão de anos, dez milhões de anos, cavalos, vacas e ovelhas continuarão a ser os mesmos que os de hoje? Penso que eles continuarão a mudar.” (Sobre questões da filosofia)
Será então o huahuai um elo, um ente de transição, entre um javali e um outro tipo de homem a haver? E não vemos nos nossos campos, ruas e praças, por vezes, homens e mulheres cujas feições imediatamente lembram as de um suíno? Doutras vezes, (oh quantas vezes, demasiadas, tal não já aconteceu…) quando olhamos as feições de um grupo de humanos de forma mais atenta, damos por nós num zoológico diversificado, onde parecem proliferar descendentes de diferentes espécies, semiocultas nas faces mas, ainda assim, claramente distinguíveis se alvos de um olhar sofisticado.
Apesar da nossa contemporânea vaidade, o actual estado do saber ainda denota uma regular impotência, mesmo quando procura responder a questões que ao longo de milénios ribombam nas mentes mais atrevidas. Na montanha Yaoguang, o huahuai, aparentemente indiferente a problematizações científicas e filosóficas, sem se exprimir em qualquer linguagem conhecida, prossegue calmamente a sua vida, emitindo de quando em vez uns sons, uns estalos, similares aos da madeira partida. Alguns crêem neles pressentir uma profunda tendência para a melancolia.

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