Entrevista MancheteJoaquim Magalhães de Castro: “A epopeia portuguesa terrestre tem sido muito esquecida” Andreia Sofia Silva - 22 Abr 2022 Anos depois de ter relatado, em documentário, as viagens terrestres dos jesuítas pelos Himalaias, Joaquim Magalhães de Castro apresenta agora o “Reino do Dragão”. O filme estreou esta semana e conta a epopeia dos padres Estevão Cancela e João Cabral que os levou até ao Butão. Pode ser revisto na plataforma RTP Play Como teve contacto com os relatos desta viagem de Estevão Cancela e João Cabral? Este trabalho é o episódio que faltava contar da saga dos jesuítas. Há cerca de 12 anos fiz o documentário sobre a viagem dos jesuítas portugueses pelos Himalaias, em quatro episódios. Era um projecto que tinha há muitos anos. Conheci a história do padre Andrade, que é o primeiro ocidental, jesuíta, a chegar ao Tibete, em 1624, e essa história fascinou-me de tal modo que, conhecendo bem a região, quis fazer um documentário. Apresentei o projecto há mais de 20 anos à RTP, mostraram interesse mas nunca mais me contactaram, e ficou parado. Finalmente, em 2010, consegui levá-lo de novo à RTP e, através de uma produtora, consegui fazer o documentário. Andámos mais de um mês a percorrer a zona dos Himalaias, do Nepal, porque eu pretendia fazer a rota que estes padres fizeram. Foram realizadas várias, portanto. Sim. O padre Andrade abriu uma rota, da Índia, onde os jesuítas estavam sediados, e a partir daí, como julgavam que para lá dos Himalaias havia cristãos… Mas não havia certezas? Sabia-se por mercadores muçulmanos e alguns portugueses que lá tinham estado. Havia o mito. Os portugueses estavam na Índia, em Goa por exemplo, e foram ouvindo histórias de mercadores que vinham daquelas paragens, de pessoas que tinham templos e que adoravam imagens. Os portugueses cristãos procuravam aliados na fé e isso levou-os a pensar que naquela zona poderia haver cristandades perdidas. Era um mito muito antigo, de que havia o reino do Cataio, e partiram, disfarçados de mercadores. O padre Andrade? Sim. Atravessaram os Himalaias, zona completamente desconhecida para os ocidentais, e chegaram ao Tibete. Ele fundou uma missão católica e vieram mais padres. Ao longo dos anos abriram-se diversas igrejas, uma delas em Saparang, que foi o primeiro local onde o padre Andrade se estabeleceu e houve algumas conversões, mas claro que correu mal. Não há nenhum sinal visível de uma evangelização até aos dias de hoje. Com este documentário, fui seguindo o caminho desses jesuítas até ao Tibete, que abriram quatro rotas. Foi aberta, uns anos mais tarde, uma outra rota, em 1627. Nesse período houve muitas movimentações de jesuítas por zonas completamente desconhecidas junto do mundo ocidental, e iam escrevendo sobre elas. São documentos valiosíssimos, as cartas que enviavam. Algumas foram publicadas, outras não. Estas cartas foram compiladas pelo historiador francês Hugues Didier. Tenho esse livro em casa e é uma espécie de bíblia para mim. Essa foi a base para este documentário. Foi. [Dos quatro episódios que fiz há dez anos] estava por contar a rota mais a leste, que foi a de João Cabral e Estevão Cancela. Estavam numa missão em Cochim e foram para a zona de Bengala, até ao Butão. Onde começa o documentário, precisamente. Sim. Mas queria dizer que, na altura, esse projecto ficou-me atravessado. Anos mais tarde, encontrei em Macau um amigo, o Gonçalo Bello, empresário. Ele tinha visto os documentários e gostava do meu trabalho. Mencionei a história destes dois padres e ele ofereceu-se para me acompanhar ao Butão. Conhecemos um amigo cineasta e outro, empresário, que financiou parte do projecto. A zona de Bengala, na altura, tinha muitos comerciantes portugueses que ali negociavam um bocado por conta própria, fora do poder oficial de Goa. Havia todo o tipo de gente e já havia conventos, os padres tinham-se estabelecido lá. Estevão Cancela e João Cabral fizeram aquela rota e eu procurei ser o mais fiel possível a ela. Guiei-me pelos escritos de Estevão Cancela. O João Cabral escreveu uma carta mais tarde, mas o miolo veio dali. Quis encontrar os locais que ele escreve e identificá-los. Tem a zona de Bangladesh, Bengala e atravessamos para o norte da Índia, até ao Butão. Estes dois padres chegaram ao Butão numa altura em que o território se estava a formar como país independente, criando o chamado “Reino do Dragão Trovejante”. Daí o título do documentário. Exacto. As pessoas pensam que tem a ver com a China, mas não. No Butão viajou com um guia, que mostrou novos elementos da rota dos padres jesuítas. Eles conhecem a história desta influência portuguesa. No Tibete ocidental, onde os portugueses tiveram uma missão durante mais de 20 anos e fundaram uma igreja, não restaram vestígios. Mas no Butão as pessoas conhecem a história e as crianças até aprendem na escola que os primeiros ocidentais a chegar aquela zona foram dois padres portugueses. Foram feitas umas moedas comemorativas sobre a sua chegada, há uns anos. Ficámos apenas cinco dias, o que é muito pouco tempo para capturar todas as imagens que queríamos. Mas havia matéria para dois episódios. O guia, ao saber que éramos portugueses, fez o seu trabalho de casa e deu-me muita informação. Os padres terão levado sete canhões para negociar, porque os jesuítas eram homens muito pragmáticos e não revelavam isto nos seus escritos, mas muitos foram negociantes para financiar as suas viagens. Ofereciam presentes também. Esses dados foram-me dados pelo lado butanês. O Estevão Cancela acabaria por falecer no Tibete, e aí está sepultado, e João Cabral acabaria por fazer nova viagem, tendo sido o primeiro ocidental a chegar ao Nepal. Voltaria à Índia e faria muitas viagens. Teve uma vida longa. E até esteve em Macau, tendo sido reitor do Colégio de São Paulo. A certa altura, no documentário, depara-se com um templo quando procurava um palácio. Houve sítios e monumentos que mudaram ao longo dos anos ou que não foram preservados? Sim. Nesse caso, encontrei um templo hindu, mas mais antigo. Esse palácio, por exemplo, seria feito de materiais perecíveis, como madeira, e deve ter desaparecido tudo. Este documentário revela outra faceta menos conhecida em relação à missão dos jesuítas? Isto é matéria para uma vida inteira. Se fosse milionário não faria outra coisa. Tenho uma lista imensa de trabalhos que gostaria de fazer com histórias de jesuítas. Esse método de seguir as suas pisadas é fascinante, porque cativa a pessoa e é também pedagógico, baseando-se em textos que foram deixados escritos. Essa epopeia terrestre tem sido muito esquecida, e quando se fala da expansão portuguesa fala-se sempre das viagens marítimas e das zonas que os portugueses se estabeleceram através das feitorias. Há a ideia que foi um império construído junto à costa, mas esquecemo-nos que fizemos viagens pelos continentes adentro.