Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasAs vantagens de aprender António Cabrita - 4 Jun 2020 [dropcap]A[/dropcap]proveito a insónia para ler o “Peregrino em Paris”, de Italo Calvino, volume póstumo que, entre outras curiosidades, compila as cartas onde o autor italiano relatou a sua errância pelos States, durante seis meses, em companhia de Arrabal (de quem faz um retrato caricato) e de Hugo Claus (cuja consistência admirou). Só em S. Francisco ele tem um “encontro” que o fascina e lhe provoca o entusiasmo. Foi com Kenneth Rexroth, sobre quem escreve: «Decerto é a pessoa mais notável que encontrei na América; não o conheço como poeta (escreveu uns vinte livros de poesia e diversos livros de crítica, além de muitas traduções de clássicos japoneses e poetas) mas como homem impressionou-me muito.» O que me deixou com vontade de reler o poeta. De facto, Kenneth Rexroth (1905-1982) é uma personalidade que impressiona pelas suas múltiplas e omnívoras facetas, a começar pelo seu intratável penteado. Não há modo de descrever sucintamente alguém que foi anglicano e católico, comunista, anarquista, pacifista (objector de consciência na II Guerra Mundial e ajudou muitos japoneses confinados) e budista; pintor, ensaísta, colunista, professor, dramaturgo; casamenteiro e mulherengo; conhecedor profundo de jazz e de literatura clássica grega, chinesa e japonesa; tradutor, agitador cultural e, finalmente, padrinho generoso de novos poetas. Foi ele o anfitrião na emblemática noite de 7 de outubro de 1955, tida como a do nascimento oficial do Movimento Beat, na qual Allen Ginsberg recitou o poema Howl. Mas, aqui para nós, Rexroth, que pugnava por uma poesia rente à respiração da fala, rapidamente achou que Kerouac não passava de um hipster momentaneamente na moda e creio que é um astro poético de maior dimensão que Ginsberg (, aliás, dele escreveria Milosz: «ele gabava-se, mentia, trapaceava, rezava, praticava a poligamia, traía as suas quatro esposas, embora acreditasse na sacralidade do casamento; era paranóico com seus amigos. No entanto, para mim ele era, acima de tudo, um esplêndido poeta e um tradutor maravilhoso de poesia chinesa e japonesa») à altura de William Carlos Williams ou W. H. Auden. Aqui deixo as versões de poemas seus com que desanuviei a insónia Um límpido poema existencial: AS VANTAGENS DE APRENDER Foi tudo para o ralo, as ambições,/ A maior parte dos amigos; tão inapto/ Para ganhar a vida como para não deixar que aconteça/ Esta decadência galopante, este ar abandalhado,/ De quem sempre preferiu fugir a lutar/ Contra a maldição – que importa?/ É meia-noite, sirvo-me de uma taça de vinho branco/ quente e de sementes de cardamomo./ Depois, num esfiapado robe cinzento e/ Com a minha puída boina, sento-me ao frio a escrever/ Poemas, a desenhar nus nas margens enrugadas/ E a copular com imaginárias garotas/ Ninfomaníacas de dezasseis anos. Dois poemas de amor: SOMENTE ALGUNS ANOS Volto ao chalé no/ Canyon de Santa Mónica onde/ Andrée e eu éramos pobres e/ Felizes. Às vezes chegava-nos A fome e rapinávamos verduras/ Nos quintais vizinhos, doutras vezes/ Varríamos o escuro com a lanterna/ No rasto das beatas./ Mas nadávamos todos os dias,/ O ano inteiro. E tínhamos um cão,/ Um rafeiro grande e/ amarelo chamado Proclus,/ E um gato branco, o Cyprian. / Fizemos então a nossa primeira / Mostra de arte juntos, e começavam / A sair os meus poemas em Paris./ Trabalhávamos sob as baixas ramagens/ Da acácia, no jardim da frente./ Agora, saio do carro/ E paro defronte da casa ao lusco-fusco./ A florida acácia polvilha o caminho/ Com pequenas pílulas de lã dourada./O aroma é denso e pesado/ Neste início da noite. Espantoso,/A árvore galgou duas vezes a altura/ Do telhado. Dentro, um velho/ E uma mulher sentam-se à luz do lampião./ Torno ao carro e enfio-me estrada fora rumo/ À praia de Malibu, onde me espera / Um amigo de infância de cabelos já grisalhos./ Contemplamos a lua cheia que desponta sobre/ As longas e enrugadas ondas da baía escura. O TEU ANIVERSÁRIO NAS MONTANHAS DA CALIFÓRNIA A lua tremula nos requebros da água fria/ E gansos selvagens gritam no céu./ A fumaça dos acampamentos eleva-se/ E divaga na geometria do firmamento/— Pontos de luz num negrume infinito./ Eu observo por entre a nesga das árvores/ O vai e vem da tua penumbra ao redor do fogo./ Um marreco grasna alto no lago e amarra-se à noite./ E então o mundo estaca, silente, nesse/ Gotejar do outono que aguarda/ A chegada do inverno. Junto-me/ Ao halo de luz da fogueira, levo-te/ O espeto com trutas para o nosso jantar./ Enquanto comemos, na borda sussurrante do lago,/ Digo-te, “daqui a muitos anos lembrar-nos-emos/ Desta noite e conversaremos sobre ela.” Muita água/ Passou entretanto debaixo das pontes,/ Muitos lustros se passaram. Lembro-me/ Daquela noite como se fosse ontem,/ Embora tu estejas morta vai para trinta anos. Um poema descritivo: A DELGADA Linha Do TeU ORGULHO, IX Ao fim de uma hora/ Aquela amálgama de neve entre as luzes, / Suavizou-se e amaciou o emaranhado das linhas/ Bicudas dos ramos nus, recortando-o/ Contra o crepúsculo gelado./ Agora, nas minhas costas, na pálida/ Extensão da avenida vazia,/ A neve reclama uma por uma –/ Desde a mirada fixa e obscura/ Dos vitrais -, nada mais do que/ Essa linha de pegadas. Um triste retrato de geração: ENTRE DUAS GUERRAS Lembras-te certamente daquele pequeno-almoço:/ Das uvas pretas e frescas que cheiravam vagamente/ À cortiça da embalagem, os pãezinhos quentes/ E muito brancos, o chocolate espesso/ Com sabor a mel?/ E as festas noturnas; o gin e os tangos?/ As fitas de cabelo desfeitas, os botões/ De punho desirmanados?/ Em que se tornaram essas esplêndidas/ Raparigas, as horas sem rumo?/ Diziam-nos perdidos, inconscientes, imorais,/ Que nós atrapalhávamos os planos do Poder. E eis-nos hoje, milhões de emparedados vivos/ Que tamborilam nas lajes de seus túmulos/ E se escondem nas arruinadas catacumbas, brigando/ Pela sua própria carne mutilada.