Coronavírus | Os mitos e crenças por detrás do consumo de animais selvagens na China 

Um artigo científico publicado pela revista The Lancet explica as origens do consumo de animais selvagens na China e os seus perigos. O estudo, assinado por Jie Li e Jun Li, entre outros autores, defende o fim deste consumo que levaria ao fim do comércio ilegal de animais exóticos. Os autores defendem também que transmissões online de consumo de comida, muito em voga, ajudaram a espalhar o vírus

 

[dropcap]A[/dropcap] revista científica The Lancet publicou na última sexta-feira um artigo que explica as razões por detrás do consumo de carne e outros derivados de animais selvagens na China, defendendo uma mudança de paradigma nessa prática que vem dos tempos antigos. Recorde-se que o surto do novo coronavírus teve origem no mercado de Wuhan, com as primeiras análises a apontarem para a origem em serpentes ou morcegos à venda no mercado.

No entanto, um último estudo divulgado, e levado a cabo por investigadores da Universidade de Agricultura do Sul da China, dá conta que a nova estirpe do coronavírus pode ter tido origem no pangolim, um pequeno mamífero em risco de extinção e um dos animais mais contrabandeados do mundo. Terá sido o pangolim o “possível hospedeiro intermediário” que facilitou a transmissão do vírus, apontou a universidade em comunicado, sem avançar mais detalhes. Um animal que abriga um vírus sem adoecer, mas que pode infectar outras espécies, é designado de “reservatório”.

O artigo publicado pela The Lancet, intitulado “Game consumption and the 2019 novel coronavirus”, assinado por Jie Li, da Universidade de Guangzhou e Jun Li, da Universidade de Ningxia, juntamente com mais cinco autores chineses, explica as razões que estão por detrás de uma prática muito comum na sociedade chinesa desde há vários séculos.

“Mesmo depois da confirmação oficial da ligação próxima entre os casos severos de pneumonia e o comércio de animais no mercado, este manteve-se aberto até 21 de Janeiro. A prática do consumo de carne e produtos oriundos de animais selvagens na China data de períodos pré-históricos. Nos tempos modernos, apesar deste tipo de comércio não ser essencial à alimentação, a tradição de comer este tipo de animais persiste”, lê-se no artigo.

Os autores denotam que este tipo de prática é mais comum no sudeste do país, “onde as cidades de Guangdong e Wuhan se situam” e onde “este tipo de pratos são considerados iguarias nos menus do dia-a-dia”.

O artigo explica que o consumo de animais selvagens pode ter origens filosóficas e muito ligadas às tradições da medicina tradicional chinesa. “Contudo, mesmo que não sejam capazes de compreender a essência desta filosofia, muitos chineses alargam o âmbito da homóloga e simplesmente pensam que consiste nos suplementos que consomem”, alertam os autores.

Comer cérebro e rins

Com base em crenças antigas, muitas famílias chinesas acreditam que comer órgãos de animais selvagens pode curar ou prevenir doenças. “Por exemplo, acredita-se que os rins e o pénis dos veados ou tigres têm um efeito afrodisíaco, e que o cérebro de peixes ou macacos faz as pessoas mais felizes e positivas. Outra falsa crença é que produtos e carne de animais selvagens têm efeitos terapêuticos.”

Os autores denotam que “se acredita que a carne de pangolim chinês ajuda a aliviar o reumatismo, e que o seu sangue ajuda a promover a circulação sanguínea e a remover a obstrução dos meridianos (um conceito da medicina tradicional chinesa), além de que se acredita também que a sua bílis ajuda a eliminar o que se chamar o fogo do fígado e a melhorar a visão.”

Neste sentido, os autores do artigo defendem que o comércio de animais vivos deve ser suspenso no país.
“A chave para controlar doenças como a SARS, a MERS, Ebola e o novo coronavírus de 2019 é interromper este consumo, com a legislação a ser parte da solução. A última solução passa por mudar a mentalidade das pessoas sobre o que é delicioso, uma tendência, prestígio ou saudável para comer.”

“Em resposta ao coronavírus de 2019, o Governo chinês baniu todas as formas de comércio de animais selvagens, e há esforços espontâneos na internet para explicar os riscos que envolvem o consumo de animais selvagens, juntamente com recomendações contra a compra, venda e consumo de animais selvagens”, acrescentam.

Os autores dizem ainda acreditar que “através de uma mudança na ultrapassada e inapropriada tradição de consumir animais selvagens e os seus produtos podemos conservar o habitat natural dos animais selvagens, e que humanos e outras criaturas podem co-existir em harmonia”.

Vídeos online

O artigo da The Lancet aponta ainda outro factor que pode ter ajudado à propagação do vírus, e que tem a ver com uma das últimas tendências na Internet, sobretudo em países asiáticos.

“Comportamentos vistos na Internet podem ter levado a espalhar o novo coronavírus. Em plataformas online de transmissão de vídeos em directo, como o Kuaishou e Douyin, protagonizam-se as chamadas emissões de comida [mukbangs], que envolve comer comida em frente ao seu público. Às vezes, a comida que eles consomem é estranha e perigosa.”

Como exemplos, os autores apontam uma transmissão em 2016, onde “uma destas plataformas mostrou alguém a comer sopa feita de morcego”. “Comer outros animais selvagens, tais como o caracol africano, sapo, bambu com carne de rato e polvo é também transmitido. Às vezes os animais são consumidos crus ou mesmo vivos, especialmente os polvos, mesmo com a possibilidade de estarem infectados com vários vírus”, denotam os autores do artigo.

Joe Chan, ambientalista de Macau, acredita que, com o surto do coronavírus a gerar mortes na China quase diariamente, vai haver uma mudança nos comportamentos alimentares.

“Acredito, sem dúvida, que a população chinesa aprendeu uma lição preciosa desta vez. A forma como eles consomem animais selvagens está directamente relacionada com a eficiência da conservação das espécies em vias de extinção”, disse ao HM.

Além da origem do novo coronavírus poder estar no pangolim, a maioria dos analistas aponta o morcego como fonte primária, uma vez que, de acordo com um estudo recente, os genomas do novo coronavírus são 96 por cento iguais aos que circulam no organismo daquele animal. Já os vírus detectados nos pangolins são 99 por cento idênticos aos encontrados em pacientes humanos, de acordo com uma análise a mais de 1000 amostras de animais selvagens. A hipótese inicial de o intermediário ter sido a cobra foi, entretanto, afastada.

Durante a epidemia da pneumonia atípica, também causada por um coronavírus, e que entre 2002 e 2003 paralisou a China, o intermediário foi a civeta, um pequeno mamífero cuja carne é apreciada na China.

Como parte das medidas para conter a recente epidemia, a China anunciou, no final de Janeiro, o encerramento temporário de mercados de animais selvagens, proibindo por tempo indeterminado a criação, transporte ou venda de todas as espécies de animais selvagens.

O pangolim é o mamífero mais contrabandeado do mundo, com cerca de um milhão de espécimes capturadas nos últimos 10 anos, nas florestas da Ásia e África. A caça ilegal é estimulada pelo aumento da procura pela sua carne e partes do corpo.

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