Saudades das cartas e o caso Almeida Faria

[dropcap]N[/dropcap]as cartas existe um silêncio que não tem qualquer ressonância nos universos WhatsApp ou Messenger. As cartas relevam uma outra demora, uma ocupação íntima da memória e de horizontes não necessariamente imediatos ou urgentes. As cartas desenharam o grande plano da existência e não apenas um ‘frame’ que se consome a si mesmo. Quando a literatura se começou a entender enquanto literatura, a partir da segunda metade do século XVIII, é óbvio que recorreu logo à tradição epistolográfica, pois ela tinha em si o genoma preciso de que a literatura havia de ser feita.

Jacques Rougeot encontrou em ‘Les lettres portugaises’ de Guilleragues (1669) a primeira obra do chamado romance epistolar e em ‘Les Liaisons Sangereuses’ de Laclos (1782)  a última. Seja como for, setecentos foi período áureo do romance epistolográfico e em Portugal, embora não haja nada comparável a umas ‘Lettres Persanes’ de Montesquieu (1721) ou a umas ‘Lettres Moscovites’ de Localelli (1736), há casos muito interessantes como, por exemplo, as ‘Cartas sobre a Educação da Mocidade’ (1760) de António Ribeiro Sanches, as ‘Cartas Familiares, Históricas, Políticas e Críticas’ (1742) de Cavaleiro de Oliveira, as cartas de D. Francisco Manuel de Melo – ou as ‘Memórias das Viagens’ (1741), escritas na Holanda (e que Artur Portela considerou como uma descoberta do “caminho terrestre para a Europa”) ou ainda as ‘Lettre Bohémiennes’ de Matias Aires e as ‘Cartas Curiosas’ do Abade António da Costa (estas últimas apenas publicadas em 1879).

Como Andrée Rocha sublinhou, o ofício era realmente perigoso. Verney não deixou de frisar a necessidade de se destruírem as suas próprias cartas, não fossem elas cair nas mãos da santa inquisição (do mesmo modo que negou ser o autor do ‘Verdadeiro Método’). Estes riscos, a par do vazio iluminista que cruzou de lés a lés Portugal, contribuíram para que o voo epistolar fosse rasteiro entre nós.

Como que a preencher esta lacuna da história literária portuguesa, Almeida Faria, ao longo da sua ‘Tetralogia Lusitana’ (1964-1983), não apenas revisitou o género epistolográfico, como parodiou habilmente as suas traves mestras. Sobretudo na segunda parte da obra, em ‘Lusitânia’ (1980) e em ‘Cavaleiro Andante’ (1983), o ‘romance da distância’ cumpriu-se na sua plenitude, através de uma polifonia anfitriã de registos íntimos e pícaros, caldeados por uma série de calculadas intertextualidades.

É por isso que a paisagem de Veneza, inscrita nas epístolas da protagonista Marta, mobiliza uma espécie de monomania apaixonada e um apego raro pelo que se poderia caracterizar como a alegria estética do mundo.

A tradição do ‘pathos’ amoroso e do emaravilhamento diluem-se na opacidade e na distância geradas pelo universo das cartas. Este tipo de interface existencial fora já claramente observado em ‘La Nouvelle Héloise’ de Rousseau, obra de 1758. A espontaneidade de forma, a verosimilhança das trocas epistolares, a ininterrupta actualização da matéria sentimental, a confissão reflexiva, os exames de consciência, os discursos didácticos, a sátira e as longas “rêveries” remetiam já para aquilo que Versini classificou como sendo a cripta da mais “pure comunication”.

Na primeira metade do século XX, há dois nomes que se distinguiram na renovação do romance epistolar: Gide e Motherland. O primeiro, sobretudo em ‘Les Faux-Monnayeurs’ (1927) por causa dos requisitos formais (tratamento da simultaneidade, da multiplicação dos pontos de vista e do requinte dos jogos de espelhos); o segundo, sobretudo na tetralogia ‘Les Jeunes Filles’ (1930-39), por ter atingido aquilo que Michel Raimond caracterizou por “complexidade dostoievskiana da consciência”.

Num repentino acesso metadiscursivo, Sónia, uma das personagens da ‘Tetralogia Lusitana’ de Almeida Faria, deu a conhecer nas páginas do romance ‘Lusitânia’ algumas das funções das cartas, sob o pretexto irónico de nelas se citarem alguns “apontamentos daquelas venerandas aulas na iletrada faculdade de letras”:

“… não é um elemento formal para o romance picaresco do século dezasseis, porém mais tarde torna-se um simples processo que pode ter funções diversas, permitindo ao autor ligar diferentes situações conservando o mesmo herói (primeira função), exprimir suas impressões sobre diversos lugares visitados (segunda função), apresentar retratos de personagens que de outro modo não seriam compatíveis na mesma narrativa (terceira função). Isto associado à forma epistolográfica ou telegráfica, conforme o tempo de cada caracter, seria um método capaz de dar, pelas astúcias da mimese, algumas facetas da complexidade em que nos movemos”.

O eco espistolográfico da Tetralogia Lusitana é obviamente paródico como tudo o que surgiu no decair da modernidade, mas permite ainda hoje, não apenas focar uma diversidade de mundos em disrupção acelerada como também inscrever o leitor na densidade do tempo que enunciou a obra. Sobre esta perspectiva plural, a escrita de Almeida Faria, discursivamente riquíssima, continua a ser única no modo como movimenta aquilo que é o fundamento do continente literário, tal como o entendemos há já três séculos.

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