Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasHóspede indiscreto Anabela Canas - 10 Set 2021 Ilustração de Anabela Canas coisas delicadas que esperava encontrar no meio dos objectos de quem, morrendo, fica a adejar emoções válidas. Testamentos. Legados a anónimos pretendentes em linha. São esses os vícios das palavras. Muitos as querem. Suas. Mas de quem se foi nada mais há, a cientificamente demonstrar. Labirintos de sentidos. Quem dá mais, na senda de se encaixar no remoinho emotivo que tinha palavras tu. Tarde demais para apanhar o pequeno ramo com a segurança do acaso, mesmo. Quanto mais de um remetente a endereçar. Quanto muito: meu querido diário. E ele sabe que é ele. No mesmo labirinto de sentidos um mapa de sinais – este inferno improdutivo – só um caderno inorgânico pode saber exactamente e sem margens de ambiguidade que a ele se endereçavam palavras mesmo se quando partilhadas infiéis com outros sujeitos. O vaso em alabastro tem uma discreta luz por detrás quando está vazio Mas quando cheio tudo se complica A superfície o recheio a luz que incide do outro lado um calor uma agonia suave cio Folheio páginas lancinantes como hóspede indiscreto que abre um ficheiro na memória e estaco naquela do poema curto a acabar. Ela estava triste nas linhas anteriores e irresoluta nas que se seguem porque do seguimento da vida ela não sabia nada nem queria nunca mais deitar-se a adivinhar. E as linhas breves colheram-me como em arena cornos pontiagudos de animal em fúria desencaminhado. Com o mesmo desconhecimento. Que a perplexidade de não ter certezas, apesar de tudo, nos sedimenta margens de segurança, estanques que não deixam mais ou nunca mais que uma dúvida como sinos se insinue e construa. Por dentro, claro, como só por dentro as coisas que nos arrastam de uma inércia qualquer, constroem. Fico com o registo dela mas não sei quanto tempo durará. Este abalo. Paro e descubro trocos que pagam um gelado de passagem e nem sei se esse outro pensamento dura. Ela, na sua intensidade que nem sempre se admite compreensível – digo eu, a minar. A pequena sequência de linhas, pequeno poema púdico entre outros, que encontra desprevenido, agora, uma luz póstuma que o estranha e não sabe ler. Copio apressadamente numa folha minha, aquelas linhas sem certeza de que um dia vou entender. Senão com a minha vontade. Sucesso inglório, sem troféu. Que não este papel já mole e enrugado. Meu, copiado dela e como se para mim. Porque me dizia sem nunca o dizer quero deixar-te tudo, quando morrer. E o sabor do gelado, gelado e frutado sem doce em demasia, na ansiedade apressada para não escorrer nem derreter mais do que o que o palato pode acolher mesmo num dia de calor tórrido, distrai-me o pensamento à superfície. No fundo, como em cenário, a dúvida que perpassa do simples papel que se apropriou de um pensamento de um seu igual mas com linhas. Sem ter certeza no sentir, ou se dele. E sem saber se descer ou subir a rua, entretanto e porque é indiferente para a resolução impossível de pensamentos como este a gerar suaves questões que ficaram em vida. Equações. Porque das profundezas do tempo, aquela palavra tu. Em cada excerto de narrativas improváveis.