Stendhal, o italiano (1994) Philippe Sollers

(tradução de Emanuel Cameira)

Henri-Marie Beyle, mais conhecido pelo pseudónimo Stendhal (1783-1842)

 

Em Julho de 1817, apareceu em Paris, em dois volumes, uma estranha História da pintura em Itália. Assinada com as iniciais M.B.A.A., que é necessário decifrar: Monsieur Beyle, ex-Auditor. Em Setembro do mesmo ano, eis um outro livro do mesmo autor: Roma, Nápoles, Florença. Mas, desta vez, a assinatura mudou: é Stendhal.

Onde está Stendhal em 1817? Politicamente, depois da epopeia napoleónica, é como se estivesse exilado, ou quase. A lembrança do Imperador encarcerado em Santa Helena desvanece-se (mas a corajosa dedicatória não o trai: «Os vossos vis inimigos não serão conhecidos senão pela felicidade que tiveram em ser vossos inimigos.»). A Restauração está por toda a parte, quer dizer, o dinheiro, a hipocrisia, as intrigas, os lugares. A História voltou a adormecer. Stendhal sabe que é suspeito, socialmente mas também pessoalmente.

Ele sente de outra maneira, pensa de modo diferente, ama de uma forma que só a ele pertence, precisa de admirar, quer tornar-se digno de admiração. Tem trinta e quatro anos. Não se sente bem. Está entre Ângela (que o trai) e Matilde (que será a grande paixão da sua vida). A Itália? Ah sim, mais do que nunca a França é insuportável, um dilúvio de suspeitas, de pequenos interesses, de velados, provincianos acertos de contas. A arte? Cada vez mais, pois é o mesmo que o amor. Mas que arte agora? Para dizer o quê? E com que corpos? Voltar aos gregos, como é habitual após os grandes colapsos? Sem dúvida, mas os Italianos (ainda sabemos tão pouco sobre eles) fizeram algo diferente do mau-gosto neoclássico revolucionário ou imperial. Não devemos imitar o Antigo, não devemos querer outra coisa senão o que somos. Como assim?

Stendhal tem um fraco pela fisiologia. No início, é o temperamento, o resto deriva dele. Vejamos, existe o sanguíneo, o bilioso, o fleumático, o atlético, o nervoso, o melancólico. Stendhal é já um romancista, ele observa, aponta, classifica, faz retratos, diverte-se: «Movimentos constrangidos, decisões carregadas de hesitação e reserva revelam o melancólico. Os seus sentimentos estão sempre reflectidos, os seus desejos parecem atingir o alvo apenas por desvios. Se entrar num salão, deslizará rente às paredes.» O sanguíneo-bilioso é o temperamento mais feliz (é o dos Franceses, tanto melhor). Por outro lado, o «bilioso-melancólico, variedade tão comum em Espanha, em Portugal, no Japão, parece-me, pelo contrário, o temperamento da infelicidade em todas as suas formas».

A situação histórica é melancólica? Vamos portanto chamá-la à ordem pelo espírito lógico e matemático (é o que Stendhal quer ser) mas capaz, ao mesmo tempo, de ir ao fundo do sentimento (é assim que Stendhal se imagina). Uma palavra resume esta síntese original que corre o risco de desaparecer na apatia e na busca de interesses medíocres: a energia. Assim, faremos a apologia, senão de Napoleão (afinal de contas, muitas mortes para nada e demasiada Administração), pelo menos de Francisco I de França (a «energia da Liga semeia grandes homens»). Francisco I de França, contra Luís XIV que não compreende Bernini, é «italiano». A prova? Leonardo da Vinci. Luís XIV, e a comitiva, é talvez um erro em relação a Roma. O quê? Roma? Os papas? Sim, Júlio II, por exemplo, mas não só ele.

E depois, claro, a Florença de Lourenço de Médicis: «Os seus poemas revelam uma alma apaixonada pelo amor, e que amou Deus como uma amante, aliança que a natureza apenas coloca nas almas que destina à união com os maiores génios. Ele costumava dizer: “Que aquele morreu já nesta vida, que não acredita na outra.” Com o mesmo estilo arrebatador, ora canta hinos sublimes ao Criador, ora venera o objecto de seus prazeres.»

E aqui está o grande herói desses dois volumes deslumbrantes de clareza, de julgamento e de sensação (não, não, ninguém os leu, inútil dizer o contrário): Miguel Ângelo. O gosto por Miguel Ângelo renascerá, diz Stendhal (que não imagina a existência, um dia, de Rodin). É preciso ver como ele tenta entender as linhas de força que levam a um resultado tão humano, concentrado, único. Stendhal, porém, não possui a fibra bíblica, ele «leu Voltaire aos doze anos». Mas a Sistina prende-o, fascina-o, inquieta-o: «Um tolo aparece na Capela Sistina, e a sua vozinha perturba o silêncio augusto com o som das suas palavras vãs; onde estarão essas palavras? onde estará ele mesmo dentro de cem anos? Passa como pó, e as obras-primas imortais avançam silenciosamente ao longo dos séculos que virão.»

Este é realmente Stendhal, não Chateaubriand. Profecia? Não: evidências. Stendhal está às cinco horas da manhã na Basílica de São Pedro, em Roma («Avisamos o porteiro na véspera»). Tenta analisar por que razão essa história (com seus excessos, seu derramamento de sangue, sua mística, suas blasfémias) pôde gerar essas obras. Stendhal e o culto dos grandes homens? Claro, e como ele está certo. Como materialização de «energia», é preciso dizer que Leonardo e Miguel Ângelo são casos a considerar à parte: «Miguel Ângelo passou vários meses a desenhar na capela de Masaccio. Lá, como em todo o lado, ele era superior, o que, claro, foi pago com um sentimento geral de ódio.»

O que fascina Stendhal, que é tudo menos um amador ou um crítico de arte, é a luta entre poderes temporais e espirituais: o jogo, aqui, é bizarro, já que o papa encarna o temporal e Miguel Ângelo o espiritual. Ora, neste caso, o espiritual impõe-se «Desde aquele momento, Júlio III amou-o quase tanto quanto Júlio II outrora… Sobrevivendo-lhe, como a ordem da natureza parecia anunciar, quis embalsemá-lo, para que o seu corpo fosse tão imortal quanto as suas obras». Estranho plano para um artista por parte de um papa, não é?

Eis Stendhal começando a existir em Itália. Isso o levará bem longe, é sabido. «O essencial, enquanto cá estivermos, é fugir dos estúpidos e mantermo-nos felizes.» E isto, stendhalíssimo: «O Amor está em Itália, não nos Estados Unidos da América ou em Londres… Em Inglaterra, jogar às cartas ao domingo ou tocar violino é um sacrilégio revoltante. O capitão do navio que levou Bonaparte a Santa Helena fez-lhe este extravagante anúncio.»

 

Tradução de: Sollers, Philippe [1994], “Stendhal l’Italien”, in La Guerre du Goût, Paris, Gallimard, 1996, pp. 559-563.

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