Uma ocasião

Por vezes uma pessoa procura refúgio no que leu, viu, ouviu. Sobretudo se essa pessoa for eu. Mas eis a maravilha e o terror: nada disso nos serve para coisa alguma. Estamos vulneráveis ao que somos (deixai-me saborear a língua portuguesa por uma vez e esquecer a ontologia) e o que somos tem a tendência de nos surpreender na proporção directa das nossas certezas, se tudo correr bem. Ou seja: quanto mais vida (idade, tempo, o eufemismo que o leitor preferir) mais tapete temos para alguém o puxar de forma inesperada e devida e deixar-nos estendidos no chão. Se esse alguém coincidir connosco a coisa torna-se tão misteriosa como bem-vinda.

Foi certamente a visita dessa força que agora mesmo guia os meus dedos no teclado. Prometi, quando esta casa me foi gentilmente aberta, dedicar-me às pequenas coisas, até porque o mundo me aborrece. Mas fiz um pacto comigo em que a minha vida seria privada de escrita porque é privada de interesse para os outros. Até agora. Não sei o que terá acontecido nem sequer me faltava assunto para vos infligir; mas nunca sobre mim, a minha vida, os meus. Só que hoje, sem razão aparente, o tapete terá sido puxado com gosto e sadismo pela única pessoa com que não consigo lidar: eu.

Não sei porquê. Sei que nesta altura – e são onze da manhã, desperto, descansado e sem desculpas – preciso falar do meu Avô Nabais. Melhor: porquê já sei mas só o direi no fim. Para já, descubro a causa neste paradoxo: quanto mais velhos mais remotas as memórias. Ou seja: não sei qual foi o meu pequeno-almoço mas lembro-me vividamente das cores e imagens dos meus doze anos. E aqui vou percebendo, à medida que escrevo. O meu Avô Nabais foi a primeira perda próxima que tive, o primeiro choque verdadeiro com a mortalidade a que me fizeram o favor de me poupar.

Só que, lá está: se existe condição exclusivamente humana que nos redime ao mesmo tempo que nos condena é a memória. Neste caso pouco me importa o desfecho. De repente vejo-me num pequeno jardim de Inverno, numa varanda da Rua Passos Manuel, em Lisboa. A minha Avó cultivava nessa varanda toda a espécie de plantas e era aí que o meu Avô gostava da minha companhia. “Zé, senta-te aqui”. O porquê de me chamar “Zé” não sei; nunca, que me lembre, terá pronunciado o meu nome próprio. Mas pouco me importava: ia e ouvia, deliciado, as suas histórias.

Raiano, nascido e criado na aldeia de Vale de Espinho, na Beira Baixa, veio para Lisboa porque era um dos destinos que lhe ofereciam – o seminário ou a cidade. Preferiu migrar para servir como marçano e a partir daí chegar ao que nunca mostrou ambição de ultrapassar: empregado de escritório. Mas com ele vieram as histórias fantásticas de caçadas de javali, o contrabando, o trânsito clandestino de voluntários para a Guerra Civil de Espanha (e, coisa inadequada aos nossos dias: o Avô era monárquico via franquista, coisa que só muito mais tarde vim a saber), as descrições das casas graníticas e tantas outras aventuras que invariavelmente começavam assim: “Uma ocasião…”.

Foram tardes quentes que, percebo agora, terei desperdiçado até este preciso momento em que as lembro e celebro. E tantos outros instantes e características que testemunhei e que precisei de crescer para as identificar. O profundo introvertido, à beira da misantropia, que se fechava no quarto se chegassem visitas não anunciadas – filhas, genro, fosse quem fosse. A excepção era eu, neto único na altura. Os rituais escrupulosamente mantidos, como o de sair mais cedo antes de ir trabalhar para poder apanhar o eléctrico certo e ter tempo de ir ao café falar com os amigos sobre o seu amado Belenenses – a única religião que lhe conheci.

Um dia regressei do liceu para almoçar em casa dos meus avós, como era habitual. Encontrei a casa cheia de gente alvoroçada, o telefone a tocar, a minha Mãe a falar-me com extremo cuidado. O Avô estava no hospital, de onde não voltaria. Tinha doze anos; por precioso conselho dos meus pais não fui nem a velório nem ao funeral. Fiquei em casa sozinho, televisão ligada mas ausente. Não verti uma única lágrima.

Até hoje. Até agora mesmo. E essas lágrimas preciosas são a tinta destas palavras, a sua razão maior e a que estou grato. Um dia talvez venha a dizer aos meus netos “Uma ocasião…”. Somos todos os outros que viveram e vivem em nós e se houver sentido para esta coisa da vida que seja este: passar essa vida a quem mais amamos.

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