h | Artes, Letras e IdeiasA Terra furiosa Amélia Vieira - 12 Jan 2022 O ciclo das batidas deste nosso Quaternário deixou de ser há algum tempo o da plurivalência de um planeta diverso, sim, porém indiviso no seu todo orgânico onde por longas eras espalhou equilíbrios sem deixar nunca de ser duro, brutal e repentino. Nesta última regência onde muitos ciclos humanos prosperaram, era ainda ele a inquebrantável sustentação do nosso mérito evolutivo, e nós, assim habituados, não soubemos antecipar o evidente choque que hoje vivemos. Tempo anunciador esta década vivida! Apercebemo-nos como se rompem os complexos laços da sustentabilidade que nos pareciam infindos e como a radicalidade é afinal uma lei física que não deixa espaço para titubeantes e fraudulentas interpretações. Os sinos tocaram, e cada um, com mais ou menos capacidade de interpretação, lá foi gerindo a sua dinâmica do impacto, é certo – mas ninguém nos prepara para a crueza dos factos, nem para as disfuncionalidades dos programas, nada adianta elaborar perspectivas face ao repentino, inaudito, transfigurável e imprevisto. É aqui que chegámos, puxados pelas “correntes” atmosféricas. E eis-nos a perscrutar os serviços meteorológicos como se fossem oráculos, pois de tudo o que de tão interessante existe ou deixa de existir, é essa efervescência que domina o frontal occipital que teve rápido de saber confrontar-se entre vital e acessório – mas uns dormindo não terão nem tempo para ligeiras metamorfoses, serão absorvidos com os neurónios intactos na grande Transformação. Melhor para eles! É agora, e nunca como agora, que temos de ser progressistas, pois que não haverá mais nada para onde voltar: voltar à terra, aos prazeres bucólicos, aos muitos “aos”…. Não vamos voltar, na medida em que é neste grave instante uma ideia de miragem, pois que nada nos acolhe com a mesma estrutura encaminhada no sonho humano que gerou com a vida coisa prodigiosa, sim, mas que se rompeu, e também o Coro clamoroso dos que andam há anos debatendo a mesma coisa, com a paciência a que se atribui muitas vezes alto grau de pouca convicção, e sempre (ou talvez?) de ilustre incompetência, nós não vamos sair daqui da forma como chegámos. Já entendemos que ficar brandido em cima da onda é o último púlpito de um grande acontecimento que a todos ultrapassa, ninguém largará o seu pódio antes da última enxurrada (como também alguns não largaram os seus livros quando foram para as câmaras de gás, e disseram: «o último segundo de vida ainda é vida» estando até aí corrigindo textos) – É! Chamar-lhe-emos resiliência? Não sei. Mas sei que é apanágio humano ir até ao limite de um processo, sempre em marcha lenta, que o ruído dos impactos nos aterrorizam ainda mais. Se nos ocuparmos a discutir tal temática averiguamos como o mundo está prenhe de Carlos da Maia em direcções de onde até o fogo vem, o degelo endoidece, e as neves se transmutam, e num ápice, estamos numa estação pequena, todos juntos, para apanhar o elétrico: é que, mesmo que o mar já se levante na última maré, estamos atrasados para o jantar. Merece-nos no entanto uma consideração dolorosa o que temos visto de fauna e flora literalmente engolidos por esta nova realidade de contornos bíblicos, e não raro, quem for ainda mais perscrutador, pensará escutar um estranho uivo das entranhas da Terra. – Embarques para Cítara, perfeito! Local mítico paralelo a esta vida gerada, levando amigos, pajens, nas barcas do sonho… foi porque assim sonhámos que somos humanos e que hoje entendemos que não tarda teremos de procurar novos habita (s) se para tanto desejarmos continuar viagem. Não tardarão “bolhas” que são construções adaptadas a uma necessidade de oxigénio na nova vida planetária, com estruturas tais que não consideramos, só que elas não vão esperar pelo entendimento na voragem de um planeta que nos faz agora os mais intrigantes reféns. – Inviabilizámos muitas coisas, mas face a isto não estamos preparados como seria conveniente. O Filme acabou, estamos numa produção de autor. – Outrora, creio que a Terra sorria, lembro-me da força do iodo, do chão, das glândulas que cheiravam a estonteantes coisas que já nem sei explicar, tão forte se nos apresentava que a teríamos dado como imortal – não, não foi num outro Quaternário, foi tão só há quarenta anos- nós já morremos no espírito da Terra, e não aprendemos leis que nos libertem das suas inevitáveis agruras.