Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDesatinos António Cabrita - 10 Dez 202014 Dez 2020 O acaso atirou-me para o estômago de Xipamanine e só teria boleia duas horas depois. Andar de chapa em pleno Covid não me parecia prudente. Sentei-me na tasca mais protegida da poeira. Eles chegaram vinte minutos depois e abancaram na mesa ao lado da minha, num estardalhaço. Cinco bizarmas, altos e maçicos como zulus. Na melhor das hipóteses, seis ex-piratas convertidos ao basquetebol. Não eram, falavam em casas ardidas e em extorsões. E o líder – há azares que nunca vêem sós – achou graça que na mesa ao lado um white se procurasse concentrar na leitura. O que dava uma função diferente ao tampo das mesas, agastadas por décadas de cotovelos ébrios. Para mostrar-se magnânime, interpelou-me, queria pagar-me um copo. Escusei-me às primeiras, mas ele insistia e de cinco em cinco minutos voltava à carga. Ao cabo de vinte minutos amaldiçoei-me por não ter zarpado mais cedo nem poder agora evitar a oferta, sem parecer indelicado. Suspirei para dentro, apropriei-me com um olho de uma linha do livro que estava a ler e atirei para a mesa do lado, num sorriso contrafeito: – Bom, se até o Hegel, na Fenomenologia do Espírito, evoca a necessidade de tornar fluido o “pensamento congelado”, poderei eu recusar a sua oferta em oferecer-me uma cerveja? Fez-se silêncio e a coisa deve ter-lhe parecido rebuscada, de um momento para o outro eriçou-se. Lançou para os outros: – O white gosta de confusionar os bradas… – e sacando a pistola do bolso, pô-la em cima da mesa, sem deixar de me mirar – Vamos ver o que esse boss, como é que era mesmo o nome? – Hegel…- repeti, reprimindo a custo o soluço – é alemão… – Vamos ver o que esse boss fala depois de ver o buraco de uma bala no bucho… de outro white. – Bom, dou por alternativa aceitar o seu copo… – reagi, mansamente. Na hora seguinte, rodeado de risos e grunhidos e de mil disparos escatológicos, bebi cinco canecas a mata-cavalos, quase em silêncio; o capanga queria comprovar se o white aguentava. Não é verdade que cinco canecas depois se desloque o foco da depressão. E explicava ele aos outros, trocista, topando o meu incómodo: – Julgava que o “mano” lia uma cena de economia e nos ia falar como livrar impostos! Ficou o Hegel mais às curvas do que eu, apreensivo com os rumos de tanta generosidade. À sexta caneca, comprovando que a minha necessidade inata para ser tranquilizado me traía, deixei escapar um arroto. O que lhe provocou uma gargalhada e amenizou a tensão. Resolveu aí guardar a pistola e condescender: – O white sabe beber… – antes de prevenir, de seguida – mas para a próxima faço-te engolir o livro! O livro, de bolso por sinal, chama-se La Figure du dehors, e é do Kenneth White: daria uma bela e indigesta refeição. Sairam dez minutos depois, na mesma estúrdia em que tinham entrado, deixando-me a cismar na ressaca e na petulância com que a cultura às vezes arrisca não ser mais do que um descarnado out of time. Noutra vez resolvi ir experimentar o ambiente de um café novo, numa zona nobre da cidade, um pouco retro, bastante kitsch, e estupidamente caro. Normalmente, só levo comigo o suficiente para pagar dois cafés, para não me entregar a outros estragos. Estava naquele limiar em que começamos a pensar em ir para casa quando me abordou um tipo baixote, anafado e cinzento: – Desculpe. Dizem-me que o senhor escreve versos. – Às terças-feiras. Ele riu: – Hoje é domingo, mas poderei pagar-lhe. – Pagar-me o quê? – Um poema para a minha dama. Cocei o queixo, olhando-lhe os dedos encardidos do tabaco: – Hum, e qual é a pressa? – Ela faz anos hoje e fiquei de ir jantar com ela. Gostava de levar o poema comigo. Por quanto mo fazia? – É um uísque duplo, por quadra. Se for soneto, três. – Posso voltar daqui a meia hora? – Quarenta minutos, a primeira dose é para me descer a inspiração, só ao segundo começo. Espetou a mão sapuda no ar e selámos o acordo com um passou-bem. Pedi-lhe uma fotografia da amada. Bom, ela era o impossível cruzamento de um radiador de Mercedes Benz com uma fêmea de tubarão-martelo. Há gostos para tudo. Porém, se o Mallarmé fazia de encomenda poemas para os casamentos e depois explicava aos amigos que aqueles poemas não eram obscuros porque não tivera o tempo para isso, eu também seria capaz. Pedi o primeiro duplo. Ele voltou uma hora depois: – Não quis apressá-lo na sua escrita. Passei-lhe o poema. A cara dele alterou-se à primeira palavra: «Rémora grudada à sua pele/ lustrosa, o meu amor por ela./ (Ela não sabe que lhe chamo tubaroa!) / Rémora de si mesmo saudosa// mas rendida à emoção que só/ no seu flanco estua, quando ela arfa/ e um heliventilador me limpa o dó,/ no ar que me somava as derrotas.// (E quem mais aceitaria que eu/ fume por dia dois cinzeiros?) Rémora/ de amor ardente e ciúme ao rubro, e mui/ inquieta por fazer anos a minha fera/ e eu ainda à toa quanto ao presente…/ (Se ela soubesse que lhe chamo tubaroa!)» Desculpe, o que é rémora? – perguntou desconcertado. Expliquei-lhe. Não gostou do tom jocoso. Nem topou o verso camoniano. – O senhor é maningue excêntrico, o poema nem tem lírios! – Com emendas é mais um uísque! Irritou-o a piada. Pôs uma carranca e deixou-me a sós com a conta por pagar, num café fino onde nunca havia entrado e nos braços de um gerente, percebi depois, um bocado bruto para brancos desabonados. Este declinou a minha oferta com a sentença: – Os uísques pagam-se com o dinheiro e os sonetos com o aplauso. Gente ingrata, é o que é!