Entrevista MancheteAnabela Santiago, doutoranda da Universidade de Aveiro: “Relação da China com OMS não sairá abalada” Andreia Sofia Silva - 13 Jan 2021 Esta quinta-feira uma equipa de peritos da Organização Mundial de Saúde (OMS) chega à China para investigar a origem do novo coronavírus. Para Anabela Santiago, doutoranda da Universidade de Aveiro na área das políticas de saúde pública da China, a relação do país com a OMS não sairá afectada e pode até ajudar a pôr um ponto final a muitas teorias da conspiração sobre a covid-19 O que poderemos esperar da visita da OMS à China? O resultado desta investigação poderá alterar a relação da China com a OMS, ou a própria credibilidade da China face às políticas na área da saúde? A visita de um grupo da OMS inclui peritos de várias áreas que podem ajudar, de facto, a elucidar um pouco qual foi a origem deste novo coronavírus, independentemente de ter sido na China ou não. A relação da China com a OMS, e com outras instituições das quais o país faz parte, não sairá abalada por esta visita. Apesar de ouvirmos diariamente nas notícias que a China colocou entraves a esta visita a verdade é que isto não é inédito, e no que toca à China há sempre entraves burocráticos por algum motivo. Esta missão já estava prevista há algum tempo e o atraso deve-se a burocracia com os vistos. Pelo que tenho vindo a estudar, a visita prende-se essencialmente com um espírito de cooperação da comunidade científica, ou seja, [os peritos] não vão lá “pôr a mão na massa”, porque os cientistas chineses têm vindo a fazer isso. O que a OMS vai tentar ver é o que tem sido feito pela comunidade científica chinesa e tentar transmitir isso ao mundo. Vão tentar dar uma certa transparência daquilo que está a ser feito no terreno pelos cientistas chineses e que agora vão ter a colaboração de outros parceiros, sempre numa lógica de cooperação. A OMS vai fazer uma espécie de auditoria, mas isso não quer dizer que estes cientistas descubram tudo no espaço de poucas semanas. A visita visa também acabar com a especulação que se tem gerado em torno da origem do vírus, com muitas teorias da conspiração associadas à Administração Trump. Sim, penso que será mais nessa perspectiva, de acabar com certos preconceitos, até porque já vários elementos da OMS e da própria equipa que vai estar no local vieram dizer que esta não é uma busca pelo responsável do vírus, porque isso pouco importa nesta fase. Independentemente do resultado que se venha a obter, é importante trazer algumas lições em termos de saúde pública e daquilo que os diversos governos, dos vários países, podem fazer para que isto não volte a acontecer. À China também interessa esta transparência para manter o seu soft power e as suas políticas de ajuda na área da saúde? Sim. A China, como sabemos, tem um sistema político muito fechado em si próprio e não vamos agora tecer juízos de valor. Tem havido muitas vozes que se erguem contra a censura, a tentativa de abafar determinados assuntos, mas isso sempre aconteceu independentemente deste contexto de pandemia. Mas penso que interessa à China trazer evidências científicas para limpar alguma imagem menos boa que possa ter passado para o mundo ocidental e desmistificar tudo isto. Trazer à luz evidências de que o vírus não foi criado em laboratório, por exemplo, e outros aspectos que têm vindo a público. A China depressa conseguiu dar a volta e tirar partido do facto de ter sido o primeiro país onde foram detectados os casos para logo de seguida tomar medidas e até ajudar outros países. Fazer da assistência humanitária uma bandeira. Recentemente o Conselho de Estado chinês divulgou mais um Livro Branco sobre a cooperação internacional onde a área da saúde surge em grande destaque. Acredita que no contexto da política “Uma Faixa, Uma Rota” a saúde será a área dominante nas relações da China com outros países, nos próximos anos? A pandemia da covid-19 veio também dar mais destaque a esta área? O conceito de “Uma Faixa, Uma Rota” é muito abrangente e é um projecto que inicialmente não tinha tanto foco na saúde. Tinha por base a criação de infra-estruturas. O que aconteceu é que a pandemia veio dar um grande destaque à área da saúde, daí que a saúde não teria tido tanta preponderância neste projecto como está a ter, é um facto. Todo o programa de “Uma Faixa, Uma Rota” está a ser alvo de reestruturação e não sei se a saúde terá o papel predominante, mas terá sem dúvida um papel importante. Esse programa já não está a ser re-orientado para infra-estruturas físicas, porque muitos dos contratos estão a ser revistos e cancelados, e a China está a tentar re-orientar esta faceta para um desenvolvimento mais digital. A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” não está posta em causa, mas vai ter de se adaptar às novas circunstâncias. E a Rota da Seda da Saúde vai ter um papel muito importante, até porque falamos também do sector agro-alimentar, à segurança alimentar e de produção de medicamentos. A China sempre foi encarada como sendo um país com pouca credibilidade nessa área. De certa forma, o país cada vez mais se afasta dessa imagem. Sim, sem dúvida. Podemos fazer a comparação com o surgimento do vírus SARS-Cov-1, em 2003, e vemos uma China muito mais preparada para lidar com crises de saúde pública. Portanto, isso é inegável e a China sempre se pautou por querer passar de um país onde não havia grande investigação científica e onde a formação dos quadros técnicos não era muito avançada, para um país onde o desenvolvimento se baseia na economia e na investigação. O sector da saúde é um grande exemplo disso. Em 2013, quando se criou a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, foi uma maneira de dar corpo ao que o Presidente chamou de “sonho chinês”. A China tem todo o potencial para, do ponto de vista internacional, ser vista como uma potência que ainda não atingiu certos patamares de excelência, mas que caminha a passos largos nesse sentido. Esta iniciativa que eles têm de receber equipas estrangeiras e de enviarem pessoal das suas universidades para o exterior é um sinal de abertura do país. De certa maneira, olhando para a UE, a China ganhou terreno na resposta à pandemia? É evidente que não podemos comparar os números chineses com os europeus porque a população é maior. Do ponto de vista da resposta que é dada, sim. É um assunto um pouco polémico, mas muitos media referem que a medicina tradicional chinesa (MTC) também tem ajudado no combate à covid-19, coisa que não acontece na Europa. Não há evidências científicas nesse sentido, se será a melhor via para o tratamento da doença, se é apenas um cuidado adicional. Mas a China também refere que conseguiu uma resposta eficaz à covid-19 pela via da MTC. A população chinesa também acata melhor regras e o uso de máscara é mais habitual. A MTC tem estado muito presente no discurso político das autoridades chinesas. Mas, ao mesmo tempo, parece que a medicina ocidental está a prevalecer. Até que ponto é que a MTC vai manter o mesmo peso a nível da diplomacia chinesa? Vai haver uma co-existência da MTC com a medicina ocidental, porque a China, apesar de se mostrar cada vez mais aberta a novos conhecimentos com o ocidente, e apesar de haver esta troca de conhecimentos a nível global, o país, por uma questão de herança cultural, não vai querer abandonar, de todo, a MTC. A MTC nunca vai desaparecer completamente e servirá talvez como um complemento à medicina ocidental. Os chineses encaram isso como uma coisa boa, tanto que a MTC nunca deixou de aparecer nos discursos oficiais. A China tem tentado, nas duas últimas décadas, atingir determinados objectivos de desenvolvimento sustentável segundo a agenda da ONU para 2030, e esse também é um sinal de que se pode contar com o país para assumir uma posição na arena global na área da saúde. Queria também frisar o plano que a China tem a nível interno, o Healthy China 2030, que é um programa do Governo chinês traçado antes da pandemia no sentido de implementar reformas no sector da saúde ao nível interno. Claro que não há nenhuma nação que pretenda ser um player importante na arena global sem ter primeiro os seus problemas internos resolvidos. O facto de implementarem esse plano, que visa que todos os chineses tenham acesso a cuidados de saúde primários, uma rede eficiente, e que todos tenham acesso a um seguro de saúde, é muito importante. Isso mostra que já havia uma preocupação com o sector da saúde e este plano também marca uma posição. Independentemente da pandemia, a China já queria ser um país com algum destaque na área da saúde. Especialista diz para não se esperar uma conclusão da visita à China Dale Fisher, presidente da Global Outbreak Alert & Response Network, ligada à OMS, disse esta segunda-feira, na conferência Reuters Next, que não se deve esperar uma conclusão concreta da visita da OMS à China, a propósito da investigação da origem do novo coronavírus. “Estou mais inclinado para que as expectativas face a uma conclusão sejam muito baixas para esta visita. Penso que é uma visita importante mas não se deve exagerar relativamente ao surgimento de um resultado desta vez”, disse, citado pela Reuters. Esta quinta-feira uma equipa de peritos da OMS irá voar para Wuhan a partir de Singapura, confirmou ontem Zhao Lijian, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China. No entanto, ainda não está confirmado se a equipa da OMS terá de fazer quarentena à chegada ao país, não tendo sido também adiantados detalhes da visita.