Das belezas do confinamento

[dropcap]N[/dropcap]a terceira semana de Março escrevi um texto intitulado ‘As belezas do confinamento’ que, sem cair na verve das perversidades, se dava a si a tarefa de elencar um conjunto de (inesperadas) mais-valias que o confinamento nos estaria a proporcionar. Tratava-se de entender a órbita de outros mundos onde, de repente, havíamos caído sem pára-quedas, sem preparação e sem capacidade de ajuizar e até de crer.

Desse texto – que quase chegou a ser um ensaio – recorto agora apenas o essencial, transformando-a num segundo texto, filho do primeiro. Reflexo óbvio do efeito guilhotina do tempo. Aqui fica para memória futura a breve lista das possíveis ‘belezas’ do confinamento, tal como, em Março deste ano, se podiam desvendar, muitas delas, entretanto, já diluídas pelas ameaças de normalidade do quotidiano (nunca gostei dos abcessos da normalidade, mas não é isso que me faz ter qualquer prazer diante da anormalidade trágica da pandemia, sejamos claros!):

1. Viver um tempo indefinido e não sujeito a prazos, ou seja, um tempo de vácuo que dá ao corpo a possibilidade de deambular dentro de si sem limites claros, sem obrigações catalogadas e sem o constrangimento dos fluxos habituais. Por outras palavras: viver a liberdade de poder sorrir com desprendimento na direcção do tédio, consertando-o e sobretudo afastando-o para o seu lugar próprio (que é o de contracampo da vida em massa, da vida da correria que atropela os corpos e que os junta nos cais onde se aguarda o metro ou no solavanco enlatado dos autocarros e dos aviões).

2. Viver o reatar da duração que fazia na infância (na infância das férias grandes) a vez de uma eternidade que se vivia e que permanecia sem interrogações. Essa aparência de estar ‘fora da força da gravidade’, ainda que no interior circunscrito da casa, invade a realidade e concede-lhe uma abertura rara. É como se a vida inesperadamente tivesse estancado, oferecendo-nos a hipótese de entrar numa redoma feita de tempo parado. Ou ainda: é como se pudéssemos entrar numa fotografia e aí nos congelássemos, suspendendo o mundo feito tão-só de tarefas.

3. Viver uma administração mais livre e menos compulsiva do zapping informativo que se traduz pela permissão – que a mim próprio dou – de apenas ver uma hora de notícias televisivas por dia (mesmo se via catch-up tv), evitando a patologia da repetição e o que designaria por persistente anáfora do alarmismo.

4. Viver com intensidade uma poética da nostalgia, isto é, o poder deter-me face à saudade do essencial que nos é oferecido pelo mundo. O sublime sugerido pelas cidades desertas – algo palpável em certas semanas de Agosto – reaparece agora, ainda que com uma outra moldura, mas não deixa de espelhar a mesma melodia de um mundo que sai do nosso mundo do dia-a-dia (como um ovo que sai de outro ovo que parecia ser único), revelando-se, deslocando-se, admirando-nos. O imponderável tem o seu atlas: uma topografia que a nossa cultura tende sistematicamente a esconder, a ofuscar.

5. Uma palavra para o Zoom e outras aplicações que permitem virtualizar os afectos de grupo. Omito neste ponto o lado da eficácia prática a que estes dispositivos estão também felizmente associados e que autorizam que muita da normalidade do mundo persista (e que me permite ainda hoje dar aulas na universidade e ter activas as sessões presenciais da EC.ON – Escola de Escritas). Neste ponto, o que mais me interessa é o modo como o ímpeto do desejo e o ânimo do corpo se dão a ver nas quadrículas virtuais que preenchem o cristal líquido dos monitores. Aí o que ressalta é uma exaltação emotiva que não consegue hibernar: acenos que escapam à pose, faces que caminham para o outro, olhares que não se confinam à força. Uma beleza cáustica, talvez mordaz, mas uma beleza.

6. Não me esqueço de concluir com um aceno final à involuntária e provisória guerra que o planeta foi obrigado a lançar contra a poluição. A inocência de muitos viu nesta situação uma aura salvífica e não apenas um lance efémero de dança. A ponto de terem ficado exaltados com o facto de algumas espécies das zonas dunares como a chilreta e os borrelhos estarem a ocupar áreas maiores do que em anos anteriores. Nada mau.

Referir mais-valias com este pano de fundo pode parecer bizarro, porque a pandemia perturba a memória, banaliza a morte, enclausura os gestos, faz envelhecer e frustra intensa e profundamente. Mas o repto era esse mesmo: tactear uma ambição solar no meio da anunciação trágica.

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